Incêndio na Linha 9, privatizada
Marcel Wando, de São Paulo

Em seu editorial do dia 3 de outubro, sob o título “Privatize-se”, a Folha de S. Paulo manipula a opinião pública para angariar apoio aos seus anunciantes da CCR e Via Mobilidade. Defende abertamente a privatização da Sabesp, do Metrô e da CPTM, e se coloca à disposição do governador bolsonarista Tarcísio para ajudá-lo em sua campanha privatista.

O interesse comercial e político dos empresários está, mais uma vez, obstruindo o serviço de utilidade pública de informar corretamente seus leitores. Por isso, vamos analisar ponto a ponto dos argumentos desse editorial para avaliar se fazem sentido ou não com a realidade, ou se é mais uma retórica baseada em preconceitos e não em fatos.

1) A greve teve a motivação apenas política de opor-se aos planos de privatizar as empresas?

Quando o editorial afirma que a motivação é “apenas política”, dá a entender aquilo que o senso comum entende como política eleitoral. Ou seja, partidos políticos fazendo uma disputa eleitoral. O que a Folha não conta é que a adesão à greve foi total nas categorias, e que a participação nas votações das assembleias foi massiva. Isso porque a privatização é também uma questão econômica e de saúde. Pessoas serão demitidas, e recontratadas novas pessoas com salários menores, e com flexibilização de horários e condições de trabalho mais precárias. Então a greve não é eleitoral, mas política no sentido de defesa dos interesses dos funcionários e passageiros.

2) O ir e vir na capital foi drasticamente prejudicado por causa da greve, como ocorrido em março?

O movimento de greve ofereceu a Tarcísio uma alternativa à greve: catraca livre para a população poder utilizar o sistema de transporte sem pagar tarifa. O Tarcísio recusou essa alternativa. Inclusive, sabia que a paralisação seria forte e, por isso, declarou ponto facultativo para servidores públicos. Então, o prejuízo à população é de responsabilidade direta do próprio governador também. Não fosse isso o suficiente, o aumento das paralisações das linhas privadas devido a falhas graves também prejudica drasticamente o ir e vir na capital.

3) Os grevistas não respeitam o Estado de Direito?

A greve é um direito constituicional dos trabalhadores. A determinação do judiciário de funcionamento em 100% em horário de pico e 80% em horário de vale é uma forma de burlar o direito de greve porque, na prática, inviabiliza a própria greve. Então não são os trabalhadores que desrespeitam as liberdades democráticas, mas é o próprio judiciário que faz isso. E não é a primeira vez. Onde estão os editoriais da Folha questionando o judiciário pelo não garantimento do direito de greve?

Além disso, a própria justiça determinou uma punição draconiana de multa de 500 mil reais por dia, caso essa meta não fosse atendida, admitindo a possibilidade de não-cumprimento da decisão. Portanto, os trabalhadores não são “inimigos do Estado de Direito” quando fazem uma greve. Quem quer acabar com as liberdades democráticas são os bolsonaristas, aliados de Tarcísio, para quem a Folha se coloca à disposição para ajudar.

A Folha se sente no direito de cobrar o respeito ao “Estado de Direito”, mas ainda não explicou as relações da empresa com a ditadura militar, divulgada em reportagem da Apública em julho desse ano. A matéria denuncia que a Folha emprestava veículos para identificar militantes de esquerda e denunciá-los para a repressão, que logo em seguida eram presos e torturados.

Afinal, quem são os adversários políticos dos direitos democráticos? Os trabalhadores que lutam por seus direitos, ou os empresários da grande mídia que prestaram apoio ao regime militar? Ou seria Tarcísio, bolsonarista assumido, ligados aos atos anti-democráticos?

4) A greve demonstra que a privatização melhora os serviços?

A greve é uma demonstração de insatisfação dos trabalhadores, mas a ausência de greves nas linhas metroferroviárias privatizadas não é uma prova de satisfação. Nessas empresas, o assédio, as ameaças e as punições constrange os trabalhadores a não aderir ao sindicato e aos movimentos. Para se ter uma ideia, somente em 2018 o sindicato de metroviários pôde representar os trabalhadores das linhas privatizadas, que antes eram representados pelo sindicato de concessionárias de rodovias e estradas. Assédio e perseguição aos trabalhadores não são prova de eficiência do setor privado, mas sim da mentalidade escravagista e autoritária ainda muito difundida entre os bilionários do Brasil.

Não fosse isso o bastante, não é verdade que não houve paralisação nas linhas privadas. A Linha 9-Esmeralda parou de funcionar no meio do dia 3 e até agora não voltou ao normal. Mas não por conta da legítima reivindicação dos trabalhadores, mas por incompetência das empresas privadas em garantir a manutenção básica do sistema. Foi uma falha grave em um trem, que colocou a população em risco, tendo que sair no meio dos trilhos para seguir seu destino.

5) Basta melhorar a regulação?

