Na semana passada, nos países membros da União Europeia (UE), realizaram-se as eleições ao Parlamento Europeu, um organismo que até agora tem uma função mais simbólica do que real.

Na Espanha, ficaram claras duas tendências mais gerais da eleição. Em primeiro lugar, se mantiveram os altíssimos índices de abstenção – participaram do processo apenas 46% do eleitorado. Como assinala um comunicado de Corriente Roja, a abstenção “é o reflexo do descrédito da população do velho continente com a União Européia que tem mostrado, novamente, seu papel de instrumento da Europa do Capital”.

Por outro lado, o melhor resultado eleitoral foi obtido pelas organizações burguesas de direita, que superaram os partidos de “esquerda” dos regimes imperantes, apesar das abstenções. No caso da Espanha, o Partido Popular obteve o 42,23% dos votos contra 38,51% do PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol), que atualmente ocupa o governo.

Nesse marco, a candidatura da Iniciativa Internacionalista – Solidariedade entre os povos (II-SP), apesar de não eleger nenhum deputado, realizou uma boa campanha e obteve bons resultados políticos. Algo que fica ainda mais ressaltado quando levamos em consideração as condições e os ataques dirigidos à Iniciativa durante a campanha. A Iniciativa Internacionalista surge como uma incipiente alternativa para a vanguarda de lutadores do Estado espanhol.

O Estado espanhol: cárcere de povos
Para entender as características atuais do Estado espanhol, seu atual regime político e suas contradições, é necessário, antes de tudo, observar brevemente um pouco da sua história.

A unidade do atual Estado espanhol é o resultado de um longo processo que se desenvolveu, depois da expulsão completa dos mouros (os muçulmanos) do território realizada entre os séculos 15 e 18. No entanto, diferente de outros países europeus, esta unidade não é levada adiante por uma burguesia mais desenvolvida economicamente e culturalmente, mas sim por um setor burocrático – administrativo – militar, localizado em Madri e Castilla, com forte peso da Igreja católica.

Dessa forma, a monarquia castelhana se impõe e passa a oprimir outras nacionalidades, com raízes culturais e lingüísticas próprias como os bascos (que possuem um idioma completamente diferente das línguas de origem latina), os catalães e os galegos. Por isso, no Reino da Espanha se aplica perfeitamente a caracterização de cárcere de povos que os marxistas davam ao império russo antes da Revolução de Outubro.

Desde então, estiveram na ordem do dia tanto a luta por uma República burguesa democrática e a eliminação da monarquia, como a luta das nacionalidades oprimidas por seus direitos. Durante um curto período do século 19, entre 1873 e 1874, existiu a I República da Espanha que foi rapidamente derrotada pela reação monárquica.

As contradições do Estado espanhol acentuaram-se com o desenvolvimento capitalista e a época imperialista. Essas contradições explodiram com força na década de 1930, quando irrompe a Revolução Espanhola, a instauração da II República e a guerra civil (1936-1939). O triunfo das forças fascistas e o longo regime ditatorial de Francisco Franco aprofundaram o caráter de “cárcere de povos” do Estado espanhol. Nas nacionalidades, junto às formações burguesas nacionalistas, surgiram também organizações e correntes independentistas mais radicalizadas, como o caso de ETA, no País Basco.

A transição
Durante os anos 60 e inícios dos 70, se desenvolveu na Espanha uma forte ascensão das lutas contra um regime franquista, cada vez mais declinante, inclusive pelo próprio envelhecimento do “Generalíssimo”. A crise econômica e o descontentamento cada vez maior contra o franquismo, abriram a possibilidade da derrubada revolucionária do regime, com os trabalhadores na vanguarda dessa luta.

Mas para evitar que isso ocorresse, setores mais lúcidos do franquismo (como o representado por Adolfo Suarez) elaboraram a política da “transição”, para “reciclar” o regime e “democratizá-lo”. Pretendia-se assim, salvar os aspectos centrais do poder econômico, político e militar dos setores burgueses unidos ao franquismo.

Da “transição” surgiu o atual regime político, que combina instituições da democracia burguesa, como a eleição por voto popular do Parlamento e do Presidente de governo, com a restauração da monarquia, onde o rei é a expressão institucional do Estado espanhol. O atual rei Juan Carlos foi eleito pessoalmente por Franco para essa função. A atual constituição espanhola é tão reacionária que a menor critica ao rei é considerado um delito. E há vários ativistas antimonárquicos processados por isso.

Por outro lado, para gerar uma ilusão de reconhecimento das nacionalidades, criaram-se as chamadas “comunidades autônomas” por todo o território, com governos e parlamentos regionais, dando espaço político para suas burguesias. No entanto, isso é apenas uma cobertura “democrática” para o “cárcere de povos”. As “comunidades” acabaram tendo atribuições administrativas e apenas redistribuem uma parte das despesas do Estado, isto é, não possuem nenhum direito real de autonomia. O critério subjacente segue sendo o lema da direita: “Espanha, única e indivisa”.

