Daniel Sugasti

Daniel Sugasti

A derrota eleitoral de Alexis Tsipras, líder do partido Syriza, e o consequente retorno ao poder da Nova Democracia [ND] na Grécia, através da eleição para primeiro ministro de Kyriakos Mitsotakis, repulsivo representante de una dinastia política conservadora[1], deve ser motivo de análise e de esforços para extrair lições por parte da esquerda mundial. A seguir, algumas notas sobre este espinhoso tema.

O chamado à reflexão do caso grego cabe, sobretudo, para o amplíssimo setor “progressista” que apoiou o Syriza sem restrições todo este tempo. Um respaldo que, embora agora possa manifestar-se de maneira mais ou menos tímida ou vergonhosa em alguns casos, mostrou-se especialmente inflamado quando Tsipras alcançou seu auge eleitoral em 2015. Fenômeno político que lhe rendeu uma estrondosa vitória nas eleições parlamentares e tornou possível que, pela primeira vez, um partido dito da “esquerda radical” alcançasse o governo de um país.

Nesse tempo de frenesi para que o êxito eleitoral do Syriza se espalhasse o mais possível, personagens como Luciana Genro, da corrente MES do PSOL brasileiro, declarava coisas como esta: “Eu sou Syriza! E não é de hoje”. Chegou inclusive a escrever uma carta para Tsipras, então novíssimo primeiro ministro, dizendo: “Consideramos uma vitória nossa também, do PSOL. O Syriza irradia e alimenta a esperança dos lutadores por toda a Europa e por todo o mundo […] Nós do PSOL apoiamos e apostamos em vocês desde o início […][2]. Na Europa, o convidado especial do ato de encerramento da campanha eleitoral do Syriza em janeiro de 2015 foi Pablo Iglesias, líder do PODEMOS espanhol.

Ligamos uma coisa com a outra porque consideramos que uma derrota política do Syriza, assim como o declínio eleitoral e a evidente crise que corrói o PODEMOS[3], é mais que uma “vitória da direita tradicional”. É o fracasso de toda a corrente neorreformista que tem diferentes expressões nacionais, mas que na Europa não somente se demonstrou incapaz de oferecer uma alternativa de combate à guerra social do imperialismo europeu e mundial contra os povos, como atuou e atua com as mesmas práticas da “velha direita”. Isto se deve, segundo nossa leitura, ao fato de que sua postulação política não passa, nem vai passar de poder serem gerentes da crise de um capitalismo cada vez mais decadente.

Tragédia grega
A Nova Democracia ganhou as eleições parlamentares com 39,8% dos votos [um crescimento notável, se considerarmos que em 2015 teve 27,8%] contra 31,5% do Syriza [36,3 em 2015]. Nas eleições europeias e municipais realizadas em maio, o Syriza teve quase 25%. Se em julho atingiu 32%, em nossa opinião, foi porque em alguma medida pesou a inevitável pressão e propaganda a favor do “voto útil” contra o retorno da “direita”. Mas, de qualquer maneira, o Syriza teve melhor sorte que os “socialistas” do antigo PASOK[4]; conta com 86 deputados e representa a primeira força de “oposição ativa”, segundo palavras de Alexis Tsipras[5]. Mas se vai ser uma “oposição ativa”, permitimo-nos o benefício da dúvida.

Mitsotakis governará com maioria absoluta – a propósito, algo que não ocorria desde 2009 – contando com 158 dos 300 deputados do Parlamento de câmara única[6]. Prometeu “garantir a reativação da economia, com um crescimento ambicioso baseado em investimentos privados, exportações e inovação”. Se necessário for, apressou-se a garantir que honrará seus compromissos com os credores do dinheiro público grego, sempre em troca de um “pacote completo de reformas” [7].

