O mundo ficou horrorizado com as cenas de milhares de Yanomami, crianças, mulheres e homens, reduzidos a corpos esqueléticos que imediatamente lembram os horrores do holocausto nazista e da fome em Biafra, causada por uma guerra civil no norte da Nigéria nos anos 1970.

Mas esse genocídio foi anunciado e planejado pelo Estado brasileiro. Todos sabiam o que estava em curso há muitos anos. Mas em todo esse tempo, os Yanomami tiveram que contar apenas com a própria sorte e resistência contra seu extermínio.

O maior responsável pelo genocídio atual é Bolsonaro, que negou a fome entre os Yanomami e disse que o episódio é “uma farsa da esquerda”. Entretanto, desde o primeiro ano do seu governo, mais de 20 mil garimpeiros (alguns falam de até 40 mil!) invadiram a Terra Indígena (TI) Yanomami. O estímulo veio do próprio Bolsonaro que, enquanto deputado federal, já defendia o fim da Terra Indígena e, como presidente, defendeu a abertura desses territórios à mineração.

O garimpo trouxe destruição e violência. Entre 2021-2022, na TI Yanomami foram desmatados 418 hectares. Os rios e peixes foram assassinados pelo mercúrio e pelas dragas. Nos buracos provocados pela garimpagem, a malária se proliferou. Castigados pela fome e as doenças, e totalmente abandonados pelo governo, a morte abraçou os Yanomami, especialmente os pequenos. Mulheres e adolescentes foram sistematicamente estupradas e prostituídas pelos garimpeiros a troco de um saco de farinha.

Lideranças Yanomami tentaram denunciar e expor ao mundo o holocausto. Pediram por ajuda, mas o governo continuou a apoiar a invasão e negou qualquer auxílio. Em 6 de julho de 2020, Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pediu a Bolsonaro que não enviasse aos indígenas, que padeciam da covid-19, água potável, ventiladores pulmonares e leitos de UTI. Mas não faltou dinheiro para ONGs evangélicas tentarem atraí-los para a religião branca. Pelo menos R$ 840 milhões para apenas uma delas. Desde os tempos coloniais, a catequização foi um meio para liquidar com os povos indígenas.

Enquanto isso, garimpeiros continuavam entrando e saindo impunemente da TI. Ataques fecharam os polos que fazem o atendimento médico de indígenas dentro do território. Alguns deles chegaram a ser filmados e exibidos pela imprensa. “Quando precisam ser socorridos com urgência, os Yanomami que têm celulares são obrigados a pedir aos garimpeiros para usar a internet instalada pela própria operação criminosa”, explicou uma reportagem da Agência Samaúma, revelando a crueldade e o abandono.

Toda essa barbaridade acontecia a 40km de um quartel militar, o 4° Pelotão Especial de Fronteira do Exército. Mas os militares colaboravam com a garimpagem. Dois relatórios da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) revelam que militares do  Batalhão de Infantaria da Selva (BIS) estavam em um grupo de Whatsapp com garimpeiros para avisar sobre ações que seriam desencadeadas na região. Ao mesmo tempo, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, dizia que dados sobre garimpo em terra Yanomami eram “fantasiosos”. Mais uma vez, o exército esteve envolvido em uma de suas terríveis missões históricas: promover o genocídio indígena.


Invasões sistemáticas

Garimpo em terras Yanomami não é de hoje

Em 1972, o poeta Carlos Drummond de Andrade já defendia nos jornais a necessidade de se proteger os Yanomami. Naquela década, a fotógrafa Claudia Andujar mostrou os Yanomami ao mundo, sua rica e complexa cultura e a luta contra sua extinção.

Naqueles tempos, a ditadura militar promovia a expansão do capitalismo sobre a Amazônia, abrindo a região à exploração mineral, ao roubo de terras, exterminando os povos indígenas. De acordo com a Comissão Nacional da Verdade, ao menos 8.350 indígenas foram mortos em massacres, roubo de terras e remoções durante esse período.