O editorial da Folha sugere que o aumento das falhas após as concessões (omitem que são 10 vezes mais falhas) poderia ser resolvido com mais regulação e exigências do Estado. O problema dessa lógica é que ela ignora a própria natureza da privatização. O lucro dessas empresas vem justamente da redução de salários e direitos e redução do número de funcionários. Ainda que isso acarrete em aumento do risco de acidentes e falhas graves. Além, é claro, de gordos repasses de verbas públicas como subsídio para as concessionárias.

A CCR gerou 5 novos bilionários em 2022, mesmo com a queda do número de passageiros durante a pandemia. Como manter essa mesma taxa de lucro sem os mecanismos de redução de salários e de quadro de funcionários, necessários para o bom funcionamento do sistema? Ou com o aumento das tarifas, ou com o aumento dos repasses do Estado na forma de subsídio. Como diria Milton Friedman, não existe almoço grátis. De algum lugar terá que vir esse dinheiro.

A Folha reclama de ter que pagar os altos salários dos funcionários das empresas públicas. Mas esquece de que existe uma grande diferença entre os salários dos que trabalham e dos indicados políticos do governador. Mas, aparentemente, não vê problema algum em sustentar os bilionários da CCR. Ou seja, o problma nunca foi o custo operacional, mas sim os limites do quanto os super-ricos podem extrair do sistema de transporte.

6) A privatização garante um serviço público eficiente, universal e ao menor custo possível?

Existe uma lógica da privatização. Se o custo para o Estado da operação privada é o mesmo da pública, o lucro vem da redução da folha de pagamento: menores salários e menos funcionários. Isso reduz a eficiência da prestação do serviço, uma vez que tem profissionais em número insuficiente, mal treinados, e menos incentivados a prestar um bom serviço.

Mas a sanha pelo lucro pode aumentar os custos, por exemplo através dos repasses e subsídios. É o caso da Linha 4, por exemplo. Isso retira o princípio do menor custo possível. Apenas substitui os gordos salários da alta cúpula das empresas públicas pelos gordos dividendos dos acionistas. A apropriação privada de forma imoral de grandes valores do patrimônio público não acaba com a privatização. Ela apenas é substituída de uma mão para a outra.

Além disso, outras formas de receita são aventadas, como a cobrança, cada vez maior, de tarifas. Quanto maior a barreira financeira para acesso aos serviço público, menor sua universalidade. Foi o que aconteceu com o Metrô de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro. Mas isso toma proporções ainda mais desumanas quando aplicado ao acesso à água e ao saneamento básico.

A privatização não garante nenhum dos 3 pilares do bom uso do dinheiro público definidos pelo próprio editorial. Nem garante a eficiência, nem a universalidade e nem o menor custo possível. Tanto é verdade que existe em diversos países um processo de reestatização de empresas, em especial de água, saneamento e transporte público, uma vez que o setor privado se demonstrou incapaz de prestar esses serivços.

A Folha e o bolsonarista Tarcísio vão na contramão da experiência internacional, mostrando que estão parados nas ideologias de 30 anos atrás, incapazes de ver que as fórmulas liberais falharam em todo lugar onde foram aplicadas. Pelo contrário, os únicos que defendem esses pilares são os trabalhadores, que defendem que as empresas sejam públicas, mas sob controle operário e popular, e não por uma burocracia de confiança do poder executivo.

7) Os vícios das empresas públicas justificam privatizar?

– Empresas privadas com contratos com o governo sempre investiram em campanhas eleitorais, logo o clientelismo não acaba.
– Burocratas de empresas públicas são acolhidos por empresas privadas e empresários são escalados para cargos de confiança pelos governos, logo o aparelhamento político não acaba. Pelo contrário, acaba o concurso público e interno, viabilizando maior aparelhamento político.
– O inchaço salarial, geralmente localizado nos altos cargos das estatais, são substituídos por salários ainda mais altos das chefias privadas e por dividendos aos acionistas, como foi observado com a privatização da Eletrobrás.
– Aversão à inovação é uma mentira. O Metrô, por exemplo, promove diversas inovações, inclusive utilizadas pelas linhas privadas e até pelos seus fornecedores. Há que se avaliar se a inovação está conectada a uma cultura empresarial, ou simplesmente à falta de investimento nessa área.
– Ojeriza à otimização de custos é uma meia verdade. Uma empresa privada tem ojeriza a cortar os custos com os dividendos dos acionistas, assim como a alta cúpula das empresas públicas tem ojeriza a cortar dos contratos superfaturados e de seus altos salários. Não é uma questão cultural, mas de interesses econômicos.
– O corporativismo não acaba com a privatização. Empresários das concessionárias financiam campanhas de políticos e lobby para passar leis em seu favor. Anunciam em na grande mídia para ajudar na disputa da opinião pública para aprovar essas leis. O corporativismo empresarial não desaparece com a privatização, pelo contrário, se aprofunda.

Então, sim, as empresas públicas controladas pelo governo paulista não são imunes a esses e outros vícios. Mas isso não justifica que elas deixem de ser públicas, mas sim que deixem de ser controladas pelo governo e que passem a ser controladas pelos trabalhadores e pela população. Para atingir esse objetivo, é preciso que os trabalhadores estejam à altura do enfrentamento com o governador e a grande mídia patronal.