Governador Tarcísio de Freitas e o secretário de Educação, Renato Feder
Daniel Luz, de São Paulo (SP)

No final de julho, o governo do estado de São Paulo, hoje nas mãos do bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos), anunciou a adoção de material didático 100% digital para toda a rede estadual, no próximo ano. A proposta implica na retirada do estado do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD), do Ministério da Educação (MEC), e o uso de material didático produzido pela própria Secretaria de Educação de São Paulo.

Com a decisão, o governo estadual está abrindo mão de cerca de 10 milhões de livros didáticos e de R$ 120 milhões, disponíveis para os anos finais do Ensino Fundamental, chegando a R$ 200 milhões, se incluirmos o Ensino Médio. Se confirmada, será a primeira vez que o estado ficará de fora do PNLD, criado originalmente em 1985, como parte do processo de redemocratização, pós ditadura militar. A justificativa do governo paulista é promover “uniformização e coerência pedagógica” na rede paulista.

Além disso, o secretário Renato Feder argumentou que os livros do PNLD “perderam conteúdo, profundidade, estão superficiais”. Depois de bombardeado por críticas, a justificativa mais recente do secretário Feder, no dia 7 de agosto, para impor a medida parece piada de mau gosto, de tão ridícula. Segundo ele, os alunos não podem “rabiscar” os livros do PNLD, por isso a opção pelo material produzido pela Secretaria de Educação (Seduc).

Quando fechávamos este artigo, cercado por críticas por todos os lados, o governo estadual havia anunciado alguns recuos e a permanência de Feder à frente da Seduc estava sendo questionada. Contudo, mesmo que isto aconteça, não só é necessário denunciar estas iniciativas, mas, também, lutar para derrotar este governo, também no campo da Educação.

Ataques à liberdade e qualidade pedagógicas

As opiniões de Feder são típicas de alguém que não conhece absolutamente nada sobre o processo ensino-aprendizagem. Ou melhor, de alguém para quem Educação é apenas uma mercadoria e fonte de lucros.

Algo que o secretário sequer disfarça. Entre 2005 e 2018, ele foi presidente da Multilaser, uma empresa especializada em produtos de informática, que, não por acaso, em 21 de dezembro de 2022, no término da gestão de Rodrigo Garcia (PSDB) e quando já sabia que seria convidado para a Seduc, Feder fechou três contratos para fornecer 97 mil notebooks, no valor de 76 milhões, para a mesmíssima Secretaria que ele, hoje, comanda.

Em relação ao material didático, assim que a medida foi confirmada, profissionais da Educação e especialistas apresentaram uma série de críticas à medida. Críticas que compartilho plenamente, não só como professor da rede, mas também como militante do Coletivo Reviravolta, que reúne trabalhadores e trabalhadoras das redes estadual e municipal de São Paulo, e do PSTU.

Primeiramente, é preciso destacar que, no decorrer dos anos e com muita luta, a categoria fez importantes conquistas em relação ao PNDL, garantindo, por exemplo, a participação efetiva do corpo docente na escolha do material didático utilizado nas unidades de ensino. Algo fundamental, já que somos nós que estamos em contato direto com a aprendizagem dos(as) estudantes e conhecemos a realidade e necessidades de nossas turmas.

Qualquer um de nós, que trabalhamos com a Educação, reconhece as múltiplas diferenças entre as escolas e seus contextos socioculturais e, por isso mesmo, a medida adotada pelo governo do estado vai na contramão do método adequado de decisão sobre o material didático a ser utilizado. E, além disso, é uma política que se mostra autoritária, desrespeitando a liberdade de cátedra dos docentes.

Para começar, trocar os livros didáticos escolhidos por quem tem conhecimento do educando “real” e presente na sala de aula, e avaliados por especialistas, por material apostilado reduz professores e professoras à posição de um “repassador” de um conteúdo pronto, o que, infelizmente, já é muito comum mesmo com o material fornecido pelo PNLD.

Os argumentos do governo Tarcísio só pioram quando argumenta que isso vai servir para melhorar o desempenho dos estudantes na Prova São Paulo, explicitando sua concepção educacional guiada por exames externos, uniformizadores e empobrecedores do processo ensino-aprendizagem.

