Queers passaram por aqui”- foto tirada em Ramallah, na Palestina
Secretaria Nacional LGBT

Lola Guerra, formada em Letras pela USP, ativista do BDS e bissexual orgulhosa de sua identidade sexual

Este artigo tem como objetivo apontar alguns dos inúmeros problemas de concepção que surgiram nos relatos do parlamentar do PSOL-RJ tanto durante sua viagem a Israel, quanto na reportagem à Folha “Criticado pela esquerda, Jean Wyllys diz que vai voltar a Israel”.[1] Repudiamos as abordagens chulas e homofóbicas dirigidas a Jean, que servem apenas para despolitizarem o debate. De nossa parte nunca existiram tais manifestações – e caso surgissem, seriam rigorosamente punidas. Nesse sentido, expor nossas severas divergências não se trata de ataque pessoal ou “patrulha ideológica”, mas de fazer um sério debate político.

O que está acontecendo extrapola os limites de uma discussão humanitária ou, num debate mais qualificado, de autodeterminação dos povos, pois evidencia os limites do reformismo e a necessidade de uma alternativa revolucionária. Embora a perspectiva apresentada por Jean seja uma das mais retrógradas possíveis como insistir na proposta falida de dois Estados[2], negar a existência de um genocídio contra os palestinos[3], considerar que o Muro do Apartheid na Cisjordânia exista para evitar ataques terroristas por parte dos palestinos, entre outros descalabros, o parlamentar não o faz por desinformação.

O deputado, que revelou ter se sentido subestimado ao receber críticas sobre suas posições, alega possuir uma “posição equilibrada sobre o conflito”, portanto seria absolutamente coerente dialogar com a “esquerda sionista”. Chegar a essa conclusão só é possível se ignorarmos a forma como o Estado israelense foi criado: a partir de uma limpeza étnica da população nativa, segregando os remanescentes, colonizando suas terras com a importação de uma nova população selecionada (muito diferente do mito difundido de ser um refúgio para os judeus sobreviventes do Holocausto), como subproduto da partilha imperialista de regiões periféricas e estratégicas. Ou seja, se para o deputado trata-se de um Estado como qualquer outro, em que exista “direita”, “esquerda”, “progressivos” e “conservadores”, é perfeitamente possível escolher um dos lados – de preferência, o menos pior.

Homonacionalismo e pinkwashing: a cooptação do movimento LGBT em prol do imperialismo

Os marxistas fazem suas elaborações a partir da análise de como se constitui a sociedade, que é hierarquizada pelos aspectos econômicos e não culturais e religiosos. Por mais que a sensação de “ilusões perdidas” surgida nos anos 90 e o agravamento das crises econômicas levem muitos de volta à religião, a força que essa realmente exerce hoje é residual diante do que já foi.

No mundo atual, em termos de organização da sociedade, o grande deus, o que orquestra cada milímetro de nossas vidas é o Capital; clama-se aos outros deuses para aliviarmo-nos dos castigos aplicados pelo primeiro. O capitalismo já se transformou no sistema econômico hegemônico sobre a Terra, fazendo até mesmo que os mais distintos ou “peculiares” povos, por fim, operem da mesma maneira. É nesse método em que nos baseamos, não o abandonando por modismos em tempos difíceis.

Jean presta um desserviço ao invisibilizar a rica história e luta das LGBT’s do Oriente Médio, cuja repressão e legislação punitiva são parte do legado deixado pela colonização europeia e mantido pelos governos lacaios. Alegar que a sociedade palestina tenha esse ou aquele tratamento para com suas LGBT’s devido a elementos culturais como a religião não só reforça estereótipos orientalistas como deseduca a vanguarda sobre as origens e reais propósitos das opressões, que são um importante pilar do sistema capitalista.

