Raiane Assunção, de Rio Grande (RS)
Raiane Assunção, de Rio Grande (RS)
É preciso iniciar denunciando que a maioria das organizações de esquerda, o que inclui algumas organizações de mulheres, não falam especificamente do feminicídio da mulher preta. Falam apenas do feminicídio da mulher branca e fazem um recorte para mulher preta. E nós, mulheres pretas, estamos cansadas de ser “recorte”!
O Estado e a maioria dos movimentos de mulheres, incluindo os de mulheres pretas, consideram feminicídio como ato praticado pelos homens contra as mulheres, que envolva violência doméstica, familiar, menosprezo ou discriminação à condição da mulher. Entretanto, cabe destacar que essa é uma visão limitada, de que o lar é o principal espaço desses acontecimentos. Não podemos isentar o Estado burguês que exerce um papel fundamental nessa barbárie e é por isso que defendemos a destruição do mesmo. A precarização de serviços como saúde, educação e a falta de emprego digno têm custado a vida de centenas de mulheres pretas.
Um retrato da decadência do capitalismo
As condições de vida das mulheres pretas escancaram a decadência do sistema capitalista, visto que são superexploradas em épocas de crescimento econômico e são as primeiras a ficarem desempregadas em épocas de crise. Entre o quarto trimestre de 2014 e igual período de 2017, a taxa de desocupação entre elas passou de 9,2% para 15,9%, aumento de 6,7 pontos percentuais. Entre as mulheres brancas essa taxa foi de 10,6% no final do ano passado, alta de 4,4 pontos em relação aos últimos três meses de 2014.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílios (PNAD), concluiu que no período de 1995 a 2015, a população branca com 12 anos ou mais de estudo dobrou, de 12,5% para 25,9%. A população negra com a mesma escolaridade quadruplicou, de 3,3% para 12%. No entanto, as desigualdades mantiveram-se quase intactas. Mulheres pretas recebem 43% dos salários dos homens brancos, enquanto que as mulheres brancas recebem 76% da remuneração masculina.
Segundo o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), as mulheres que estão na faixa de até 1 salário mínimo são as que possuem maiores incidências de agressões físicas, especialmente as mulheres pretas. A média salarial de uma mulher branca que não sofre violência doméstica é de R$ 11,42 por hora, enquanto, do outro lado, a mulher negra vítima de violência recebe cerca de R$ 7,74 por hora. Mulheres brancas vítimas de violência recebem em média R$ 9,79 por hora.
O feminicídio em cor e classe no país
Segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil é país que possui a maior taxa de feminicídio da América Latina (4.762 em 2013) seguido de México (2.289), Honduras (531) e Argentina (225 em 2014).
De acordo com o Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil, o número de mortes de mulheres brancas caiu de 1.747, em 2003, para 1.576, em 2013. O que corresponde a uma queda de 9,8%. No mesmo período, o feminicídio da mulher preta subiu 54,2%, passando de 1.846 para 2.875 vítimas. O mesmo processo, em menor escala, se observa a partir da vigência da Lei Maria da Penha, aprovada em 2006 pelo governo Lula. O número de vítimas cai 2,1% entre as mulheres brancas e aumenta 35,0% entre as negras. No total, a quantidade de mulheres que havia sido morta em 2013 era 12,5% a mais do que em 2006, ano da aprovação da lei. O mapa não apresentou dados sobre mulheres trans.
No ano passado, só no estado do Rio de Janeiro 4.553 mulheres foram vítimas de estupro, sendo que 56,3% das vítimas são mulheres pretas, enquanto que as mulheres brancas correspondem 37% das vítimas. A residência foi o principal local de ocorrência desse tipo de crime, representando 71,9% dos casos (3.265). Ou seja, de cada dez estupros ocorridos no estado em 2018, sete foram praticados em casa. [1]
Segundo dados lançados em 2014 do Ministério da Saúde, 60% das vítimas de mortalidade materna no país são negras; somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento durante o parto, enquanto do lado das mulheres brancas esse número chega aos 46,2%. Em 2011 a taxa de mortalidade materna era de 68,8 a cada 100 mil crianças nascidas vivas no caso de mulheres negras e de 50,6 para brancas.
