Seleção feminina protesta contra o assédio e o machismo Fotos: Richard Callis/SPP/CBF
Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

Rogério Caboclo foi afastado da presidência da CBF por 30 dias. O motivo foi a denúncia de assédio moral e sexual a uma funcionária da entidade. As acusações envolvem abusos ocorridos desde abril de 2020, entre os quais, um episódio no qual Caboclo a teria chamado de “cadelinha” e oferecido um biscoito de cachorro para ela comer, simulando latidos.

Numa gravação divulgado pelo programa Fantástico, da Rede Globo, é possível ouvir o dirigente chegando ao cúmulo de perguntar se a funcionária se “masturbava”. Apesar de mencionar a promessa de não falar mais de assuntos particulares com ela –o que colabora com a versão de que os abusos eram recorrentes– Caboclo constrange-a com questionamentos sobre sua situação amorosa e comentários a respeito da própria vida conjugal e sexual.

Há relatos de constrangimentos sofridos em viagens e reuniões com o presidente, inclusive na presença de outros diretores, como exposições da vida pessoal da vítima diante de outros funcionários, falsos boatos criados pelo presidente acerca de supostos relacionamentos que ela teria tido no âmbito da CBF e pedidos do dirigente para que escondesse bebidas em lugares previamente combinados, para ele beber ao longo do expediente.

Já se sabe que abusos eram de conhecimento dos diretores e vice-presidentes da CBF, pois parte dos episódios teria acontecido em reuniões com a presença de todos os diretores. Além disso, há pelo menos um mês e meio, a funcionária teria relatado para colegas e superiores que vinha sendo assediada pelo presidente e solicitado afastamento de suas atividades por motivos de saúde, o que evidencia que a diretoria não apenas sabia, mas era conivente, e nada teria feito para coibir a situação.

Machismo no futebol é situação recorrente

A denúncia contra Rogério Caboclo, é mais um na longa lista de escândalos de machismo no futebol: atletas e dirigentes acusados de violência doméstica, crimes sexuais e feminicídio; torcedoras e repórteres femininas assediadas nos estádios; jornalistas e comentaristas linchadas nas redes sociais; jogadoras vítimas de preconceito e chacota; só para citar alguns exemplos.

Aliás, o presidente da CBF não é o único que enfrenta uma acusação de assédio atualmente. No final do mês de maio, o camisa 10 da seleção brasileira, Neymar Jr., teve seu contrato com a Nike rompido por supostamente se negar a cooperar com uma investigação de assédio sexual à uma funcionária da empresa em 2016.

O tratamento diferenciado e a falta de oportunidade e apoio dispensado às atletas, dirigentes e equipe técnica e de arbitragem femininas também indicam o grau de machismo no esporte. O caso da Seleção Brasileira de Futebol Feminino é emblemático. Considerada a melhor da América do Sul e a 6ª no ranking da Fifa, teve uma de suas atletas, Marta, eleita por 5 anos seguidos pela Fifa (de 2006 a 2010) e novamente em 2018, a melhor jogadora de futebol do planeta.

Desde que disputou sua primeira partida em 1986, a seleção participou de todas as edições da Copa do Mundo Feminina e dos Jogos Olímpicos, além de outras competições como os Jogos Pan-Americanos, o Campeonato Sul-Americano de Futebol Feminino e anualmente, desde 2009, o Torneio Internacional de Futebol Feminino.

Ainda assim, somente em 2015 a CBF anunciou a criação de uma seleção permanente. Na ocasião, as jogadoras que atuavam em clubes nacionais e internacionais deixaram as agremiações para dedicarem-se exclusivamente ao time, com a promessa de um contrato assinado e todas as garantias trabalhistas e pagamento do direito de imagem. Contudo, um ano e meio depois, a promessa ainda não havia sido cumprida, os contratos não tinham sido assinados e os pagamentos –depositados seguindo acordos verbais–, tinham seus montantes compostos por diárias, iguais entre as atletas, e o “salário”, que eram divididos em categorias.

Ao menos três atletas que reclamaram da irregularidade acabaram não sendo convocadas para representar o Brasil nas Olimpíadas daquele ano, mesmo sendo membros permanentes da equipe nacional. Incluindo Rosana Augusto, uma veterana do futebol feminino, com 16 anos de serviços prestados à seleção.

Somente em setembro de 2020, depois de muita luta, as mulheres finalmente conquistaram a equiparação no pagamento de diárias para as seleções masculina e feminina, premiação equivalente em caso de sucesso nas Olimpíadas e nivelamento do prêmio na Copa do Mundo, de acordo com os valores distribuídos pela Fifa. Além de finalmente ser criada uma coordenação de competições nacionais femininas, responsável pelas quatro competições organizadas pela entidade: os Brasileiros sub-16 e sub-18 e as Séries A1 e A2. Rogério Caboclo, agora acusado de assédio moral e sexual, foi quem, na época, anunciou as mudanças.

Cartão Vermelho pra CBF

A situação da arbitragem feminina também indica as barreiras que as mulheres enfrentam no futebol brasileiro. Dos 289 árbitros principais no quadro da CBF somente 31 são mulheres. Dos 38 árbitros do quadro brasileiro na Fifa, 10 são mulheres, sendo 5 árbitras e 5 assistentes.

Machismo, assédio, xingamentos em campo, preconceito, profissão desvalorizada e poucas oportunidades de trabalho são as principais dificuldades encaradas pelas profissionais que decidem ser árbitras. E apesar da CBF exigir, desde 2007, que as árbitras tenham o mesmo índice dos homens nos testes físicos para apitar a Série A do Brasileirão, as escalações são raríssimas.

