Roberto Aguiar, de Salvador (BA)

A saudade do Carnaval era grande. Foram dois anos sem a folia, devido à pandemia da Covid-19. O retorno da maior festa popular brasileira foi marcado por um número maior de blocos e foliões, que ocuparam as ruas do Norte ao Sul do país.

Além de confetes e serpentinas, protestos e críticas sociais marcaram presença nos blocos, refletindo o efervescente momento político que vivemos no Brasil. Em Salvador (BA), na segunda-feira de Carnaval, milhares de foliões acompanharam a tradicional “Mudança do Garcia”, no Circuito Riachão, que teve como tema a defesa das liberdades democráticas e homenageou o centenário de Osmar Macêdo, um dos criadores do trio elétrico.

Com faixas, cartazes e bandeiras, os movimentos sociais cobraram dos governos diversas pautas, com destaque para as cobranças direcionadas ao governo Lula, pela redução dos preços dos combustíveis, o pagamento do piso salarial da Enfermagem e a prisão dos golpistas da ultradireita.

A militância do PSTU participou da “Mudança do Garcia”, no bloco organizado pela CSP-Conlutas e suas entidades filiadas. O partido levou uma faixa exigindo do presidente Lula (PT) a reestatização da Refinaria Landulpho Alves (RLAM), como forma de garantir combustíveis e gás de cozinha mais baratos à população.

Bloco Cabelo de Fogo

Já em Pernambuco, o bloco “Cabelo de Fogo” desfilou mais uma vez pelas ruas e ladeiras históricas de Olinda, na terça de Carnaval, chamando a atenção dos foliões para o feminicídio e a violência machista contra as mulheres.

O Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no mundo, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH). O país só perde para El Salvador, Colômbia, Guatemala e Rússia em número de casos de assassinato de mulheres. Aqui se mata 48 vezes mais mulheres que no Reino Unido, 24 vezes mais que na Dinamarca e 16 vezes mais que no Japão ou na Escócia.

“Cabelo de Fogo”, o nome do bloco, que também lembra um frevo famoso do maestro Nunes, é uma referência e homenagem ao cabelo vermelho da professora Sandra Fernandes, militante do PSTU, assassinada brutalmente, junto com seu filho Icauã, pelo seu namorado, após o desfile das “Virgens de Olinda”, em fevereiro de 2014.

Acorda Peão

Em São José dos Campos (SP), cerca de 700 foliões brincaram no bloco “Acorda Peão”, puxados pelo samba-enredo “O mundo assistiu”, em referência aos ataques golpistas de 8 de janeiro. A letra também trouxe críticas à desocupação das casas no Banhado, a Bolsonaro e à guerra na Ucrânia.

O bloco trouxe quatro alegorias, que começaram com os trabalhadores fazendo exigências ao presidente Lula (PT), passando pela ida de Bolsonaro para os Estados Unidos, a desocupação de casas no Banhado e terminando com pedidos pela estatização da Avibras.

O “Acorda Peão” é organizado por sindicatos da região do Vale do Paraíba, entre o eles o Sindicato dos Metalúrgicos (filiado à CSP-Conlutas), e tem como tradição “acordar” a população para os perrengues provocados por governantes.

A história real

Escolas de samba recolocam o povo, suas lutas e sonhos no centro da História

Wilson Honório da Silva, da Secretaria Nacional de Formação

Marco Antonio Teixeira / Divulgação Riotur

Nos últimos anos, as Escolas de Samba têm protagonizado um resgate da cultura afro e negra, da “profanização” do sagrado e da preservação da irreverência e crítica que estão na raiz do Carnaval, cuja história está marcada pelo questionamento e inversão dos valores dominantes e pelo povo tomando a praça pública para rir de suas elites.

No Rio de Janeiro, a Beija-Flor transformou o sambódromo em um palco em movimento para dar uma bela e combativa aula de História. “A revolução começa agora / onde o povo fez história / e a escola não contou”, diz o trecho do samba-enredo “Brava Gente! O Grito dos Excluídos no Bicentenário da Independência”, que literalmente desbancou Dom Pedro I e o discurso oficial do 7 de Setembro.

Em seu lugar, a Escola saudou o 2 de julho de 1823, data até hoje festejada pelos baianos como a verdadeira Independência, reconhecendo a luta de indígenas, negros (escravizados e forros), brancos pobres e mulheres, como Maria Quitéria, que colocaram os portugueses para correr.

O povo pobre, negro e trabalhador da periferia também ganhou destaque por meio da obra e história do sambista pernambucano Bezerra da Silva, homenageado pela escola de samba paulista Acadêmicos do Tucuruvi, que levou à avenida o enredo “Da Silva, Bezerra. A Voz do Povo!”.

Um dos trechos do samba-enredo diz: “Tem que ter fé pra viver nesse país / Brasileiro não desiste, nunca vai desistir / A esperança tá em cada um de nós, ôôô / A voz do Bezerra é a nossa voz”.

Em uma das alegorias, a escola de samba se referiu de forma crítica à política do país: chamada de “ladrão legalizado”, a ala apresentou os integrantes usando uma placa escrita “político”. A desigualdade social também foi abordada, com fantasias que faziam referência à fome e ao preconceito.

Em um carro alegórico, a figura de Bezerra da Silva veio em uma cruz, como no disco “Eu Não Sou Santo”, mas carregando uma faixa com os dizeres “Salve o povo da favela”.

O povo da favela também foi homenageado pela Portela, que falou do seu próprio centenário, dando voz aos seus fundadores, baluartes e bambas como Paulo da Portela, Rufino, Caetano, Dona Dodô, Candeia e Monarco. A música afro da Bahia foi tema da Estação Primeira de Mangueira, que levou à Sapucaí o enredo “As Áfricas que a Bahia canta”.

Personagens negros, poucos conhecidos na história, também foram homenageados. A Mocidade Alegre, de São Paulo, contou a história de Yasuke, o primeiro samurai negro. A Viradouro, do Rio de Janeiro, falou sobre Rosa Egipcíaca, a primeira autora negra do Brasil.

Folia e competição à parte, é excelente ver as escolas de samba recolocarem o povo, suas lutas e sonhos no centro da História.