O novo primeiro ministro grego contou com a felicitação de figuras como Putin, Jean-Claude Juncker presidente da Comissão Europeia, o presidente turco Erdogan e claro, com a benção de Angela Merkel. Mario Centeno, o presidente do Eurogrupo, fez o mesmo em Bruxelas e, além disso, insistiu em que o novo governante deverá “respeitar os compromissos” com relação à dívida assumida por seus antecessores, incluído o próprio Tsipras, como veremos.

A classe trabalhadora não pode alentar nenhuma confiança neste novo governo. Mitsotakis, que foi ministro de Administração Pública de Andonis Samarás, é lembrado por ter despedido milhares de trabalhadores estatais durante o auge da crise grega. Tampouco se salva da sombra da corrupção. Sua esposa, Mareva Grabowski-Mitsotakis, figurou nos conhecidos Papéis do Panamá [Panamá Papers] como proprietária de 50% de uma empresa com sede nas Ilhas Cayman, administrada por um fundo que operava nas Ilhas Virgens. O mesmo foi julgado por ter aceitado subornos da Siemens em 2008, algo que desnudou sua estreita relação com a empresa.

No gabinete de Mitsotakis, além disso, há caras conhecidas. A pasta mais importante, a da Economia, vai ser exercida pelo liberal Christos Staikuras, ex vice ministro deste departamento durante o governo de Samarás, quando a Grécia assinou o segundo plano de resgate. Mas os ministros mais polêmicos são os que provêm do mundo da extrema direita: Adonis Georgiadis, agora à frente de Crescimento e Investimentos, e Makis Voridis, chefe da Agricultura. Georgiadis começou sua carreira no partido ultradireitista Laos, e em 2012 migrou para o ND. Foi ministro da Saúde com Samarás, e durante esse período encarregou-se de aplicar no sistema de saúde uma reforma que deixou mais de 2,5 milhões de desempregados sem assistência médica, além de demitir 1.500 médicos. Voridis, na década de 1980 dirigiu as juventudes do EPEN, uma força fundada pelo líder do golpe militar de 1967, substituindo Nikolaos Michaloliakos, fundador e atual líder supremo dos neonazis de Aurora Dourado.

Pois bem, esta tragédia grega é fonte de muitas lições e merece toda a atenção dos/as lutadores/as operários/as e dos povos explorados: a primeira é que foram Tsipras e o Syriza os que, nos últimos quatro anos, ressuscitaram e aplainaram o caminho para o poder da podre direita ultraconservadora e ultraneoliberal agrupada no ND, que agora incorpora ministros de extrema direita.

E mais, a derrota do Syriza ficou selada quando ganhou as eleições em 2015 prometendo uma coisa e, uma vez no poder, fez exatamente o oposto.

O “giro” de 180 graus
Em 25 de janeiro de 2015, Tsipras chegou ao poder em meio a uma crise econômica e humanitária catastrófica, capitalizando o desgaste e o justo cansaço popular com a submissão à Troika europeia [o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia e o Fundo Monetário Internacional] que haviam demonstrado o governo socialdemocrata do PASOK de Yorgos Papandreu, em 2011, e seu sucessor, o gabinete conservador do ND, Andonis Samarás. Eles aplicaram rigorosamente os impiedosos planos de ajuste contra os direitos da classe trabalhadora e materializaram a entrega dos recursos nacionais ao capital imperialista, principalmente o alemão. Tsipras, para obter rendimento eleitoral, prometeu claramente que não aplicaria as receitas dos memorandos da Troika.

Em poucos anos, a aplicação desse roteiro neoliberal, havia praticamente quebrado o país. O grau de destruição dos serviços públicos, o aumento dos níveis de desemprego e a queda do nível de vida foram aterradores.

Em 2014, o PIB grego caiu 25%; o desemprego rondava 26%; e 23% da população estava na pobreza. O investimento em saúde caiu 9%. As aposentadorias foram reduzidas entre 35 e 50%. A dívida “pública”, que em 2008 representava 113% do PIB, saltou para 175%.