As mulheres pretas também são as principais vítimas de homicídios doloso, enquanto as taxas de homicídio de mulheres brancas caíram 11,9% entre 2003 e 2013. Em contrapartida, as taxas de homicídios das mulheres negras cresceram 19,5% nesse mesmo período. O índice de vitimização negra, em 2003, era de 22,9%, isso é, proporcionalmente, morriam assassinadas 22,9% mais negras do que brancas. O índice foi crescendo lentamente, ao longo dos anos, para, em 2013, chegar a 66,7%. [2]
E não podemos deixar de colocar nessa conta outro grupo de mulheres invisibilizadas, desde 2006 houve crescimento do número de homicídios de mulheres indígenas especialmente nos anos de 2012 e 2013, que acumulam 34,8%. Sendo que de 2011 para 2012, o número de homicídios de mulheres indígenas praticamente dobrou. Entre 2003 a 2013 cerca de 266 mulheres indígenas cometeram suicídio e 261 foram assassinadas. [3]
Feminicídio contra as mulheres trans
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, no ano passado foram mortas 163 pessoas trans no país, sendo que 97% delas são travestis e mulheres trans. Essas vítimas têm raça e classe, pois 82% das vítimas são pretas e 65% dos assassinatos são direcionados aquelas que são prostitutas. Essas mulheres não só têm suas existências invisibilizadas como também suas mortes, no ano passado apenas 30% dos casos foram noticiados na mídia.
Essas mulheres são superexploradas pelo capitalismo, 90% da população de travestis e mulheres transsexuais utilizam a prostituição como fonte de renda, devido à baixa escolaridade provocada pelo processo de exclusão escolar, apenas 0,02% do grupo estão nas universidades, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental. Porém o processo de exclusão dessas pessoas começa bem cedo e dentro de casa. Segundo a ANTRA, travestis e mulheres transexuais costumam ser expulsas de casa aos 13 anos de idade. Não é à toa que 60,5% das vítimas assassinadas são jovens entre 17 e 29 anos.
Para aprofundar ainda mais a precarização das vidas dessas mulheres, somente 6 estados do país há a aplicação da Lei Maria da Penha para Travestis e Transexuais: Acre, Pará, Piauí, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo. O Estado não reconhece essas mortes como feminicídio e/ou transfobia, escancarando a transfobia institucional e o não reconhecimento da cidadania dessas pessoas, mesmo depois de mortas. [4]
A revolução será preta, feminina e socialista ou não será!
Entra governo e sai governo e nós mulheres pretas seguimos sendo a carne mais barata do mercado e isso precisa acabar!
É preciso combater as opressões diariamente no conjunto do nosso povo e da nossa classe, mas temos que ter em mente que o machismo, o racismo e a transfobia são ideologias que cumprem um papel social dentro do sistema capitalista. São ideologias da burguesia, que visam a dominação e a superexploração do povo preto e de toda a classe trabalhadora, para assim, aumentar ainda mais os lucros dos grandes empresários.
Alguns setores do movimento preto e do movimento de mulheres pretas, acreditam que o aumento do feminicídio preto está vinculado a antecedentes europeus, que o estupro é um símbolo da cultura branca [5]. Entretanto, essas teorias surgem para dividir a luta do nosso povo e a nossa classe, é utópico acreditar que o fim do racismo e do feminicídio da mulher preta se dará quando o povo preto romper com teorias brancas.
Esses setores propõem que os homens pretos são machistas devido à colonização europeia e não apontam nenhuma ou quase nenhuma saída para a superação do machismo. Por isso, é importante enfatizar que os homens pretos são machistas porque nasceram dentro de um sistema que os educam para serem machistas e não porque foram escravizados por brancos europeus. A escravidão do povo preto surgiu como forma de acumular riquezas para que assim pudesse surgir o sistema capitalista, ou seja, as raízes do sistema capitalista são em cima da opressão, da matança e da superexploração do povo preto. E de lá para cá, desde o surgimento desse sistema, nada mudou, em períodos de crise do capitalismo se tem um aumento da opressão, para gerar mais exploração e assim a burguesia lucrar ainda mais.
O crescimento do feminicídio preto durante o governo de Dilma e o crescimento do desemprego e encarceramento entre os pretos nos EUA durante o governo de Obama são as maiores expressões de que o empoderamento individual é uma política ilusória e deixou evidente que não basta ter preto/a ou mulher no governo, se o programa é burguês. É por isso que nós mulheres pretas não podemos confiar nossas lutas nos resultados das eleições! O governo Bolsonaro representa a Casa Grande no Brasil, um governo racista, machista e transfóbico. E nós mulheres pretas precisamos lutar com a mesma independência de classe que nossas ancestrais quilombolas lutaram e assim, concluir a tarefa que elas não conseguiram realizar: Construir um quilombo socialista no Brasil e na América Latina. É por isso que o Quilombo dos Palmares não deve ser apenas uma lembrança histórica do passado de luta do nosso povo, mas sim uma necessidade para o presente! Precisamos construir uma alternativa de poder nesse país, uma alternativa dos debaixo para derrubar os de cima.
REFERÊNCIAS
[1] Dossiê Mulher 2019 (ISP/RJ, 2019).
[2] Mapa da Violência 2015 – Homicídio de Mulheres no Brasil.
[3] A violência contra mulher – IPEA.
[4] Dossiê dos ASSASSINATOS e da violência contra TRAVESTIS e TRANSEXUAIS no Brasil em 2018.
[5] Mulherisma Africana – Nah Dove.