Mas a transição e o roubo que ela representou às aspirações democráticas do povo e das nacionalidades, não poderiam ser exitosas sem a colaboração e a traição daqueles partidos que dirigiam às massas, como o PSOE e o Partido Comunista Espanhol (PCE), cujos dirigentes (Felipe González e Santiago Carrillo, respectivamente) assinaram, em 1977, os chamados Pactos de Moncloa, acordos econômicos e políticos que selaram a “transição”.

Quarenta anos após a Revolução Espanhola, os dirigentes daqueles partidos cujos militantes tinham dado suas vidas na guerra civil, aceitavam a monarquia e, como símbolo de sua traição, realizavam a reverência ante o rei. O mesmo caminho foi seguido pelos dirigentes das centrais operárias que estes partidos influenciavam: a Comissões Operárias (CC.OO, ligada ao PCE), e a UGT (ligada ao PSOE).

Assim, o PCE foi perdendo peso e sofreu diversas crises, mas manteve-se claramente dentro do regime, como o mostra a posição de Willy Meyer (principal candidato de IU-coalizão que integra o PCE nestas eleições) que respaldou a ilegalização da Iniciativa Internacionalista. O PSOE, por sua vez, transformou-se em um dos pilares centrais do regime, governando várias vezes o país, como acontece agora.

A crise e o imperialismo espanhol
A Espanha foi um dos primeiros países imperialistas. Mas este caráter de “velho” imperialismo se expressou também em uma forte decadência no século 19 e na primeira metade do século 20. A partir dos anos 60 e 70 começou um processo de modernização e desenvolvimento capitalista que se aprofunda a partir da integração à UE nos anos 90.

Como parte deste processo, o país vive uma “reconversão” produtiva. Por um lado, a burguesia aceitou um plano de redução de sua indústria (especialmente a metalurgia e a naval). Por outro, ampliou seu espaço como centro turístico e comercial. Ao mesmo tempo, reforçou seu papel de sub-imperialismo, especialmente de capitais alemães e norte-americanos. Dessa forma, ganhou forte peso econômico na América Latina – através de grandes empresas como Banco Santander, Telefônica, Repsol etc. – e inclusive em Cuba, especialmente no setor de turismo.

Dentro do país, a economia centrou-se essencialmente na criação de uma grande “bolha imobiliária” (proporcionalmente superior à dos EUA) que impulsionou uma hipertrofia do setor da construção. A Espanha, por exemplo, tinha no final de 2005 em trono de 23,7 milhões de moradias para um total de 15,4 milhões de lares (dados do Banco de Espanha). Isto é, uma média de 1,54 moradias pela cada lar espanhol, a taxa mais alta do mundo.

Nesse marco, a crise econômica internacional golpeou o país com muita força: a economia espanhola contraiu-se 3% na taxa inter-anual (comparada com o mesmo período de 2008) no primeiro trimestre de 2009, e 1,9% na taxa inter-trimestral. Os piores resultados desde 1970. Como conseqüência disso, em abril o desemprego atingiu a alarmante cifra de 17,36% (3,45% maior do que no trimestre anterior), o mais alto da União Européia. Só nos últimos doze meses, se destruíram 1.311.000 postos de trabalho, o que se soma às cerca de 500.000 pessoas que não puderam conseguir seu primeiro trabalho. (Fonte: www.economiadehoy.com).

As lutas
Nesse marco, não é de estranhar que a situação prévia às eleições mostrasse um incremento das lutas de diferentes setores, especialmente trabalhadores e estudantes universitários, que se somam às históricas reivindicações das nacionalidades.

Entre elas, destacam-se as lutas contra os ERE’s (Expedientes de Reestruturação de Empresas), mecanismo legal com que as empresas legalizam as demissões, cuja reação foram mobilizações muito significativas, particularmente, no setor do automóvel. Trabalhadores como os da multinacional norte-americana do transporte de mercadorias UPS também protagonizaram uma longa e vitoriosa luta em Madri. Também ocorreram importantes mobilizações em defesa do ensino público e uma manifestação de dezenas de milhares, em Madri, que saíram à rua em defesa da Previdência pública, contra a privatização do setor, convocados pela Coordenadora de Trabalhadores da Previdência Pública de Madri.

Por outro lado, ocorreram mobilizações de dezenas de milhares de estudantes universitários contra a privatização do ensino universitário, representada pelo chamado Plano Bolonha, impulsionado por todos os governos da UE.

Poucos dias antes das eleições, no dia 21 de maio, foi realizada uma exitosa greve geral no sul do País Basco, com milhares de pessoas participando de mobilizações em Bilbao, San Sebastián, Pamplona e Vitoria. Na última semana de maio, também se produziram fortes confrontos entre os metalúrgicos de Vigo (Galícia) e a polícia, durante mobilizações por um convênio coletivo justo.