É óbvio que, nesse terrível contexto, o discurso do Syriza, de que uma vez no poder enfrentaria os “credores” da injusta e impagável dívida grega – ainda que nunca propôs uma ruptura e sim uma firme “renegociação” dos tratados – e que, assim, reverteria o desastre causado pela Troika e seus agentes locais, gerou uma onda de esperança generalizada. O Syriza, além disso, estava associado às dezenas de greves e mobilizações que se deram desde o começo da crise. ND e o PASOK, após anos aplicando os ajustes, estavam “queimados”, e a popularidade de Tsipras não parava de crescer. Para o eleitor, indignado e arruinado, o Syriza representava o “novo”, uma alternativa “possível” para expressar seu repúdio à Troika…o que mais se podia perder?

Assim, Tsipras ganhou as eleições e isso repercutiu no mundo inteiro. Entretanto, não passou muito tempo para que essa legítima esperança e a compreensível confiança que a maioria do povo grego depositou no Syriza se transformasse em mal estar e agora, em rechaço eleitoral. Não que o Syriza tenha desaparecido do quadro eleitoral/parlamentar, nada disso, mas aquela relação de confiança com as massas empobrecidas e o peso político que tinha antes de ser governo, não voltarão a ser os mesmos. Inclusive, não se pode descartar que, no futuro e produto da experiência das massas com suas medidas, o Syriza sofra uma crise e processo de desintegração comparável ao do PASOK.

Provavelmente, existe uma data emblemática que inverteu a relação do Syriza com as massas trabalhadoras gregas: 5 de julho de 2015.

O próprio Tsipras convocou um referendo sobre a aceitação ou não do terceiro “resgate” ou memorando que a Troika europeia queria impor, o que geraria mais ajustes e mais miséria.

A maioria do povo grego, 62%, apesar de uma campanha de terror cheia de ameaças apocalípticas e orquestrada pela imprensa burguesa e pelo capital financeiro, teve a coragem de dar um rotundo Oxi (Não) à continuidade da extorsão e do ciclo endividamento-austeridade que levou o país à beira da ruína.

Esse Oxi foi categórico e valente, já que a arrogante Troika havia emitido em 25 de junho um ultimato ameaçando a expulsão da Grécia do euro. Isto é, o povo grego sabia que ao dizer não a esse ultimato enfrentava a possibilidade quase certa de um Grexit, com tudo o que isso podia implicar.

Pois bem, é sabido o que Tsipras fez com esse resultado, mas é mais interessante que nos conte Yannis Varoufakis[8] que era então seu ministro de Finanças. Ainda em meio aos festejos nas ruas, e do pânico do capital financeiro e da crise quase terminal do ND e dos demais partidos associados até esse momento com os memorandos, “Tsipras convocou uma reunião com o líder interino do Nova Democracia e os líderes dos outros partidos pró Troika, que ele necessitava no parlamento para aprovar o terceiro resgate (memorando). Foi neste momento que o Nova Democracia se retirou do lixo da história e se colocou em um caminho que leva, com precisão matemática, à vitória eleitoral” [9]

Tsipras traiu a confiança da maior parte do sofrido e valente povo grego. A partir daí – que tenham ou não votado nele, de novo agora em 2019 – para muitos gregos o Syriza passou a ser essencialmente “igual aos outros” partidos submissos à Troika. No máximo, muitos talvez o vejam como um mero “mal menor”.

Um “governo da esquerda radical” traiu a quase última esperança da maioria do povo – imaginemos o estrago que isto deve causar na consciência das massas trabalhadoras -, e continuou açoitando-o.

Entretanto, o neorreformismo, tomado como corrente mais geral, não esteve e nem está disposto a fazer este balanço. Consumada a traição monumental de Tsipras, Pablo Iglesias declarou: “infelizmente é a única coisa que podia fazer”. E acrescentava: “Na política não contam as razões não, tua capacidade de diagnóstico, conta o poder e um país do sul tem muito pouco poder”.