No caso, as mulheres e as LGBT’s passaram a ser oprimidas quando o acúmulo de excedente da produção resultou na transição das sociedades matriarcais para patriarcais, impondo às mulheres a função de produzir herdeiros legítimos e proibindo atividades sexuais que não tivessem essa finalidade. Essa ideologia da classe dominante permeia a nossa classe, que também reproduz o machismo, o racismo e a xenofobia, portanto, não sendo exclusividade ou traço inerente de nenhum povo. Por isso, nossa tarefa é educar nossa classe da necessidade de combater esses males em nosso interior para sermos capazes de lutarmos ombro a ombro pela única via de acabar de vez com todas as formas de opressão, que é pela vitória da revolução socialista.

Poderíamos definir o homonacionalismo como a avaliação do progresso de determinado país baseado em sua legislação para as LGBT’s, portanto, quanto mais legislação específica, mais devemos defender esse país. Já pinkwashing é uma palavra inglesa derivada de whitewashing, que significa amenizar, encobrir algo. Pinkwashing é a política oportunista de alguns Estados de desviar as atenções ou justificar suas ações deploráveis se utilizando das pautas LGBT’s.

O homonacionalismo e o pinkwashing são duas práticas interligadas: enquanto parte do movimento LGBT, principalmente da Europa e da América do Norte, adota certos países como “modelos a serem seguidos”, alguns países investem em uma aparência “progressista” para justificar seu nacionalismo violento e colonialismo. Até hoje, nenhum país conseguiu remodelar tão bem sua imagem através do pinkwashing quanto Israel. Por toda a década de 2000, foi feito um enorme esforço de Estado para atrair o apoio de um novo público, em divulgar o país como um oásis moderno, jovem e “liberal”. Portanto, a política de transformar Tel Aviv em um destino gay-friendly e fazer algumas concessões é aplicada ao mesmo tempo em que parte do movimento LGBT trocou a bandeira de construir uma nova sociedade a partir da libertação de todos os oprimidos, por tentar se encaixar numa sociedade neoliberal.

É uma tarefa difícil determinar quais são os direitos LGBT’s em Israel daqueles que foram conquistas judiciais isoladas, mas entre os que se destacam estão o reconhecimento de casamentos entre pessoas do mesmo sexo realizados no exterior (permitindo alguns direitos de pensão e derivados) e a possibilidade de prestar serviço militar. Ou seja, em última instância, os direitos supracitados fornecidos por Israel colaboram para a manutenção do Estado em seus moldes atuais, pois autorizar que judeus-israelenses possam compartilhar ou transferir bens entre si impede que essas propriedades possam cair em mãos palestinas e a permissão de homossexuais no exército aumenta a frota e amarra ideologicamente mais grupos. Relembramos que, uma vez que o Estado israelense é um Estado oficialmente judeu, esses direitos não são estendidos às LGBT’s palestinas, mesmo aquelas que tenham nascido onde hoje é considerado território israelense.

Se existem uma colonização, uma ocupação e um regime de apartheid, as LGBT’s palestinas estão sendo multiplamente oprimidas, o que é encoberto pelo discurso de que “Israel é uma democracia em consolidação” ou que não se pode ir a Gaza porque o local é liderado pelo Hamas-homofóbico.

Apenas a resposta para a questão nacional, que passa muito longe da falsa proposta de dois Estados, pode trazer condições materiais para uma mudança radical na vida das LGBT’s palestinas. Ganhar o movimento de libertação nacional sobre as questões de gênero e orientação sexual: isso é o que está sendo feito por grupos LGBT’s palestinos sérios que, não por acaso, chamaram uma frente de atuação por dentro do BDS, o PQBDS (Palestinos Queers pelo BDS), apoiado por figuras como Angela Davis. Qual a real ajuda que esses que apenas denunciam a LGBTfobia do Hamas ou nos países do Oriente Médio estão dando para esses grupos de lutadores? Qual a real colaboração para a libertação das LGBTs e da Palestina que esse discurso traz?

Por que não iríamos boicotar?