O exército sempre considerou os indígenas uma “ameaça à soberania nacional”, ao mesmo tempo que entregava grandes províncias minerais às firmas estrangeiras. O coronel Carlos Alberto Menna Barreto chegou a publicar um livro intitulado “A farsa ianomâmi”, em que defendia uma tese conspiracionista (digna do mais tresloucado bolsonarista) de que os indígenas não existiam como cultura singular, e que foram inventados pelos estrangeiros, pelo príncipe Charles e por Claudia Andujar.

Conquista da TI não acabou com garimpos

Em 1992, os indígenas conquistaram a demarcação do seu território, as minas de ouro foram fechadas e os garimpeiros removidos. Isso foi muito importante e permitiu uma recuperação demográfica da população indígena. Contudo, poucos anos depois, foi retomada por novas invasões ao território. Mesmo sob os governos do PT e Lula, o garimpo continuou a existir na TI. O “povo da mercadoria”, como o xamã Yanomami Davi Kopenawa se refere aos brancos, continuava a trazer fumaça, espingardas, doenças e morte ao seu povo.

O garimpo seguiu enriquecendo políticos e empresários, particularmente em Roraima, onde a própria burguesia tem uma origem garimpeira. O político e ex-governador de Roraima Romero Jucá foi um dos emblemáticos defensores do garimpo nos territórios indígenas. Quando foi presidente da Funai (1986-1988), sob o governo Sarney, garimpeiros bombardeavam com dinamite as aldeias Yanomami.

O atual governador de Roraima é da mesma laia, por isso defende os garimpeiros e profere discursos racistas dizendo que os indígenas “não podem viver como bichos”, e que devem viver como brancos…, desde que (claro!) liberem suas terras e riquezas para os invasores.

Medidas

Como acabar com a garimpagem

Os garimpeiros que invadem as Terras Indígenas não usam mais espingardas e revólveres 38, agora são fuzis e armamentos capazes de derrubar avião. Também estão associados aos traficantes de drogas, a madeireiros e a quadrilhas de grilagem de terras.

O narcogarimpo é formado por milícias que se proliferaram pela Amazônia. O serviço sujo é feito por homens miseráveis, vítimas de outra tragédia social e que muitas vezes são semiescravizados pelos criminosos. São produtos da imensa desigualdade social do país. Bem confortáveis e longe do front estão os verdadeiros senhores do garimpo: políticos importantes, alguns do Congresso Nacional, empresários, gente da polícia e do Poder Judiciário. Esses nunca aparecem nas notícias sobre o desmantelamento das operações criminosas. Muitos deles estão, inclusive, na base de apoio do novo governo Lula.

Atacar a raiz do problema

Diante do horror, o governo decretou emergência médica, e Lula prometeu retirar os garimpeiros da Terra Indígena, com fechamento do espaço aéreo e das rotas fluviais. No entanto, não há como acabar com a garimpagem sem prender e punir seus verdadeiros chefes, que sempre desfrutaram de enorme poder e impunidade.

O garimpo é sustentado por uma complexa rede produtiva que faz o ouro roubado nas Terras Indígenas parar em joalherias do Brasil e do exterior, inclusive em empresas de tecnologia como Amazon, Alphabet (Google), Apple e Microsoft. Todos esses capitalistas se beneficiam com o negócio sujo.

A história já mostrou que não adianta apenas reprimir e retirar o garimpo do território Yanomami, embora essas sejam medidas importantes. O problema é que, mais cedo ou mais tarde, eles sempre voltam, atraídos pela valorização dos produtos minerais, que ganhou ainda mais força no processo de reprimarização da economia brasileira. No capitalismo é assim: conquistas, tal como a demarcação das Terras Indígenas, podem retroceder enquanto o sistema perdurar. O que os capitalistas concedem hoje com uma mão amanhã podem tirar com a outra.