Errejón, então secretario político, foi mais longe e afirmou que, em uma situação similar, PODEMOS faria o mesmo: “Este acordo, difícil, como Tsipras reconheceu, é o acordo possível ante a intransigência dos líderes europeus, a melhor solução possível, ainda que não esteja feito pensando no futuro do euro nem da UE […] Nós apoiaríamos o que o Parlamento grego apoiar e seríamos respeitosos com o que eles apoiaram” [10].

Da mesma forma, ainda que incorporando uma ou outra crítica frouxa, os Anticapitalistas espanhóis – partido do ex Secretariado Unificado no Estado espanhol, que se dissolveu no PODEMOS -, escreveram depois que Tsipras rasgasse o resultado do referendo que rechaçou a extorsão da Troika: “Todo o Syriza tinha como objetivo explícito avançar para o socialismo, tanto o setor de Tsipras como o setor mais radical. Então que é legítimo perguntar-se o que impediu de cumprir esse objetivo […] É legítimo fazer a pergunta, a não ser que na realidade acreditemos que a direção do Syriza somente dizia que o socialismo era seu objetivo para ‘enganar as pessoas’. Nesse caso cairíamos em um moralismo próximo do termo ‘traição’” [11].

O ex SU, assim, faz malabarismos para justificar o injustificável: não somente dissemina a falsidade de que Tsipras e o Syriza como um todo eram “socialistas” como asseguram que nunca quiseram “enganar” o povo e muito menos traí-lo! E escreveram esta trapaça quando Tsipras jogou no lixo o resultado favorável ao Oxi e sentou para “negociar” com os abutres da Troika para dar uma nova martelada na cabeça do povo grego. Se isso não é “traição” para o ex SU, o que seria?

Este tipo de caracterização é inaceitável. A verdade é que o imperialismo ofereceu o garrote e Tsipras o utilizou com a mesma – ou talvez maior – eficiência que seus antecessores. Não somente pisoteou o rechaço popular ao programa de austeridade da Troika, como impôs um mais oneroso.

Seu governo, em coalizão com Gregos Independentes, um partido ultranacionalista e xenófobo, foi uma sucessão de medidas de austeridade: cortes salariais, aumento de impostos, e uma descarada entrega de riquezas ao imperialismo tanto pela via do pagamento da “dívida” como por meio de privatizações de empresas estatais a preços de leilão.

Para este fim, criou o Fundo de Privatização grego (HRADF), que vendeu ao capital estrangeiro 5% da participação na empresa de telecomunicações OTE; 67% da Autoridade Portuária de Salónica; e 66% do gás natural posto em operação pelo Estado. A isto se somam 22 milhões de euros pela venda do serviço de manutenção da Companhia de Ferros gregos, e outros 1.100 milhões de euros em troca da concessão do Aeroporto Internacional de Atenas, entre outras empresas ou explorações públicas [12]. Todo o arrecadado desta enorme licitação serviu ou servirá para “honrar” a dívida com os bancos alemães e de outros países imperialistas.

A esta altura, imaginamos que não faltará quem diga que nem tudo foi tão “mal”; que Tsipras sim fez “o que pode” para aliviar a crise humanitária do país arruinado que recebeu. Com efeito, foram tomadas tíbias medidas, absolutamente insuficientes para mitigar casos de extrema pobreza.

O Syriza criou, por exemplo, um “subsídio social” que se viabilizou por meio de um cartão para socorros básicos, que concedia de 70 a 220 euros por mês [entre 9 a 30% do salário mínimo grego, um dos mais baixos da Europa] a aproximadamente 32% da população. Como se pode notar, é difícil acreditar que isto fosse sequer uma “reforma”. Na realidade, não passa das conhecidas medidas de assistencialismo social, “compensatórias”, recomendadas pelo mesmíssimo Banco Mundial, pensadas exatamente para conter possíveis explosões sociais e criar, para quem as aplica, uma clientela eleitoral dependente dessas migalhas. Uma espécie de “bolsa família”, se tomarmos o exemplo brasileiro.

