Trabalhadores resgatados pelo Ministério Público em abrigo Foto MPT/RS
PSTU-RS

Rejane de Oliveira, militante do PSTU e ex-candidata a governadora do RS; e e Vera Rosane Rodrigues de Oliveira, Presidente Estadual do PSTU-RS

Após o escândalo nacional e internacional em torno do trabalho escravo em Bento Gonçalves (RS), a impressão passada agora é a de que as providências estão sendo tomadas. As vinícolas se desculpam e a terceirizada Fênix, que cumpre o papel de capitão-do-mato, vai ter que indenizar os trabalhadores. O caso sai do noticiário local e entra o encontro do ministro da Agricultura com as empresas agrícolas gaúchas (no primeiro dia do evento Expodireto, em Não-Me-Toque, no norte do estado), com direito a declarações condenando as ocupações de terra pelo MST por parte do representante do Governo Federal.

Os governos federal e estadual, as instituições e a burguesia nacional não querem que se tire conclusões profundas do ocorrido. Para estes, bastou mostrar a face hipocritamente horrorizada por alguns dias. O caso, que é a repetição de inúmeros outros, se continuasse em foco, poderia configurar uma confissão: a promessa civilizatória do capitalismo moderno, de acabar com a escravidão e a servidão, demonstrou-se uma farsa. Pelo contrário, o mundo sob o comando do tal mercado, trilha um caminho inverso: submeter a classe trabalhadora a uma superexploração cada vez mais desumana.

As instituições de Estado, em momentos como esse, mostram sua submissão aos interesses das grandes empresas.

O que se diz e o que se faz

O governador Eduardo Leite (PSDB) qualificou como inaceitável a situação e formou grupo de trabalho para “acompanhar ações já articuladas”.  Já o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, admite que não é caso isolado e adota medidas para proteção dos trabalhadores resgatados, além de outras reuniões de comissão.

O Ministério Público do Trabalho (MPT) propõe um Termo de Ajuste de Conduta (mais um além dos vários descumpridos por esta mesma empresa desde 2017), mais o pagamento da rescisão e uma indenização irrisória para 208 trabalhadores. Com isso, acham que reparam o mal a quem foi submetido a trabalhos forçados, torturado, escravizado e vítima de racismo! Assim, vale a pena para as empresas continuarem com essa “conduta”, a olhos vistos das autoridades há tantos anos.

Já a fala do vereador Sandro Fantinel, de Caxias do Sul foi brutal: aconselhou os agroempresários a contratarem argentinos e não baianos porque aqueles seriam, dentre outras coisas, mais “limpos” e trabalhadores. (Nota: quatro argentinos foram resgatados em junho do ano passado em condições análogas às de escravo no município de Putinga).

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves declarou que o problema é a falta de mão-de-obra, “provocada por benefícios como Bolsa-Família”. Os empresários flagrados cometendo tais crimes não baixam a crista e consideram que, se um trabalhador escolher um auxílio miserável do governo, em vez de se submeter por muito menos (ou de graça) a jornadas de 15 horas, é porque é vagabundo (“só gosta de tocar tambor”). Interessa a esses escravagistas reforçar esses estereótipos racistas.

Estado cúmplice e facilitador das relações de escravidão

Para Karl Marx, o trabalho assalariado é a escravidão moderna. Mas em termos formais e legais, cada trabalhador é dono do seu próprio corpo e vende sua força de trabalho para a empresa quiser. Na prática, tudo isso é falso, pois os trabalhadores, diante do desemprego, não têm escolha, e se submetem “ao que tem”.

Mas isso não é suficiente para o capitalismo nacional decadente e colonizado, protegido pelo Estado. Cada vez mais eles querem burlar esse mínimo de liberdade e conduzem ao trabalho forçado, por vezes pela violência. Não é à toa que praticamente todos os governos se negam a desmilitarizar as polícias, usadas para a proteção das propriedades dos ricos e para sufocar a revolta dos que sofrem a exploração. Também não são casuais as denúncias de que a empresa terceira Fênix se utilizasse de policiais da Brigada Militar, com cassetetes, gás pimenta e choque elétrico.

Mas, que moral tem todos os legisladores de direita e de esquerda que, ao longo das últimas décadas, tem retirado um a um os direitos mais elementares?  Sob a reforma trabalhista, diziam que, ao flexibilizar, ao chamar o subemprego de emprego, ao declarar o trabalho temporário e intermitente como uma forma aceitável de relação trabalhista, tudo isto tornaria o capital mais produtivo. “Quanto mais lucro, mais empregos são gerados”, dizem. Essa farsa está desmascarada para quem quiser ver.