Apesar de não considerarmos o partido político (e não “facção” ou “organização criminosa”) Hamas de terrorista, acreditamos que nem ele, nem o Fatah ou qualquer outro partido tradicional palestino apresente uma real alternativa para a libertação nacional. As consecutivas situações de agudização das lutas, incluindo reações violentas, desde os Acordos de Oslo (1993) são reflexos de um grave problema: a falta de uma direção revolucionária palestina construída por sua classe trabalhadora em conjunto com seus setores oprimidos. É justamente a ausência desse organismo, cuja estratégia seja a formação de uma Palestina laica, livre, não racista e democrática para todos e todas que impede que as lutas alcancem uma solução definitiva.

Na perspectiva marxista revolucionária, não nos limitamos a apoiar a causa palestina por seu aspecto humanitário, mas também pelo potencial antiimperialista que as lutas por libertação nacional possuem. No bojo desse movimento é possível construir organismos classistas que ajudem a sanar a debilidade de uma direção revolucionária local e internacional. Essa organização precisa ser construída pelos trabalhadores, pois trata-se da  única classe revolucionária até o final, capaz de expropriar a burguesia e, ao se libertar, também libertar a humanidade. A causa palestina é uma causa da humanidade pelo fato de sua resolução ser um ponto chave para a derrota do imperialismo em âmbito mundial e, por isso, deve ser empunhada por instrumentos classistas.

Desse modo, não apenas somos a favor do BDS (boicote, desinvestimento e sanções a Israel), mas o impulsionamos em nossas frentes de intervenção. Não é necessário discorrer aqui sobre a legitimidade da campanha de BDS, um chamado da sociedade civil palestina em completa consonância com os direitos humanos e proteção das liberdades democráticas[4].  A partir da aproximação de grupos dentro do abrangente leque de mobilizações possibilitadas pela campanha de BDS, como sindicatos e coletivos de juventude, surge uma chance de formar uma futura organização que se faz tão fundamental. Somos uma única classe espalhada pelo mundo, cujas bandeiras dos outros também são as nossas.

O caso de Jean nos revela um fenômeno novo no país, mas que tende a se proliferar dado o estreitamento das relações entre Brasil e Israel em todas as instâncias governamentais e com os mais diferentes partidos. Devido ao desgaste encontrado na Europa e na América do Norte por causa do BDS, Israel encara o Brasil como uma porta de entrada para a América Latina. Um exemplo importante é a carta branca dada pelo Comitê Olímpico, do qual o governo municipal e estadual do Rio, além do governo federal de Dilma fazem parte, para uma das empresas mais encarniçadas do setor bélico israelense (ISDS) conduzirem a segurança dos Jogos Olímpicos do Rio.

Entre “conservadorismo” e “progressismo”, optemos pela revolução

Jean faz uma contraposição entre a sua visita e de membros conservadores da bancada evangélica como Eduardo Cunha – pessoa para quem canaliza a responsabilidade pela crise política brasileira, pois “foi ele que inviabilizou o governo Dilma em 2015”[5]. O deputado do PSOL-RJ justifica que, enquanto ele viajou a convite da “esquerda”, esses senhores vão para apertar a mão de Netanyahu.

Ironicamente, toda essa bancada evangélica, que vem tentando esmagar direitos dos setores oprimidos no Brasil, é fortemente influenciada pelo sionismo cristão – uma ideologia recorrente nas igrejas neo-pentecostais, cuja leitura teológica crê ser necessária a defesa do estado israelense para concretizar a volta de Cristo. Com essa argumentação, Jean diz não compreender o motivo que despertou tanta revolta contra sua viagem e a desses senhores não, já que elas cumpriram propósitos diferentes. E quais são esses propósitos? Se por um lado, um parlamentar progressivo aperta a mão do sionismo de esquerda[6] e, por outro, um parlamentar conservador aperta a mão do sionismo de direita, ao final do dia ambos apertaram a mão do sionismo.