Mas o povo, que queria uma mudança radical, não parou de lutar. Tsipras respondeu reprimindo manifestações e pelo menos oito greves gerais, considerando que o povo grego não ficou de braços cruzados nem se contentou com migalhas enquanto o saqueio continuava tal como antes do “novo” [13]. O gabinete do Syriza aceitou o acordo de Merkel com o presidente turco Erdogan para reprimir os refugiados. Também fez um acordo com o genocida Benjamin Netanyahu, que selou uma aliança entre a Grécia, o Chipre e Israel para que, com o aval de Trump, as multinacionais explorem o Mediterrâneo oriental.

O Syriza colhe o que semeou.
Concretamente, as massas trabalhadoras não sentiram nenhuma mudança favorável com a chegada de Tsipras ao poder. Pelo contrario, sentiram em seus bolsos, e em seus estômagos – talvez com mais dureza – os efeitos dos planos da Troika que, agora, eram aplicados por um governo “de esquerda”.

Assim, o descontentamento cresceu, e isso se refletiu no crescimento das lutas nas ruas e nas greves de todo calibre. O descrédito também se expressou nas eleições europeias e municipais de maio passado, quando o Syriza obteve só um quarto do voto popular.

Talvez tomando como certo o futuro final de seu mandato, na última sessão da legislatura o Syriza tentou empregar no aparato do parlamento dezenas de seus correligionários, muitos deles parentes diretos de altos dirigentes do partido. O escândalo ante semelhante ato de nepotismo, que fortaleceu ainda mais o ND e o resto da direita tradicional, fez com que Tsipras baixasse de 64 para 32 o número dessas duvidosas “contratações”, realizadas de forma desesperada e grosseira enquanto o barco afundava.

Antecipadas as eleições pelo próprio Tsipras para 7 de julho, por mais que provavelmente soubesse que as perderia, o Syriza tratou pelo menos de salvar os móveis e fez promessas eleitorais tais como meio milhão de empregos e um ligeiro aumento do salário mínimo, agora situado em 742 euros, menos da metade do alemão.

Mas isto não foi suficiente. Este reformismo sem reformas não tinha saída nem sequer em seu próprio terreno, o eleitoral. A confiança que alguma vez recebeu apodreceu há muito tempo. O certo é que, para muitos que apoiaram Tsipras em 2014-2015, o Syriza transmutou-se e foi absorvido no “sistema” que um dia prometeu enfrentar.

Para selar seu governo com um legado sinistro, em agosto de 2018 o senhor Tsipras concluiu o terceiro memorando com os “credores internacionais”, o mesmo que o povo havia rechaçado em julho de 2015. Mas isso não significou nem significará o fim da austeridade. Pelo contrario. Na realidade, poderia se dizer que Tsipras aceitou um quarto memorando, sob a aparência de “concluir” com o terceiro.

A maior parte do “resgate” europeu à Grécia agora, em termos técnicos, foi “reprogramada”: mais de cem bilhões de euros de reembolsos que o Estado grego havia se comprometido a realizar entre 2021 e 2030 foram postergados para depois de 2032 – não sem que isso fizesse com que os juros também aumentassem, com certeza – . Em troca, o Syriza aceitou um monitoramento da economia grega por parte de Bruxelas e uma austeridade permanente até 2060; em outras palavras, comprometeu a Grécia com políticas de austeridade – excedente orçamentário de 3,5% até 2022 e de 2,5% posteriormente – até essa data. Uma jogada redonda e um golaço do capital financeiro. E tudo graças ao Syriza.

De um lado, o novo governo do ND não terá a corda do pagamento da dívida tão apertada em seu pescoço – pois terá “mais tempo” para pagar – e, assim, terá mais oxigênio; de outro, a austeridade, sempre em nome de uma dívida ilegítima e impagável, continuará – se o povo trabalhador não o impedir, evidentemente -, durante mais quarenta anos.