A reforma da Previdência também foi feita com esse argumento e ofereceu a cabeça e os braços dos trabalhadores às empresas por mais tempo de vida, indo além do limite da capacidade de trabalho. Um simples cálculo da atual média de tempo de vida foi argumento suficiente para sacrificar milhões com a aposentadoria tardia.

Mas, nesse caso específico de Bento Gonçalves, ficou em evidência a Lei das Terceirizações, uma forma de segmentar os trabalhadores em subclasses, com menos e menos direitos, provocando maior rotatividade e rebaixando a média geral dos salários. A Vinícola Aurora se isentou de responsabilidade, que seria apenas da Fênix. Alegando sua ingenuidade, declarou: “já cometemos erros, mas temos o compromisso de não repeti-los”. Mas vem repetindo esses erros há muito, pois denúncias houve por vários anos.

Governo Lula deve revogar as reformas e expropriar as vinícolas

O governo Lula passa ao largo da questão. Contrastando com a declaração de intenções do ministro Sílvio Almeida, estão as declarações do Governo Federal, de que não revogará as reformas trabalhista e da Previdência. Muito menos está em seu foco acabar com a Lei das Terceirizações.

Toda vez que o governo e ministros se encontram diante de um conflito mais flagrante de interesses entre trabalhadores e as empresas, saem pela tangente no discurso. Mas na prática posicionam-se pró-capital e latifúndio. Veja-se o recente caso da ocupação do MST a uma fazenda que não cumpria acordo celebrado em 2010.  O ministro do Desenvolvimento Agrário, Paulo Teixeira, do PT, pediu que o MST se retirasse e garantiu que protegeria a propriedade privada.

Se o governo Lula quisesse corresponder às expectativas de justiça social, teria que optar por medidas pelo fim da exploração, que fatalmente se chocariam com os interesses de aliados capitalistas que compõe ou apoiam o governo. Deveria revogar as reformas e, no caso presente, expropriar as empresas que construíram seu patrimônio em base à exploração e trabalho escravo.

No Rio Grande do Sul

Seguindo a linha de medidas vazias de Eduardo Leite, a Câmara de Deputados, através da CCDH, dirigida pela Deputada Laura Sito, formou o  Comitê Interinstitucional para acompanhar as investigações, que não tirou nenhuma medida efetiva. Temos que exigir sim a expropriação das empresas, confisco de seus bens, prisão exemplar aos diretamente envolvidos. Ouvir as vinícolas e ir à Bahia ouvir os trabalhadores são medidas insuficientes. A realidade está mais do que confirmada aos olhos de toda sociedade.

Combater a escravidão e racismo:  essa tarefa é da classe trabalhadora e movimento negro

A classe trabalhadora e o movimento negro não devem se contentar com promessas vagas. Devem exigir dos governos. Mas para isso é necessário mobilização diante de qualquer violência e opressão, sem esperar as medidas institucionais. O exemplo vitorioso dos manifestantes na Câmara de Vereadores de Caxias do Sul, exigindo a cassação do mandato de Fantinel, deve ser seguido, indo além, com a exigência da prisão pelo crime de racismo.

O mesmo vale para a Fênix, mas também as vinícolas, que devem ser expropriadas em benefício dos trabalhadores, que devem controlar a empresa e as condições de trabalho. Exigir que o governo vá além das palavras, fazer protestos nos eventos do agronegócio com o ministro da Agricultura.

Nesse caminho, desenvolver a consciência de que racismo, superexploração e capitalismo andam juntos, e combater qualquer ilusão de que esses problemas podem ser resolvidos por qualquer governo sem romper com o grande empresariado e latifúndio.

Não há capitalismo sem racismo: lutemos por uma sociedade socialista

O caso de Bento Gonçalves não é raro e nem único. A constituição do capitalismo, desde o período colonial, usou da escravidão para sua acumulação primitiva. Na atual fase de decadência, o capitalismo não consegue manter suas altas taxas de lucro sem fazer retroceder a sociedade no seu conjunto, aumentando a pobreza, a brutalidade e o racismo.

Para que não estejamos submetidos ao mercado, que provoca uma concentração absurda de riqueza em poucas mãos, tornou-se uma questão de sobrevivência lutar pelo fim do capitalismo. O desemprego e o subemprego são consequência desse sistema que já provou ser nocivo para a maioria. Dele só se pode esperar barbárie, racismo, xenofobia e fome. O capitalismo perdeu seu direito de governar a sociedade. Tomar as grandes empresas e a economia nas mãos da classe trabalhadora, de quem é produtivo, arrancá-las dos parasitas, é o que pode nos garantir um futuro de igualdade e justiça, sem fome e violência e pondo fim ao racismo. Essa é uma verdadeira sociedade socialista, governada por conselhos populares, desde baixo. Vamos distribuir entre todos o que todos produzirem.