Uma tentativa de alienar e marginalizar ainda mais a classe trabalhadora

O descaso do governo de Tarcísio de Freitas com a Educação ficou evidente em uma entrevista dada ao jornal “O Estado de S. Paulo”, no dia 05/08/2023, defendendo a permanência de Feder, diante das críticas generalizadas. “Não é uma decisão desarrazoada. Só foi mal comunicada. Ela faz muito sentido. Tem uma lógica que eles não souberam explicar”, declarou o bolsonarista.

Se não bastasse ser estapafúrdio, o argumento ainda é mentiroso. Pois, a proposta tem, sim, uma lógica: é elitista; marginaliza a Educação, ainda mais, aos filhos e filhas da classe trabalhadora; e, ainda, dificulta o trabalho docente.

Em primeiro lugar, todo e qualquer professor sabe que, quando precisamos usar equipamentos como notebooks ou tablets, sempre esbarramos em dificuldades, a começar pelo número insuficiente de aparelhos. Em minha experiência, por exemplo, a média é de três ou quatro alunos por aparelho. Além disso, em função dos poucos aparelhos disponíveis, é preciso agendar seu uso com boa antecedência.

E, mesmo quando conseguimos ter acesso ao material, esbarramos em outro problema: a conexão à internet nas escolas, principalmente nas periferias, é inadequada, quando não completamente inexistente, o que faz com que, muitas vezes, seja preciso rotear a internet através de nossos celulares.

Também do ponto de vista pedagógico, é preciso destacar outro aspecto fundamental: a adoção do material completamente digital dificulta que as famílias acompanhem o processo de aprendizagem, já que também não dispõem de internet, equipamentos adequados para o acesso ou, ainda, têm dificuldades de conexão em casa.

E, mais uma vez, de forma muito mais grave no caso das famílias dos trabalhadores e da periferia, já que muitos estudantes e principalmente seus pais e familiares não dominam o uso pleno dos equipamentos e programas. Dessa forma, na prática, fica impossibilitado o estudo adequado fora da escola.

Por outro lado, com o livro didático impresso, é possível, inclusive para os docentes, verificar mais facilmente o desenvolvimento de habilidades elementares do estudante como, leitura, interpretação de texto e escrita.

O potencial catastrófico da adoção de material didático 100% digital, inclusive, é de conhecimento público e generalizado, em função das terríveis experiências que compartilhamos durante a pandemia, quando fomos obrigados a trabalhar com o ensino remoto.

A precariedade do acesso à internet foi fator de aumento da evasão escolar dos estudantes mais pobres, bem como aumentou a desigualdade existente entre o ensino nas redes pública e particular, onde há mais facilidade no acesso à internet adequada.

Segundo a pesquisa “Educação brasileira em 2022 – a voz de adolescentes”, realizada pelo Ipec (ex-Ibope) para o UNICEF (órgão da ONU para a infância), no ano passado, 11% das crianças entre 11 e 19 anos estavam fora das escolas. Isto significa que cerca de 2 milhões de pessoas em idade escolar estão longe dos bancos escolares e o abismo de classe é evidente: 4% dos entrevistados são das chamadas classes AB, e nas classes DE o percentual sobe para 17%, um número quatro vezes maior.

O estudo aponta que a pandemia e o ensino remoto foram determinantes para esta situação, o que também fica evidente nos principais motivos para o abandono dos estudos: 48% afirmam que deixaram de estudar “porque tinham de trabalhar fora”; 30%, “por não conseguirem acompanhar as explicações ou atividades”; 29%, porque “a escola não tinha retomado atividades presenciais” e 28% afirmam que “tinham que cuidar de familiares”.

Números que deixam mais do que evidente que o uso de material didático 100% digital, proposto pelo governo do estado, resulta na exclusão dos estudantes mais pobres da classe trabalhadora.

Na contramão da História e mergulhado no autoritarismo

Todos especialistas realmente envolvidos com a Educação são unânimes em afirmar que não existe justificativa pedagógica ou experiência, em qualquer parte do mundo, que sustente a digitalização integral do material didático.

Aliás, as experiências que existem apontam exatamente no sentido contrário. E um dos exemplos mais categóricos é o Suécia, cujas condições socioeconômicas, inclusive, não podem sequer ser comparadas com a do Brasil.

Lá, o material didático 100% digital foi adotado em 1990. E, como demonstrado numa reportagem publicada no Portal G1, em 07/08/2023 (“Por que a Suécia desistiu da educação 100% digital e gastará milhões de euros para voltar aos livros impressos?”), o resultado foi catastrófico: houve queda no desempenho da leitura; perda de concentração por parte dos estudantes; órgãos de Saúde comprovaram danos às crianças que passaram muito tempo diante das telas e os pais acumularam dificuldades no acompanhamento dos filhos.