A verdade é que a Troika não pode se queixar do trabalho de Tsipras nem do tipo de “esquerda” que o Syriza configura.

Derrotar os planos do imperialismo, o novo governo do ND, e desmascarar o Syriza nas ruas
Desde 2010, os governos burgueses gregos aceitaram três “resgates” dos bancos europeus, que juntos somaram 280 bilhões de euros. Isso se fez em troca de empreender a mais impiedosa guerra social contra a classe operária e o povo gregos, como ocorre em toda a Europa em diferentes escalas.

Para a Grécia, os três memorandos significaram, até agora, pelo menos 450 dolorosas leis de austeridade que afetaram quase todos os âmbitos do Estado e, como mencionamos, a destruição de 25% de seu PIB em uma década. O mais macabro é que tudo isto se fez em nome de “salvar” a Grécia do espantalho chamado Grexit. Havia que manter a Grécia na União Europeia (UE) e no euro, a qualquer custo. A realidade é que o povo nunca foi “salvo”. O povo continua passando fome e desemprego. Os que foram salvos foram os bancos e as empresas imperialistas, sobretudo as alemãs, e um setor da burguesia financeira grega, a facção mais parasitária.

Na saída de Tsipras, o desemprego chega a 19,2%, o maior da Eurozona, mas entre a juventude supera 40%. Os jovens não param de emigrar, e isso também incide na tímida e artificial “redução” do desemprego total [14]. A Grécia se situa no terceiro posto do tétrico ranking dos países europeus cuja população está mais exposta à pobreza: está só atrás da Romênia e a Bulgária.

A economia, ainda que sem memorandos oficialmente assumidos, permanecerá “vigiada” pelos parasitas internacionais que devoram as riquezas gregas. A dívida, que quando o Syriza assumiu estava em 175% do PIB, agora representa 181%. Isto é, a entrega aumentou. Estima-se que o país heleno terá que esperar até 2033 para recuperar o nível que seu PIB tinha em 2009.

O que acontecerá com o Syriza? É uma boa pergunta.  Dimitris Rapidis, seu conselheiro de comunicação disse recentemente: “Syriza é Tsipras. O partido perdeu capacidade desde 2015, hoje é mais débil que então, e cabe  perguntar o que ocorrerá se no domingo [7 de julho] perdermos as eleições por uma diferença maior que em maio. Não descarto que possa dissolver-se”[15]. Tal coisa, até agora, não pode ser assegurada, O neorreformismo, com suas diferentes variantes, por apoiar-se em uma determinada situação de crise econômica e ainda possuir uma base social, além de haver demonstrado que pode ser muito útil ao imperialismo, é resiliente.

Mas, no caso do Syriza, talvez já não caiba caracterizá-lo sequer de neorreformista. Syriza, após sua passagem pelo governo, converteu-se em uma espécie de novo PASOK, um partido social-liberal completamente adaptado às instituições do Estado burguês e fiador dos interesses do imperialismo. Não é casual que o partido de Tsipras desde há muito tempo seja um convidado permanente nas reuniões da cúpula socialdemocrata europeia. Sua base social também se alterou neste tempo – tanto sua base partidária como eleitoral – já que atraiu em grande medida o eleitorado tradicional do PASOK, e foi perdendo muito entre os setores operários e populares empobrecidos que votaram em Tsipras em 2015. Na cúpula do Syriza, além disso, integraram-se ex dirigentes do PASOK, sobretudo depois da série de expurgos que Tsipras fez em sua própria “ala esquerda”.

A crise de direção revolucionária, isto é, a ausência de uma alternativa operária e socialista – que pudesse apresentar um programa revolucionário para resolver os problemas das massas gregas diante da guerra social da Troika – contribuiu para que a raiva contra Tsipras seja agora capitalizada pela “direita”. Imagine que o ND inclusive deu-se ao luxo de fazer campanha eleitoral prometendo “reverter” algumas medidas de austeridade adotadas pelo Syriza!

