Lula da Silva discursa durante 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima | Foto: Ricardo Stuckert/PR
Hertz Dias

Membro da Secretaria de Negros do PSTU e vocalista do grupo de rap Gíria Vermelha

Hertz Dias, professor da rede pública e dirigente do PSTU-Maranhão

Olha, toda a desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação. A mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita“.[Afirmação feita por Lula na segunda-feira, 13/03, em discurso na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, na terra indígena Raposa Serra do Sol]

Apesar de muitos ativistas terem utilizado as redes sociais para criticar a fala do presidente Lula exaltando a miscigenação como o “lado bom da escravidão”, salta aos olhos o silêncio ensurdecedor da Secretária de Promoção da Igualdade Racial e do Ministério dos Povos Indígenas sobre esse lamentável episódio. A maioria das organizações do Movimento Negro também se manteve em silêncio. Vale lembrar que em 2007 Lula já havia chamado os usineiros de “heróis nacionais e mundiais”.

Não se trata de improvisação ou de ignorância. Lula discursou sobre um tema que sempre foi muito espinhoso para a burguesia brasileira, a escravidão e o racismo, com um conteúdo que foi coerente com o projeto que a “Frente Ampla” tem para o Brasil: o da (re)construção da unidade nacional. Projeto este que precisa de sua muleta político-ideológica, o da identidade nacional. Veremos que Lula não está inventando a roda em relação a este tema.

As burguesias dependentes de quase todas as ex-colônias sempre se inspiraram nas teorias racistas da Europa para a construção dos seus projetos de nação. A brasileira também fez isso, mas por aqui criaram algo bem original que pudesse “responder” à nossa ímpar realidade, a do país mais negro fora do continente africano.

Esse debate surgiu com muita força no pós-abolição. A grande questão era a seguinte: como pensar a construção da identidade nacional num país com maioria da população formada por ex-escravos negros? Como pensar a construção de tal identidade com indivíduos considerados por sua própria burguesia como inferiores? É nesse contexto que a “mestiçagem” ganha relevo no Brasil.

A mestiçagem como projeto político-ideológico reacionário

Bem diferente do que se possa imaginar, a MESTIÇAGEM é um projeto político-ideológico autoritário, elaborado por uma vasta camada de intelectuais brasileiros do início do século XX para responder a essas questões. Autoritário porque se opõe à pluralidade étnica e cultural, isso sem contar a tentativa de amenizar os estupros praticados pelos senhores de escravos contra as mulheres negras e indígenas.

Munanga (1999, p.52) lembra que “O que estava em jogo, neste debate intelectual nacional, era fundamentalmente a questão de saber como transformar essa pluralidade de raças e mesclas de culturas e valores civilizatórios tão diferentes, de identidades tão diversas, numa única coletividade de cidadãos, numa só nação e num só povo”

Sílvio Romero (1851-1914), por exemplo, acreditava que desse processo resultante do cruzamento entre as três raças, que ainda estava em curso “(..) resultará a dissolução da diversidade racial e cultural e homogeneização da sociedade brasileira, dar-se-ia a predominância biológica e cultural branca e o desaparecimento dos elementos não brancos” (Munanga, 1999).

Em que pesem as diferenças entre aqueles intelectuais, o que havia em comum entre eles era o determinismo biológico e a noção de inferioridade racial dos grupos não-brancos. Na verdade, quase todos eles viam no mestiço um ser degenerado, porém a maioria defendia a mestiçagem como uma ponte necessária para se alcançar o branqueamento total da nação. Acoplado a esse processo de transmutação genética, havia outros três processos sem os quais o projeto de embranquecimento do Brasil não se realizaria plenamente: o da intensificação da imigração europeia, o da redução da expectativa de vida da comunidade negra e o extermínio do povo indígena.

Os defensores da MESTIÇAGEM acreditavam, não na valorização da pluralidade, mas na predominância do tipo biológico e cultural branco. Ou seja, a MESTIÇAGEM na verdade era um projeto que tinha como horizonte o etnocídio (desaparecimento cultural) e genocídio (desaparecimento físico) dos elementos não-brancos.

Em outras palavras, ao não ter condições e coragem suficientes para enfrentar as forças do imperialismo que passou a controlar os setores mais importantes da economia brasileira, a nossa burguesia e seus intelectuais criaram a tese de que o atraso e o subdesenvolvimento do nosso país era produto da predominância de descendentes africanos e indígenas em seu solo. E, para que o Brasil alcançasse status de nação desenvolvida e civilizada, tal como as europeias, deveria transitar para um país de maioria branca. Por ironia do destino, a eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que reduziu a imigração europeia para o Brasil, e a resistência da própria comunidade afro-brasileira a esse projeto genocida, fez com que nossa burguesia redefinisse, mas jamais abandonasse, esse projeto.

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Um discurso para a burguesia brasileira

Não queremos dizer com isso que Lula defenda abertamente o genocídio afro-indígena, tal como fez o governo Bolsonaro. Porém, o discurso de Lula, na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, não era para os indígenas ali presentes, mas para a burguesia brasileira que quer urgentemente reconstruir a unidade de um país em decadência, contudo, sem ter que enfrentar os graves problemas raciais e sociais que ela própria criou e que jamais conseguirá resolver, justamente porque ela não reúne condições para isso.  Na verdade, desde a abolição da escravidão (1888) e da Proclamação da República (1889) nenhuma das frações da burguesia brasileira e dos seus governos teve coragem de encarar o passado escravista tal como ele foi e o racismo tal como ele é. Daí que é melhor se apegar a essas formulações idílicas.

