“Desvelando a Transexualidade” é uma série de artigos sobre transexualidade nos mais variados aspectos. Este é o terceiro artigo.
Leia o 1º artigo: Recortes, conceitos e diferenciação entre as travestis e as mulheres transexuais
Leia o 2º artigo: A transexualidade aos olhos da Medicina e da Psiquiatria
Quanto à retificação do prenome civil
Em linhas gerais, apesar do fundamento da demanda variar de acordo com as necessidades e particularidades de cada caso, temos que a maior parte das demandas de Retificação de Registro Civil ligadas à questão da sexualidade, encontram fundamentação jurídica na “notoriedade”: ser conhecido por nome diverso daquele do documento, tanto no trabalho, como no convívio social; e no constrangimento: incongruência entre o nome do documento e a aparência, gerando constrangimento face à necessidade de apresentação de documentos.
A retificação do prenome civil é muito burocrática, sendo necessários vários documentos, dentre eles: cópia da certidão de nascimento, cópia do RG, cópia do CPF, cópia da Reservista, cópia da carteira de trabalho, cópia do comprovante de residência, laudo psicológico atestando a disforia de gênero (após o mínimo de 2 anos de acompanhamento/tratamento), laudo psiquiátrico atestando a disforia de gênero (após o mínimo de 2 anos de acompanhamento/tratamento), documentos que comprovem o uso do referido nome (pode ser cartão do banco, cartão SUS, contas de perfis online etc.), laudo médico (caso já tenha realizado cirurgia de readequação sexual, e, em caso de cirurgias realizadas fora do Brasil, deve se realizar a tradução juramental do respectivo laudo), certidões negativas (Certidão da Justiça Militar Estadual: finalidade criminal, Certidão da Justiça Militar da União Federal: finalidade criminal, Certidão de Distribuição Criminal: finalidade criminal, Certidão de Execuções Criminais Estadual: finalidade criminal, Certidão Negativa de Dívida Ativa, Certidão de Quitação com a Justiça Eleitoral, Certidão de Distribuição da Justiça Federal, Certidão de Ações Trabalhistas do Estado de São Paulo , Certidão do Distribuidor Cível Estadual, Certidão do Distribuidor Cível, Executivos Fiscais Estadual, Certidão de Distribuição de Ações e Feitos da Justiça Federal Estadual) que podem ser solicitadas pela Internet, 3 fotos 10×15 de corpo inteiro – corpo e rosto -, (sendo interessante conter pelo menos 1 anterior à transição), 3 cartas a próprio punho de pessoas que reconhecem o uso do determinado nome há pelo menos 5 anos. Esses documentos são a base, dependendo o juiz, ele pode pedir algo a menos ou a mais.
As certidões negativas servem para provar que não se deseja retificar o prenome por possuir pendências ou débitos junto ao órgão emissor, tais como: sonegação fiscal, falsidade ideológica, entre outros.
O grande problema da retificação do prenome civil é que ele dependerá, basicamente, da opinião pessoal do juiz, já que não há lei específica. Se houver sorte de o processo cair em mãos de um juiz “não conservador”, há maiores chances; mas se houver o azar de cair nas mãos de um juiz conservador, ele poderá dificultar ao máximo, pedindo o maior número de documentação possível e, assim, arrastar o processo por anos a fio, ou, ainda, indeferir o pedido. Em um país em que se pode recorrer a tudo em várias e várias instâncias, travestis e transexuais não possuem este privilégio. Se o pedido de retificação for indeferido, não há mais como recorrer em primeira instância, tendo, assim, que recorrer junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Quanto ao direito ao uso do nome social
O Decreto de Lei 8.727/16 dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
A lei 1.820/09 dispõe sobre o uso do nome social na Carteirinha do SUS, em seu artigo 4º, Parágrafo Único, Inciso I:
“Art. 4º. Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos.
Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe:
I – Identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas desrespeitosas ou preconceituosas”.
A possibilidade de usar o nome social no Enem foi aberta em 2014. Naquele ano, foram apresentadas 102 solicitações. Na edição de 2015, o número subiu para 278 e na edição 2016 o número foi para 406. Esta foi uma oportunidade que atraiu mais pessoas travestis e transexuais para prestar o exame, pois diminuiu o constrangimento de serem chamadas/os pelo nome de registro civil não retificado e passarem por situações de preconceito, vexatórias.
O Decreto Estadual nº 55.588/10 dispõe sobre o tratamento nominal das pessoas transexuais e travestis nos órgãos públicos do Estado de São Paulo e dá providências correlatas. A Deliberação 125/2014 do Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo dispõe sobre a inclusão de nome social nos registros escolares das instituições públicas e privadas no Sistema de Ensino do Estado de São Paulo e dá outras providências correlatas. A Resolução da Secretaria da Educação, n 12/2015, estabelece parâmetros para a garantia das condições de acesso e permanência de pessoas travestis e transexuais – e todas aquelas que tenham sua identidade de gênero não reconhecida em diferentes espaços sociais – nos sistemas e instituições de ensino, formulando orientações quanto ao reconhecimento institucional da identidade de gênero e sua operacionalização, além de garantir o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito.
O uso do nome social por estudantes é uma medida que visa evitar a “evasão” escolar dessas/es estudantes travestis e transexuais. O termo correto não seria “evasão” escolar, mas sim “expulsão” escolar, visto que tais estudantes sofrem diariamente com o desrespeito às suas identidades de gênero e nomes; são vítimas de chacotas por parte de alunos e funcionários; sofrem perseguições; são proibidas/os de utilizarem o banheiro com o qual se identificam pelos seus respectivos gêneros; sofrem agressões físicas, e, até sexuais, dentro de banheiros, que são promovidas por grupos de alunos como forma de estupros corretivos. Toda essa conjuntura as/os expulsa da escola e o uso do nome social serve como uma medida paliativa. O correto seria uma capacitação do corpo docente e de funcionários e, posteriormente, uma maior conscientização dos alunos e pais para aceitarem e acolherem estudantes transexuais.
Alguns bancos começaram a aceitar o uso do nome social em crachás de seus funcionários e em cartões de clientes.
O direito ao uso do nome social é apenas uma “muleta” administrativa que não resolve o problema, não chega a ser um direito básico assegurado em si. De nada adianta o nome social se vier em uma carteira escrito: nome social. As pessoas ainda podem agir com transfobia pelo fato de vir evidenciado tratar-se de um/a transexual ou travesti.
A carteira de nome social acaba segregando ainda mais uma população tão marginalizada e segregada.
Leia o 1º artigo: Recortes, conceitos e diferenciação entre as travestis e as mulheres transexuais
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Frida Pascio Monteiro, ativista trans, mestranda em Educação Sexual e militante do PSTU de Fernandópolis (SP)