O surgimento da Iniciativa Internacionalista
Todas estas lutas (e a vanguarda que nelas participam) não encontram, entretanto, uma expressão sindical organizada nas principais centrais, como CC.OO ou UGT. Algo que pudesse dar lugar a um incipiente processo de reorganização sindical. Tampouco encontraram alguma expressão no atual mapa político espanhol, com o PSOE agindo como pilar do regime, a Izquierda Unida (IU) cada vez mais à direita, e os partidos burgueses das nacionalidades (PNV, BNG, CiU, Esquerra Republicana) cada vez mais integrados ao regime.

Nesse marco, surge a coalizão que lança as candidaturas da Iniciativa Internacionalista para as eleições ao parlamento europeu. Pela primeira vez, se unem em uma frente eleitoral de oposição ao regime organizações e personalidades da esquerda das nacionalidades, outras que atuam no conjunto do Estado espanhol, como Corriente Roja (organização ao qual integra o PRT-IR, seção da LIT-QI), além de ativistas e dirigentes das recentes lutas operárias. Uma unidade inédita que se expressava tanto na composição da lista de candidatos, como no programa da coalizão. Por isso, rapidamente a Iniciativa recebeu numerosas adesões de setores da intelectualidade, sindicalistas, além de outras organizações de esquerda.

Um grande triunfo democrático
O aparecimento da Iniciativa preocupou a direita que iniciou uma feroz campanha de ataques. Uma campanha da qual colaboraram o governo do PSOE que, através da Promotoria, pede e obtêm do Tribunal Supremo (TSE) a ilegalização da lista eleitoral da Iniciativa. A lista é cassada sob a falsa acusação de que ela era uma continuidade de Batasuna (organização de esquerda basca, ilegalizada por ser considerado o braço político da ETA).

No entanto, uma forte campanha nacional e internacional, somada à própria falta de provas da acusação, obrigou ao Tribunal Constitucional a reverter a decisão do TSE. Assim, a Iniciativa pôde se apresentar nas eleições.

A revogação da cassação foi um grande triunfo democrático. Tal como assinalou, antes das eleições, Alfonso Sastre, um dos mais prestigiosos dramaturgos contemporâneos da língua castelhana e o primeiro candidato da lista: “Independentemente de obter uma cadeira ou não na Europa, o movimento de solidariedade que se produziu a raiz da anulação da candidatura pelo Tribunal Supremo, já é um sucesso”.

Outro sucesso da campanha foi assinalado pela declaração da Corriente Roja, depois das eleições: “A campanha serviu para pôr em julgamento a nível estatal e internacional essa antidemocrática Lei de Partidos. E também aqueles que a partir do governo (do PSOE ou do PP) perseguem por delitos de opinião e fazem leis típicas das ditaduras”.

Resultados e perspectivas
No marco de uma curta campanha, que sofreu com ataques e o silêncio da grande imprensa, a Iniciativa Internacionalista obteve um bom resultado eleitoral, apesar de não eleger nenhum deputado.

No conjunto do Estado espanhol conseguiu uma cifra significativa de votos, com 175.895 votos (1,12%), destacando-se claramente os resultados do País Basco (115.281) e Navarra (22.985), onde se transformou na terceira força. Também obteve um resultado expressivo na Catalunha (16.575 votos). Para ver a importância deste resultado, é bom compará-lo com as outras duas forças de esquerda opositoras ao regime que se apresentaram: a Esquerda Anticapitalista (unida ao Novo Partido Anticapitalista francês) que obteve 25.280 votos, e o Partido Comunista dos Povos de Espanha (PCPE), que contou com 15.093 votos.

Por isso, concordamos com as primeiras conclusões da Corriente Roja, expressando sua satisfação pelo resultado: “Esta candidatura nasceu com um objetivo claro: que se escutasse a voz dos trabalhadores e trabalhadoras e os povos, e sem dúvida conseguimos esse objetivo (…). Mas, sobretudo, demonstraram o que verdadeiramente significa uma política de classe, tentar unir toda a classe operária e fazer suas as demais tarefas pendentes do resto dos oprimidos. (…) Sem ceder à ideologia dominante, contra o atraso e o preconceito, contra o vento e maré, soubemos defender que não há unidade dos trabalhadores se os trabalhadores não forem os máximos defensores do direito dos povos, de sua autodeterminação, do exercício da soberania, defendendo assim as liberdades democráticas mais elementares. (…) Estamos mais do que satisfeitos porque a campanha permitiu romper o cerco a Euskal Herria [País Basco], e voltar a recuperar os laços de unidade entre as organizações bascas e a esquerda revolucionária estatal, relançando assim a luta pela soberania de todos os povos. Agora, se abre um debate sobre como dar continuidade à unidade e ao espaço conquistado para que nasça uma alternativa política para milhares de lutadores da classe trabalhadora, a juventude e as nacionalidades na Espanha. Uma ferramenta imprescindível para todos os que estão fartos das traições da ‘esquerda’ do regime”.