Foi justamente esse fator que chocou uma grande parcela da vanguarda que, ainda em decorrência do vendaval oportunista[7] dos anos 90, deposita mais facilmente esperanças em indivíduos com pautas aparentemente avançadas do que em organizações. Quando eles enxergam o limite dessa régua que mede o “esquerdismo” ou o “progressismo” daqueles que são suas referências políticas, é trazida à tona a dúvida sobre o que fazer.

Nesse momento em que os trabalhadores do mundo se confrontam com os governos contra os cortes de direitos e os planos de austeridade, a intervenção dos revolucionários, tanto no parlamento quanto no movimento de massas deve aprofundar a desconfiança de nossa classe em relação às instâncias da democracia burguesa, não sugerindo a reconciliação de classes.

Se durante a época de desenvolvimento do capitalismo o parlamento possa ter trabalhado para o progresso histórico, com o advento do imperialismo e intensificação da destruição das forças produtivas, “o parlamento se transformou num instrumento de mentira, fraude, violências, destruição, de atos de bandolerismo”[8]. Por isso, esse meio de intervenção torna-se secundário, já que o centro de gravidade da vida política se localize fora dele. Nesse sentido, “o dever histórico imediato da classe operária consiste em arrancar esses aparatos às classes dirigentes, em rompê-lo, destruí-los e substituí-los pelos novos órgãos do poder proletário”[9]. Para responder às novas demandas da realidade e orientar os revolucionários sobre como devem se portar no parlamento, as teses do 2 congresso da III Internacional nos dizem:

“A tribuna do parlamento burguês é um desse pontos de apoio secundários. (…) O partido comunista entra nela não para dedicar-se uma ação orgânica, mas para sabotar desde seu interior a máquina governamental e o parlamento. (…) Esta ação parlamentar, que consiste sobretudo em usar a tribuna parlamentar para fins de agitação revolucionária, para denunciar as manobras do adversário, para agrupar em torno de certas ideias as massas que, principalmente nos países atrasados, consideram a tribuna parlamentar com grandes ilusões democráticas, deve estar totalmente subordinada aos objetivos e às tarefas da luta extraparlamentar das massas.”[10]

Aguardamos um posicionamento da direção do PSOL, que apesar de ser um partido amplo com diversas correntes e militantes independentes – como é o caso de Jean Wyllys – possui uma opinião a favor do BDS. Em nota de sua Secretaria de Relações internacionais no período dos ataques à Gaza de 2014, é dito: “Como já vínhamos defendendo junto a grande comunidade árabe e palestina brasileira, a resposta deve ser a resposta de ruptura das relações diplomáticas e comerciais, o boicote econômico aos seus produtos e a ruptura de todos os acordos do Mercosul. O Brasil pode dar esses passos, marcando um caminho para os países vizinhos e a comunidade internacional[11].


[1]http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/01/1728976-criticado-pela-esquerda-jean-wyllys-diz-que-vai-voltar-a-israel.shtml

[2]http://litci.org/pt/mundo/oriente-medio-mundo/palestina/ilan-pappe-a-solucao-de-dois-estados-morreu-faz-uma-decada/

[3] https://www.youtube.com/watch?v=OwX21BWdtC0

[4] http://bdsmovement.net/call#Spanish:

[5]http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/01/1728976-criticado-pela-esquerda-jean-wyllys-diz-que-vai-voltar-a-israel.shtml

[6]http://cspconlutas.org.br/2016/01/contra-a-solidariedade-que-precisamos-jean-wyllys-e-a-esquerda-sionista-por-soraya-misleh/

[7] http://www.pstu.org.br/node/4450

[8]http://www.lutamarxista.org/artigos/Teoria/textosteoria./democraciaburg3internacional.html

[9] idem

[10] idem

[11]http://www.psol50.org.br/2014/07/nota-da-secretaria-de-relacoes-internacionais-do-psol-sobre-a-ofensiva-de-israel-contra-a-palestina/