Gilberto Freyre (1900-1987) talvez tenha sido o intelectual ao qual o discurso de Lula mais se aproximou. Freyre também se apoiou na teoria da MESTIÇAGEM para sistematizar o discurso ideológico do mito da democracia racial, só que focado mais no conceito de cultura que no de raça.

Segundo ele, a MESTIÇAGEM do povo brasileiro decorria da “flexibilidade natural” do colonizador português para com o escravo africano. Aqui, bem diferente da colonização espanhola, inglesa e francesa, a relação entre a Casa Grande e a Senzala teria se dado de maneira harmoniosa, edificando em solo brasileiro a maior democracia racial do mundo.

Assim como o presidente Lula, Gilberto Freyre omite que o mestiço da época escravista não era produto de uma relação afetiva recíproca entre o senhor e suas escravas, mas produto de estupros e que os filhos daquelas escravas, por mais clara que fosse a cor de suas peles, continuavam como escravos habitando e trabalhando compulsoriamente nas insalubres instalações das senzalas. A MESTIÇAGEM biológica jamais significou mestiçagem de riquezas.

A existência de quilombos em todos os territórios em que existam senzalas é a prova mais cabal de que essa confraternização entre a Casa Grande e a Senzala não passa de uma versão deturpada de uma história que pretende anular as rebeliões escravas e colocar o povo negro e indígena como acomodado e resiliente.

A questão racial não se resolverá plenamente por fora das questões de classe

Não negamos a existência de troca genética, ela é parte da história da humanidade. Porém, o que temos que ver aqui é como a burguesia manipula, política e ideologicamente, o biológico de acordo com os seus interesses de classe.

Essa ideologia da MESTIÇAGEM, além de autoritária, visa também a anular a organização e ação política dos movimentos antirracistas. Se somos todos mestiços, então não existe nem brancos, nem negros nem indígenas. Assim, não existem racistas e nem racismo, sendo os movimentos antirracistas uma invenção de quem não tem o que fazer: puro vitimismo!

Essa ideologia é perigosa porque anula a importância progressista de uma coletividade oprimida assumir sua identidade e se organizar para combater a agressão opressora que sofre cotidianamente.

Dito isto, queremos afirmar que questão racial, seja negra ou indígena, não se resolverá plenamente por fora das questões de classe nem por dentro do capitalismo, como defendem os grupos racialistas, identitaristas liberais ou reformistas. Muito menos coadunamos com as orientações bizarras que o stalinismo fez por décadas em relação ao tema das lutas contras às opressões, afirmando que as mesmas dividiam a classe trabalhadora e que, por isso, deveriam ser relegadas para depois da revolução, revoluções estas que eles não cansaram de trair. Há uma incompatibilidade histórica e politica entre as lutas contra as opressões e o stalinismo, por mais que os neoestalinistas tentem deturpar a história, prática sem a qual não conseguem respirar

Também não acreditamos que o problema racial se resolverá como parte de um projeto de reconstrução da Unidade Nacional ou de conciliação de classes. Basta lembrar que os treze anos de governo petista no tema racial foram atravessados pelo crescimento do encarceramento, genocídio, feminicídio e ataques às comunidades quilombolas e indígenas. Drama este escamoteado sob a falácia de que o Brasil estava caminhando em direção a uma verdadeira democracia racial, com o surgimento de uma nova e fictícia classe média negra, “classe” esta que comportava qualquer individuo com renda per capita entre R$ 291 e R$ 1.019, conforme divulgado em maio de 2012 pela Secretaria de Assuntos Estratégicos do governo Dilma.

O que a comunidade afro-indígena precisa é de reparação, de demarcação das suas terras, titulação dos seus territórios,  emprego, renda, revogação da Lei Antidroga (leia-se “lei do encarceramento negro”) sancionada por Lula em 2006, a desmilitarização da PM, a revogação das reformas trabalhista e previdenciária, a suspensão do pagamento da dívida pública e expropriação dos bilionários do agronegócios ou não.  É disso que precisamos, e não de tergiversações e discursos reacionários.

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Construir a unidade da classe trabalhadora

Por outro lado, opinamos que a pluriparidade e diversidade humana devem ser exaltadas em todos os sentidos e qualquer tentativa de construção de uma identidade una e monolítica deve ser repudiada e combatida, ainda mais quando é amparada na violência sexual ou em projetos genocidas. A unidade que devemos construir com o máximo de urgência é a unidade da classe trabalhadora, tarefa que só será possível combatendo as opressões que, essas sim, divide o proletariado.

E essa tarefa não pode ser exclusividade dos oprimidos. Muito pelo contrário, como bem ensinou Lênin: os brancos da classe trabalhadora devem ser os campeões no combate ao racismo dentro de sua própria comunidade. Esse método leninista serve também para o combate a todas as formas de opressões e distribui responsabilidade ao conjunto da classe trabalhadora, como pré-condição para que a mesma possa alcançar uma sociedade igualitária e sua plena emancipação. Assim, deixando de existir mundialmente as classes sociais e o sistema de exploração, deixará de existir também a necessidade da opressão racial, fazendo com que o racismo se recolha aos museus e aos livros de história, bem como a noção de raça.

REFERÊNCIAS
— FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. 48ª Edição São Paulo: Global Editora, 2003.

— MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1999.