Mas, essa mesma crise de direção revolucionária pode permitir que outra formação neorreformista, algo associado à “nova política” tão em moda ou o próprio Syriza, lucre eleitoralmente em um futuro com o desgaste do novo governo grego. Não. O Syriza não desapareceu. Sua passagem pelos palácios deixaram lições para aqueles que quiserem analisa-las, mas seu efeito nocivo não acabou.

Perguntamos: como Luciana Genro e todos/as aqueles/as que aderiram a essa moda eleitoral chamada Syriza em 2014-2015 explicam este processo? Continuam ou continuarão “sendo Syriza”? O que dizem do fracasso eleitoral, da crise e do desmoronamento do PODEMOS no Estado espanhol? O que dizem das medidas de austeridade, mais ou menos veladas, do governo de Portugal, sustentado pelo PCP e pelo Bloco de Esquerda?

Como colocamos desde 2015, é imperativo analisar o caráter de classe e o programa de um partido antes de sair semeando ilusões nele. A questão que sempre discutimos foi que, pelo caráter de classe de seu programa, sua direção e sua base social, o Syriza nunca significou uma alternativa real para enfrentar os planos colonizadores do imperialismo, assim como não são o PODEMOS no Estado espanhol nem França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon.

Mais do que nunca afirmamos que continua sendo uma tarefa imprescindível dos marxistas – em se tratando de superar a crise de direção revolucionária – o combate diário para desmascarar estes reformistas sem reformas, agentes do capitalismo decadente. Estas correntes não somente desmobilizam e desmoralizam nossa classe, como abrem o caminho para a direita tradicional e, em alguns casos, facilitam o trabalho nefasto da extrema direita.

Na Grécia, afortunadamente, o partido neonazi Aurora Dourada perdeu a metade de seu apoio eleitoral de 2014 e não obteve nenhum mandato parlamentar. Mas, em seu lugar surgiu Solução Grega, que se não é abertamente neonazi é uma formação de extrema direita, ultranacionalista e extremamente religiosa. Este setor, abominável, conseguiu 3,7% e assim, conquistou dez cadeiras parlamentares. Estes partidos neonazis, de extrema direita, racistas, e xenófobos, em geral aproveitam o espaço aberto pelo abandono da luta contra a UE, o euro e as medidas de austeridade que o neorreformismo realiza, que apregoa que essas instituições são ou poderiam ser “democráticas” ou “para o povo”. E isso quando não é o próprio neorreformismo quem aplica as políticas de fome que emanam de Bruxelas. Dessa forma, outra lição é que o neorreformismo não é capaz de combater e derrotar a extrema direita. Pelo contrario, com sua pusilanimidade e capitulação à Troika e à UE, somente a fortalece.

A experiência do Syriza – a única que chegou ao poder central de um país – mas também a do PODEMOS, o Bloco de Esquerda, etc., só reafirma que não existe saída para a crise econômica e para a guerra social que os capitalistas empreenderam contra nossa classe que possa dar-se “por dentro” do sistema; “por dentro” dos gabinetes e dos parlamentos burgueses; “por dentro” no caso da Europa, da UE e do euro.

Estes partidos, que chamamos de neorreformistas, não tem nada de novo. Pior ainda, na medida em que estão imersos em uma situação de crise econômica muito deteriorada – quase sem margem para fazer concessões duradouras à classe trabalhadora -,e que devem lidar com um cenário político muito polarizado por causa da guerra social infligida pela UE e pelo imperialismo, acabam sendo mais efêmeros como corrente que seus antecessores, os partidos reformistas “clássicos” do século XX.

A única saída realmente efetiva passa por organizar-nos ou reorganizar-nos; unir-nos nas lutas; enfrentar, com métodos de democracia operária e nas ruas, os planos do imperialismo e de seus agentes diretos em nossos países, os governos burgueses. Tenham estes a máscara que tiverem. Sejam de “direita” ou de “esquerda”.