Para acabar com a garimpagem é preciso ir a fundo, adotar medidas que vão à raiz do problema. Primeiramente, atacar toda a cadeia produtiva que permite a exploração criminosa, prender e punir os chefes do garimpo e empresários que se beneficiam do ouro roubado. Mas também é necessário atacar as causas estruturais da imensa desigualdade social que empurra um contingente de miseráveis para os garimpos, para o tráfico e a exploração de madeira em Terras Indígenas.

Também não se pode admitir nenhuma anistia para os genocidas. Bolsonaro, Damares Alves, Eduardo Pazuello e Marcelo Xavier devem ser investigados e punidos, não só pelo Brasil, mas pelo Tribunal Penal Internacional.

Nenhuma anistia a Bolsonaro e seu time do ódio. Mas também nenhuma confiança naqueles que se sentam à mesa com os genocidas do passado defensores do Marco Temporal.

Mobilização indígena nos arredores do Congresso Nacional
Unidade entre cidade e floresta

Enfrentar agronegócio e demarcar todas as terras indígenas

A revogação de vários decretos emitidos por Bolsonaro não é suficiente para enfrentar o trator da morte e a “queda do céu”, expressão de Davi Kopenawa (leia ao lado).

O meio ambiente não será protegido por políticas conservacionistas liberais, como as defendidas por Marina Silva. Não será concessão de florestas públicas à iniciativa privada ou exploração supostamente “sustentável” de madeira, ou um mercado de ativos financeiro de carbono que vai garantir a preservação dos nossos biomas. Isso já se provou uma ilusão.

É preciso enfrentar o agronegócio e os chefes do garimpo para garantir a demarcação conquistada com a Constituição Federal em 1988 (art. 231, §1º), impedir o avanço dos campos de plantio e a exploração mineral.

É preciso apoiar os povos da floresta, inclusive suas organizações de autodefesa que enfrentam a pistolagem. Vencer o genocídio requer uma unidade de indígenas com os quilombolas, camponeses, extrativistas, ribeirinhos, apoiada pelos trabalhadores das cidades, sindicatos e pela juventude. A luta isolada resultará em mais mortes, a vitória da barbárie e o horror capitalista.

A queda do céu

A profecia xamânica de um “apocalipse ambiental”

Na cosmologia Yanomami, os xamãs chamam os espíritos xapiri para fazê-los dançar e protegê-los. Mas a destruição da floresta os afugenta, impedindo que espantem as epidemias que os devoram. Quando a Amazônia sucumbir à devastação provocada pelo “povo da mercadoria” e o último xamã morrer, o céu  desabará sobre todos nós, e será o fim do mundo. A sina dos Yanomami não está dissociada do restante da humanidade.

Assassinatos

O horror Yanomami não é um caso isolado

A política genocida de Bolsonaro se estendeu a muitas outras etnias. “No Maranhão, por exemplo, as etnias Guajajara, Canela, Mermontunré, Apanyekrá Ramkokamekrá e Gavião estão em situação similar à dos Yanomami. Seus territórios foram invadidos, seus rios poluídos, enquanto a fome, as doenças e a morte avança”, explica Raquel Küna Yporã Tremembé.

Os assassinatos de indígenas no estado de Flávio Dino, ex-governador do Maranhão e atual ministro da Justiça, não param. O último foi neste 31 de janeiro, quando Raimundo Ribeiro da Silva, 57 anos, foi assassinado a tiros, na TI Arariboia. Raimundo era casado com uma indígena Guajajara e servidor da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que caracteriza o crime como uma represália.

Em uma única semana foi o terceiro assassinato na região. No dia 24 de janeiro último, o corpo de José Inácio Guajajara foi encontrado às margens da BR-226. Já no sábado (28), o corpo de Valdemar Marciano Guajajara foi encontrado, com marcas de violência, em Amarante (MA). Em janeiro, outros dois jovens Guajajara sofreram atentados, mas felizmente conseguiram sobreviver. Exigimos a mais completa apuração dos crimes e punição exemplar de todos os envolvidos.