Petróleo do país está nas mãos das grandes multinacionaisSe durante os anos 1970 e 1980, o líbio Muammar Kadafi foi um dos principais expoentes do já falido nacionalismo árabe, nos últimos anos o ditador se tornou uma decadente caricatura de si próprio. Os conflitos com o imperialismo ficaram no passado e o país se converteu em uma semicolônia das potências europeias, principalmente da Itália de Berlusconi.
O país se transformou na última década no paraíso das grandes multinacionais do petróleo e empreiteiras, que vão da Shell e BP à brasileira Odebrecht e as construtoras turcas. Não é à toa que o levante contra a ditadura de Kadafi tenha levado nervosismo aos grandes executivos e elevado o preço do petróleo no mercado internacional.
Da nacionalização à entrega
O então capitão Muammar Kadafi subiu ao poder após um golpe militar contra o rei Ìdris I, em 1969. Dez anos depois de o país árabe ter descoberto petróleo em seu subsolo, o que o tornou um dos países mais ricos da região. Hoje, a Líbia é o terceiro maior produtor de petróleo do continente africano, responsável por 2% da produção mundial.
Inspirado pelo presidente do Egito, Gamal Abdel Nasser, e o nasserismo, Kadafi põe em prática um pan-arabismo nacionalista, expropria e nacionaliza as empresas e petroleiras estrangeiras e desmonta bases militares britânicas e norte-americanas instaladas no país. Ao mesmo tempo, se aproxima de grupos como a Frente Popular pela Libertação da Palestina e oferece apoio até mesmo ao IRA.
Kadafi faz um sistema político que seria um meio termo entre o capitalismo e o socialismo, influenciado pelo islamismo, que batiza de “jamahiriya”, ou “Estado das massas”. Na prática, impõe uma ditadura nacionalista burguesa baseada na articulação com líderes tribais.
A nacionalização e os recursos vindos do petróleo garantiram uma relativa melhoria na vida da população. Por outro lado, os embates com o imperialismo extrapolaram o discurso antiimperialista e descambou em conflitos militares. Em 1986 uma bomba explodiu em uma danceteria de Berlim, na parte ocidental, matando dois soldados norte-americanos. Os EUA acusam o envolvimento da Líbia e o presidente Ronald Reagan ordena o bombardeio de Trípoli e Bengazi, matando 35 pessoas, entre elas a filha adotiva do ditador líbio.
Já em 1988, Kadafi teria articulado um atentado a bomba contra um avião civil na Escócia que matou 270 pessoas. O atentado terrorista desencadeou uma série de sanções contra o país a partir de 1992, liderado pela ONU.
A guinada
No final dos anos 90, o regime de Kadafi iniciou uma reaproximação com o Ocidente. Em 2003, se responsabilizou formalmente pelo atentado na Escócia e pagou indenização milionária às famílias das vítimas. A ONU pôs fim às sanções e abriu o país ao capital internacional. O imperialismo percebeu que não podia simplesmente dispensar as grandes reservas de petróleo do país.
A partir daí, a Líbia de Kadafi se aproximou aos EUA e à Inglaterra. Em 2004, o então primeiro-ministro Tony Blair assinou um acordo com o ditador chamado de “Acordo no Deserto”, que previa bilhões em contratos de exploração de petróleo no país. Já em 2005 a Líbia promove um leilão de suas reservas petrolíferas, marcando o retorno das empresas norte-americanas. Embora fosse a Itália quem mais se beneficiasse com a guinada entreguista da ditadura líbia.
Kadafi e o primeiro-ministro da Itália Sílvio Berlusconi
Dependência
O petróleo e o gás da Líbia estão nas mãos das multinacionais. Até a Petrobras explora o recurso no país. Mas foi o imperialismo europeu quem avançou sobre as reservas de petróleo. Hoje, quase 80% do petróleo exportado pelo país vão para o continente. Desses, 32% vão só para a Itália. Segundo a TV árabe Al Jazeera, a petrolífera italiana Eni operava 13 campos de gás e petróleo na Líbia, cuja produção chegava a 306 mil barris por dia.
Como contrapartida, o fundo soberano do país, o Libyan Investiment Authority, formado pelos recursos da venda do petróleo, é investido na Itália. Cerca de 65 bilhões de dólares da Líbia estão em ações no país de Berlusconi, como no banco Unicredit, o segundo maior da Itália, na Finmeccanica, empresa de defesa, e na própria Fiat.
A Líbia é ainda grande compradora de armas e todo tipo de material bélico da França, Inglaterra e Rússia. Armas agora usadas na brutal repressão contra os protestos, como provavelmente também devem estar sendo usadas os brasileiros Cascavel e Urutus, veículos blindados exportados pela empresa Engesa ao país árabe (cerca de 400 unidades).
Amigos íntimos
Se na prática a ditadura de Kadafi já não se diferenciava sob nenhum aspecto do imperialismo, sua fraseologia ainda apresentava resquícios do velho nacionalismo. Junto a isso, o apoio de governos considerados de “esquerda” reforçam a imagem de líder antiimperialista.
Nesse dia 22 de fevereiro, enquanto ordenava aviões bombardearem os manifestantes, o ditador recebia uma ligação telefônica de solidariedade do presidente da Nicarágua e antigo dirigente sandinista, Daniel Ortega. “Eu expressava a Muammar Kadafi, líder da revolução líbia, o que é elementar: em momentos difíceis se põe a prova a lealdade”.
Já o ex-dirigente de Cuba, Fidel Castro, afirmou em artigo que o que ocorre na Líbia hoje é uma ameaça de invasão militar por parte da Otan, “talvez em questão de horas ou muito poucos dias”. O velho ditador cubano ainda assegura que “não imagina” Kadafi abandonando o país.
Da Venezuela, Chavez vem mantendo um precavido silêncio. Mas em setembro de 2009, na II Cúpula da África e América Latina, o venezuelano condecorou o ditador líbio com uma réplica da espada de Bolívar, chegando a comparar as duas figuras. Ao entregar a condecoração, Hugo Chávez saudou da seguinte forma Kadafi: “Em nome do nosso povo, da revolução bolivariana, te entrego, soldado revolucionário, líder do povo e da revolução líbia, dos povos da África e líder também para os povos da América Latina”.
Revolução em marcha
Apesar do discurso, a ditadura de Muammar Kadafi privatizou os campos de petróleo e entregou o país às grandes empreiteiras. A abertura econômica realizadas pelo ditador líbio seguiu a mesma política neoliberal trilhada pelo ditador Ben Ali na Tunísia e Mubarak no Egito. Apesar dos recursos vindos do petróleo, a desigualdade é gritante e o desemprego atinge de 30% a 40% da população líbia.
A determinação das massas, porém, apesar da brutal repressão da ditadura líbia, promete a Kadafi o mesmo destino dos outros dois ditadores.