Até mesmo a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em um relatório publicado em julho passado, sugeriu o banimento de celulares da sala de aula, citando pesquisas internacionais que apontam os malefícios à saúde e ao aprendizado, em função da exposição excessiva à tela. Já a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) orienta a exposição máxima de 2 a 3 horas de tela por dia, para pessoas de 11 a 18 anos.

Se tudo isto não bastasse, a proposta de digitalização integral do material didático soma-se a outras medidas que atacam a autonomia e a liberdade de ensino dos professores(as). Em uma portaria publicada no final de julho, Tarcísio Freitas decretou que os diretores de escolas terão que assistir duas aulas de cada professor, por semana, e produzir um relatório, cuja finalidade é obscura e não considera fatores como a superlotação das escolas e das próprias salas.

E isto nem é tudo. No dia 9, os professores e alunos foram surpreendidos e, evidentemente, ficaram indignados, ao perceberem que um aplicativo, chamado “Minha Escola”, foi instalado em seus celulares, pela Secretaria de Educação, sem que ninguém tivesse autorizado. Uma prática que, apesar de ser contra a Lei Geral de Proteção de Dados, já havia sido adotada por Renato Feder em sua passagem pela Secretaria de Educação do Paraná, no governo de Ratinho Júnior (PSD).

Mesmo que haja recuos, é preciso derrotar o projeto de Tarcísio

No final da semana passada, o Ministério Público abriu investigação sobre a decisão do governo do estado de não aderir ao PNLD. A justificativa é de que a decisão não foi precedida por debate nas comunidades escolares, nem mesmo no Conselho Estadual de Educação, podendo caracterizar “possível violação ao princípio constitucional da gestão democrática do ensino público”, segundo a promotora Fernanda Peixoto.

Na verdade, essa é a segunda investigação do MP que tem por alvo o Secretário de Educação Renato Feder, já investigado pelo suposto conflito de interesse em relação aos contratos mencionados no início do artigo.

No decorrer da semana, diante da enxurrada de críticas, o governo anunciou que irá imprimir o material didático, aparentemente recuando de sua decisão anterior.

O problema é que esse recuo é aparente, pois não muda o método antidemocrático, que confisca das comunidades escolares da tomada de decisão, transformando a todos e todas nós em meros espectadores, afetados pelas decisões que vem de cima, sem que sequer possamos opinar se queremos, ou não, o material estadual que, agora, poderá ser impresso; ou, ainda, se queremos optar por outro, que julgamos mais adequado para o processo ensino-aprendizagem.

Isso para não mencionar os contratos milionários com a empresa da qual o secretário é dono e as demais medidas autoritárias e antipedagógicas tomadas por ele. Na verdade, o governo Tarcísio está tentando apenas se livrar das muitas críticas à sua política educacional, que segue a mesma.

E, também, é preciso lembrar que a política bolsonarista do governo Tarcísio (Republicanos) no estado de São Paulo soma-se a um grande corte de verbas para a Educação Básica, aprovada pelo governo Lula.

Diante de tudo isto, mais uma vez, é preciso reafirmar que os profissionais da Educação precisam se organizar de forma independente dos governos e com independência de classe, a partir do chão da escola, em debate democrático e unidade com toda a comunidade que ela atende, para lutar por melhores condições de trabalho para nossa categoria, bem como por melhores condições de vida e Educação para o conjunto da classe trabalhadora.

Um passo importante neste sentido será o ato que realizaremos, na quarta-feira, dia 16 de agosto, na frente da Secretaria de Educação, contra todas as barbaridades em curso. Nesta atividade, nós do Reviravolta e do PSTU, exigiremos a saída imediata de Renato Feder da Seduc. Fora Feder! Abaixo as medidas antipedagógicas e antidemocráticas do governo paulista! Não ao corte de R$ 332 milhões pelo governo Lula e revogação do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular.

Mas sabemos, contudo, que teremos a Educação que realmente precisamos e merecemos quando, numa sociedade socialista, ao tomarmos o poder econômico e político, todos os aspectos do processo ensino-aprendizagem sejam decididos coletivamente e de acordo com as necessidades específicas de cada unidade escolar.