Mais uma vez, a realidade confirma o veredicto histórico sobre o debate entre reforma do capitalismo ou revolução socialista.

Não se pode “reformar” nem “democratizar” aparatos de guerra contra os trabalhadores como a União Europeia e o euro, como afirmou o Syriza ou propõe o PODEMOS; a única coisa que cabe é destruí-los por meio de uma política de impulsionamento à mobilização operária e popular. Não há capitalismo “mais humano”, “mais ecológico”, nem que se interesse pelo “povo”. Há que se entender que são eles ou nós. Não há meio termo, em perspectiva estratégica.

No lugar da UE e do euro como instrumentos do capital, a classe operária e seus aliados explorados e oprimidos devemos lutar por conquistar uma Europa dos trabalhadores e dos povos, os Estados Unidos Socialistas da Europa, como um passo adiante na luta pela destruição do imperialismo e pela instauração da sociedade sem classes em nível mundial.

[1] Kyriakos Mitsotakis é filho de Kostas Mitsotakis, ex primeiro ministro na década de  noventa; irmão de Dora Bakoyanis, ex prefeita de Atenas e ministra de Cultura e Relações Exteriores, e tio de Kostas Bakoyanis, filho da anterior e recém eleito prefeito de Atenas. Sem dúvida, uma família muito “afortunada”.

[2] Ver: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/luciana-genro-compara-luta-do-psol-a-do-partido-grego,6ff120014a82b410VgnVCM10000098cceb0aRCRD.html

[3] Ver: http://www.corrienteroja.net/el-desmoronamiento-de-podemos/

[4] O PASOK, o partido socialdemocrata grego, obteve 4,6% [13 deputados] em 2015. Dilacerado pela crise e suas medidas do passado recente, está em decadência completa. Em 2019 apresentou-se como Movimento pela Mudança [Kinal, pela sua sigla em grego], e obteve 8,1%.

[5] A título de contextualização: Antarsya, uma coalizão anticapitalista que não faz  parte do Syriza, obteve 23.191 (0,41%) votos. Unidade Popular, uma ruptura com o Syriza que data de 2015, obteve 15.930 (0,28%) votos. Em setembro de 2015 colheu 155.320 (2,86%) votos. Ambos ficaram sem representação parlamentar. O KKE [Partido Comunista Grego] manteve-se praticamente no mesmo nível de 2015, alcançando 5,3%.

[6] Sempre vale lembrar que, segundo o sistema eleitoral grego, o partido mais votado obtém um “bônus” de 50 deputados.

[7] Ver: https://www.istoedinheiro.com.br/kyriakos-mitsotakis-toma-posse-como-primeiro-ministro-da-grecia/

[8] Atual líder do DiEM25 [Movimento para a Democracia na Europa 2025], que obteve 3,4% da votação, o que lhe valeu nove assentos no Parlamento.

[9] Ver: https://vientosur.info/spip.php?article14974

[10] Ver: https://www.eldiario.es/politica/Podemos-respalda-Tsipras-Apoyamos-Parlamento_0_409809150.html. Ver também: https://www.elmundo.es/espana/2015/08/21/55d6f95522601d44058b457a.html

[11] Ver: https://www.anticapitalistas.org/art%C3%ADculos/la-izquierda-despues-de-syriza/. O destaque é nosso. Esta nota também foi publicada no site Viento Sur, ligado ao ex SU.

[12] Ver: https://www.elciudadano.com/mundo/grecia-sigue-subastando-sus-empresas-publicas-para-pagarle-al-fmi/06/21/

[13] Ver: https://www.elmundo.es/economia/2018/05/30/5b0eebe646163f9f7f8b4591.html

[14] Desde o inicio da crise,  estima-se que meio milhão de jovens com alta formação abandonaram o país.

[15] Ver: https://elpais.com/internacional/2019/07/06/actualidad/1562444193_323902.html

Tradução: Lilian Enck

Publicado originalmente no Portal da LIT-QI