Um bom filme de ficção científica é aquele que traz questões e reflexões atuais a partir de alegorias de utopias ou distopias futuras. A fantasia serve como distanciamento para que a ideia, por si só, emerja. E são capazes ainda de captar e projetar o “espírito de seu tempo” (Zeitgeist). E, nessa perspectiva, o clássico Blade Runner é imbatível.

A adaptação do livro “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” do mestre da ficção científica Philip K. Dick, foi lançado nas telonas em 1982. Dirigido por Ridley Scott, que havia se tornado conhecido por Alien de 1979, o longa só ganharia o status de clássico anos depois.

Ambientado em 2019, Blade Runner traz um futuro sombrio, com o planeta Terra devastado por guerras e catástrofes ambientais. A única opção para a sobrevivência da humanidade se tornou a colonização de novos mundos e, para isso, foram criados os “replicantes”, androides fabricados por uma corporação chamada Tyrell Corporation para explorarem novos planetas e galáxias. O problema é que as sucessivas atualizações dos replicantes os tornaram mais fortes e inteligentes que os seres humanos, e a revolta foi questão de tempo, até que foram colocados na ilegalidade.

E é aqui que entra o papel do protagonista Deckard (Harrison Ford), um “blade runner”, caçador de androides, espécie de detetive e policial cujo objetivo é exterminar os replicantes. Um detalhe, porém, torna as coisas ainda mais interessantes: os replicantes têm um tempo de “vida” pré-determinado de quatro anos, ao final do qual “morrem”. Sua luta desesperada, assim, é simplesmente pelo direito de existir.

O filme original de Scott é assim, entre outras coisas, uma reflexão sobre o que nos torna humanos. A cena final do androide Roy Batty é de uma beleza extrema, quando o replicante, resignado com seu triste destino, discorre sobre sua própria finitude. Após rememorar as coisas fantásticas que presenciou nos confins das galáxias em sua curta existência, lamenta que “todos esses momentos vão se perder no tempo como lágrimas na chuva.

Toda essa densidade do primeiro filme tem como moldura um clima noir amalgamado com um ambiente futurista, que se tornaram uma marca e um dos motivos pelo qual o longa ganhou o título de cult nos anos seguintes. A trilha sonora de Vangelis também é imprescindível para completar o sucesso tardio do filme, assim como uma dúvida que foi por anos debatida pelos fãs: seria Deckard também um replicante? A dubiedade foi deliberada e só aumentou o mistério que ronda o filme.

Blade Runner 2049
O anúncio da continuação de Blade Runner foi acompanhado com expectativa e também muito medo pelos fãs do longa de 1982. Mesmo que o diretor escolhido por Ridley Scott seja o franco-canadense Denis Villeneuve, indiscutivelmente um dos mais talentosos de sua geração, com um currículo que incluem “O Homem Duplicado” e o ótimo “A Chegada”. Mas a espera valeu a pena e, certamente, o temor é substituído por satisfação quando se acendem as luzes do cinema.

Villeneuve mantém alguns elementos noir e o clima sombrio do primeiro filme, assim como a linha da trilha sonora de Vangelis, mas expande em muito o universo de Blade Runner, trazendo ainda muito mais questões para rachar a cuca do espectador. Passados exatos 30 anos após o primeiro filme, o mundo é essencialmente o mesmo. A Tyrell Corporation vai à ruína com a proibição dos androides e é comprada pelo ricaço Wallace (Jared Leto), que faz uma nova linha de replicantes para atuar nos trabalhos pesados da Terra ou nas colônias espaciais.

É interessante notar que existe uma linha de continuidade com o original, mas não só. Há uma série de referências ao filme de Ridley Scott, aparições de personagens do filme antigo como o próprio Deckard envelhecido, mas também de outros personagens recriados a partir de computação gráfica como se estivessem ainda em 1982 (ou 2019). Mas Villeneuve imprime sua própria marca, tornando o filme reconhecido para os fãs, e trazendo novos elementos, unindo a reverência ao clássico com a coragem de desenvolver algo diferente.

Agora o protagonista é o androide K, responsável por caçar e “aposentar” (matar) uma antiga geração de replicantes cujo tempo de vida ficou em aberto e que sobrevivem foragidos. Atuando junto a seres humanos, K sofre com a discriminação, assim como os outros de sua “espécie”, chamados pejorativamente de “peles falsas”. Um paralelo com a xenofobia nos tempos atuais?

Em meio à caçada de outros iguais, K desenvolve, com o desenrolar dos acontecimentos, uma certa crise de consciência que o acaba levando a um impasse. Villeneuve, porém, desenvolve muitos temas, até mesmo os relacionamentos “artificiais” em tempos que se tenta substituir a solidão com tecnologia. A desigualdade social também é algo explícito: enquanto os ricos gozem das confortáveis colônias espaciais, o resto sobrevive nas intempéries de uma Terra arrasada.

Mas a reflexão principal continua a mesma: o que nos torna “humanos”? O que define nossa individualidade? Seria uma condição inata à espécie ou algo adquirido e desenvolvido através de nossas próprias memórias ou experiências? Qual o limite do livre-arbítrio?

Blade Runner 2049 é muito mais complexo que o primeiro, e com certeza ainda dará muito pano para manga. Interessante notar que sua estreia foi um rotundo fracasso de bilheteria, causado talvez pelo desenvolvimento lento e excessivamente arrastado a um público condicionado com a velocidade das redes sociais e a superficialidade de um tweet.

Seguirá o mesmo destino do original, de angariar reconhecimento só após um par de anos? A ver.