Fabiana Stefanoni, do PdAC da Itália

Já no passado, durante sua primeira prisão no Brasil, escrevemos um artigo sobre o caso absurdo de Cesare Battisti: a história de um homem que ainda é forçado a fugir devido a supostos crimes que datam há mais de cinquenta anos, dos quais não há provas. Como podemos ver neste artigo – em que nos limitamos em grande parte a repetir o que já escrevemos sobre a sua anterior prisão no Brasil – a condenação à prisão perpétua de Cesare Battisti é uma condenação política: é a vingança do Estado italiano contra uma época de lutas operárias que a burguesia italiana não pretende deixar impune. É uma condenação a revelia, que viola até as regras hipócritas da justiça liberal burguesa, regras que, pelo menos em tese, devem dar a todos os acusados ​o direito de se defenderem.

A armação da prisão na fronteira com a Bolívia
Não estamos interessados ​​em saber a razão pela qual Cesare Battisti estava em uma localidade, Corumbá, na fronteira com a Bolívia. Ele argumenta que a prisão foi uma armadilha (1) e que ele estava lá com amigos para fazer compras. Muitos argumentam que ele estava tentando escapar para a Bolívia: se foi assim no que nos diz respeito, ele tinha todo o direito. Nós expressamos solidariedade a este homem em fuga permanentemente pela única “culpa” de ter participado, com suas posições políticas, em uma época de confrontos ferozes de classe, colocando-se, aos olhos daqueles que atualmente detêm as rédeas do poder político na Itália, no lado errado da barricada. Sem dúvida, o pretexto desta nova prisão – “evasão fiscal e lavagem de dinheiro” – é ridículo: uma alegação sem qualquer fundamento. Além disso, Battisti estava com outras duas pessoas e possuíam ao todo 25 mil reais (equivalentes a cerca 6.600 euros) e o limite permitido pelas leis para a exportação de dinheiro é de 10.000 reais por pessoa.

Para além das medidas repressoras da maioria dos partidos burgueses – desde os partidos de direita do Pdao M5S – e ao vergonhoso silêncio cpumplice dos partidos da esquerda parlamentar (como a Esquerda italiana), não passa despercebido o estardalhaço que se criou em torno deste fato. Toda a imprensa italiana, incluindo a chamada “progressista” (2), está jogando o monstro Battisti na primeira página.

Nauseantes são as declarações de Matteo Renzi que se escandaliza pelo fato de Cesare Battisti, após ter dormido duas noites no piso de uma cela, ter-se concedido uma cerveja no aeroporto. Nós, sim, nos escandalizamos pelo fato de Cesare Battisti ser ainda hoje forçado a fugir, enquanto parlamentares e governantes corruptos (incluindo os condenados: Berlusconi se aplica a todos!), industriais exploradores (incluindo aqueles que demitem para transferir a produção no exterior) e banqueiros especuladores que permanecem impunes em seus postos de poder e brindam com champanhe e vinhos caríssimos. Nos escandalizamos pelos artigos e noticiários reacionários da imprensa e da televisão italiana, que dedicam as primeiras páginas e os títulos de abertura ao “criminoso” Battisti e as suas supostas vítimas, reservando apenas algumas linhas invisíveis para as muitas vítimas do capitalismo (desde os milhares de imigrantes náufragos no Mediterrâneo, às inúmeras mortes no trabalho, às centenas de mulheres mortas por violência machista). Escandalizamo-nos, finalmente, por uma Justiça indigna deste nome, sempre propensa ao serviço dos capitalistas, muitos dos quais têm sangue em suas mãos (como Benetton, cúmplices no desaparecimento de Santiago Maldonado na Argentina, cujo corpo sem vida foi recém encontrado) (3).

Uma reconstrução da história
Mas quem é Cesare Battisti e por que ele foi condenado à prisão perpétua? Agora, um escritor perseguido, Cesare Battisti aderiu, em 1977, aos Proletários Armados pelo Comunismo (PAC), uma organização que baseava sua prática política em atos terroristas, separando-se assim da luta das massas. O fundador do PAC foi Pietro Mutti, depois arrependido, o principal acusador de Battisti por homicídios nunca cometidos.

Battisti foi preso de novo em 1979, durante uma série de capturas em Milão, após o assassinato de um joalheiro, Torregiani: foi um assassinato que surgiu de um caso de delinquência comum e foi usado para atacar o movimento de Milão. Battisti foi acusado de envolvimento neste assassinato e, absurdamente, de ter participado também de um homicídio que ocorreu no mesmo dia, quase ao mesmo tempo, a centenas de quilômetros de distância (assassinato do açougueiro Sabbadin em Udine). Ele também é acusado de mais dois assassinatos e de vários assaltos. Em 1981, ele escapou da prisão em Frosinone, onde ele foi preso e fugiu primeiro para a França e depois para o México, voltando depois para a França e, finalmente, chegando no Brasil, após a França aceitar o pedido de extradição por parte da Itália. Vale ressaltar que, se foi o então Ministro da Justiça, Castelli, da Liga a vangloriar-se pelo mérito da concessão da extradição, o pedido já havia sido feito por um governo de centro-esquerda (o governo que tinha Bertinotti, presidente da Câmara e Ministro Paolo Ferrero, ambos de membros de Refundação Comunista).

Uma vingança do Estado burguês
A condenação, em 1990, à prisão perpétua baseou-se, essencialmente, no testemunho não confiável de um “arrependido” (o próprio Mutti) sem provas e sem a possibilidade de Battisti se defender, uma vez que estava no exterior. Existem várias denúncias sobre o uso de tortura e de ameaças na fase de pré-julgamento para extorquir “confissões” (4). É uma condenação que deve ser entendida no contexto das ‘leis de emergência’ do período 1975-1982 e à luz do desejo de vingança póstuma por parte do Estado e da burguesia italiana contra um período de lutas que não pode ser reduzida às políticas aventureiras de alguns grupos que procuraram encontrar atalhos, renunciando, na verdade, a conquistar as massas para uma perspectiva revolucionária. As “leis de emergência” eram um pretexto para romper e reprimir o movimento de lutas operárias e estudantis que, durante uma década, havia preocupado a classe dominante italiana, obrigando-a também a uma série de concessões que, com a cumplicidade do Partido Comunista Italiano e das burocracias sindicais, foram úteis para limitar as lutas aos marcos do capitalismo. Cada organização ou associação anti-burguesa tornou-se suscetível de acusação de “associação subversiva” (ver artigos 270 e 270 ‘bis’, ainda em vigor). Não basta: apenas uma testemunha era suficiente para condenar os militantes da extrema esquerda (é o caso do julgamento de “7 de abril” ou dos casos Sofri, Bompressi e Pietrostefani); as pessoas eram presas por “concurso moral” em homicídio; nos processos (como no de Battisti), houve ainda uso de tortura contra testemunhas. Os aparelhos do Estado aproveitavam-se do relativo refluxo das lutas dos trabalhadores para vingar-se de alguns protagonistas dos protestos daqueles anos. Após a “Lei Cossiga” de 1980, que concedeu redução de pena aos arrependidos, conforme um número de delações, muitíssimos jovens foram marcados pela infâmia de poucos. É o caso de Cesare Battisti, que sempre negou os assassinatos de que foi acusado, e cujas únicas “culpas” são as de não ter negado ter sido membro do PAC (que ele deixou em 1978) e de ter sido protagonista reconhecido nas lutas daqueles anos.

Quanto a nós, nunca tivemos ilusões sobre a Justiça burguesa, seja italiana, francesa ou brasileira: contamos unicamente com a mobilização da nossa classe, dos sindicatos e das associações para se expressarem. Por esta razão, chamamos as organizações políticas classistas e de esquerda, aos sindicatos e as associações para se manifestarem contra a extradição de Cesare Battisti: citamos, por exemplo, o Congresso de CSP-Conlutas no Brasil, que manifestou solidariedade com Cesare Battisti reivindicando a plena liberdade. Se Battisti quiser voltar para a Itália, ele terá que voltar como homem livre.

Notas
(1) Veja esta entrevista publicada em Il Dubbio: http: //ildubbio.news/ildubbio/2017/10/14/interviews-control-battery-breaks-the-tutte-the-appositions-of-terrorism-not-centro- pm-torturou-meu-acusador/

(2) “Um escritor perseguido por suas ideias políticas? Não, um terrorista pluri-assassino deixado impune”, o define assim em termos inequívocos um artigo no Espresso.

(3) Por exemplo, ver artigos e iniciativas publicadas em www.frontedilottanoausterity.org.

(4) O uso de tortura de testemunhas durante o julgamento em Battisti é provado em treze denúncias, por parte dos oito acusados e cinco, por seus parentes: os magistrados, vejam só, “arquivaram” as denúncias.