No teste físico, as candidatas precisam realizar seis tiros de 40 metros abaixo de 6 segundos, correr 75 metros em 15 segundos e na sequência caminhar os 25 metros restantes da pista em 20 segundos – as duas últimas marcas precisam ser repetidas 40 vezes. Ainda assim, quando Edina Alves foi escalada para apitar a partida entre CSA x Goiás em 2019, fazia 15 anos que uma juíza não apitava um jogo de futebol masculino.

O futebol é um reflexo da sociedade

O esporte não é algo alheio à sociedade, ao contrário, como manifestação social, reflete o movimento da luta de classes, que por sua vez, assume formas distintas e perpassa todas as dimensões da vida quotidiana. No futebol portanto, se expressam valores e fluxos culturais, morais e socioeconômicos dos grupos onde é praticado, assistido e celebrado.

A mesma polarização que vivemos atualmente no terreno política – como a polêmica que se instalou no país, após o anúncio pelo presidente Bolsonaro, da realização da Copa América no Brasil, numa evidente tentativa de fazer uso político do campeonato em pleno agravamento da pandemia e crescimento do número de mortos pela covid, provocando reações contrárias por todos os lados –, assume igualmente a forma da polarização no terreno da luta contra as opressões e tem sua expressão no futebol.

Se por um lado as mulheres, cada vez mais estão lutando por seus direitos e contra o machismo e ocupando espaços até então considerados “masculinos”, como o futebol, a política, etc. – não porque sejam “naturalmente” dos homens, mas porque por muito tempo foi negado às mulheres o direito a acessar esses espaços –, por outro, esse crescimento da presença feminina vem carregado de preconceito e violência.

Além disso, o fato de que estamos sob um governo machista e misógino, como Bolsonaro, que ataca sistematicamente as mulheres, fomenta o ódio aos oprimidos e justifica a desigualdade reproduzindo todo o lixo ideológico machista, racista e LGBTfóbico, retroalimenta  o preconceito e a cultura do estupro e serve de combustível para toda essa barbárie que recai sobre as mulheres e o conjunto dos oprimidos e que se materializa no número cada vez maior da violência doméstica e racial, dos feminicídios e transfeminicídios, do genocídio negro, da violência contra os LGBTs, do assédio moral e sexual, dos estupros, etc., e da qual as principais vítimas são as os oprimidos da classe trabalhadora, pela dupla opressão que sofrem, como classe e como grupo social abstraídos de direitos.

Por outro lado, o próprio fato de que as mulheres estão ocupando espaço que lhes foram tradicionalmente negados, é reflexo das lutas que se desenvolve na sociedade, seja a luta por direitos democráticos ou como vanguarda das lutas da classe. O aumento da participação feminina na política, no esporte, nos espaços públicos em geral é, portanto, reflexo das transformações sociais que essas lutas provocam.

A luta contra o machismo como parte da luta de classes

Mas o fato de que são um reflexo, não significa uma relação mecânica. Também a maior representatividade incide sobre essas lutas e atua sobre elas, potencializando-as. Por isso não é indiferente para a classe trabalhadora as conquistas políticas e avanços e/ou retrocessos nos direitos democráticos dos oprimidos, como por exemplo, legislações que garantam igualdade de oportunidade e direitos iguais, que combatam a discriminação e a violência, que legalizem o aborto, o casamento gay, criminalizem o LGBTfobia, punam o racismo, permitam maior representatividade nos espaços de poder, etc.

Ao contrário, essas conquistas são essenciais e é preciso lutar por cada uma delas, pois, na medida em que a opressão faz dos oprimidos da classe trabalhadora suas principais vítimas, é evidentemente também que esse setor é o que mais sente a falta desses direitos. Por outro lado, uma vez que a posse desses direitos não encerra a questão para o conjunto dos problemas da classe, o que pressupões todos os seus setores, justamente a conquistas desses direitos ajuda a desvelar a causa verdadeira da miséria que vivemos no interior do sistema capitalista: a condição que permite que uma parcela minúscula da sociedade, a burguesia, se aproprie da imensa riqueza é produzida pela maioria, os trabalhadores.

Ou, em outras palavras, a condição social que permite a exploração de uma classe pela outra, apoiando-se, para isso, inclusive em ideologias reacionárias, como o machismo, o racismo, a xenofobia, a LGBTfobia, etc., que servem para dividir a classe e superexplorar setores inteiros dela: pagando menores salários às mulheres, negros e imigrantes; utilizando esse setores como um imenso exército de reserva que introduzem e retiram do mercado de trabalho conforme suas necessidades; jogando uma parcela da classe contra outro e rebaixando o nível de vida de toda a classe.

Ao mesmo tempo, por se tratar de algo que perpassa todos os setores sociais e afetar indivíduos de todas as classes, a luta contra a opressão pode – e quase sempre é – utilizada pela burguesia para desviar o foco de luta de classe e manter os trabalhadores divididos, sob o discurso de que a questão central é divisão de gênero, de raça, de orientação sexual e que, portanto, a batalha deve ser contra o patriarcado, os privilégios dos brancos, a heteronormatividade, e por aí vai.

Por isso, a luta contra as opressões precisa ser tomada pelo conjunto da classe e suas organizações, e encarada numa perspectiva revolucionária e socialista, para não cair na armadilha das saídas burguesa e reformista que apontam que é possível acabar com a opressão no marco do sistema capitalista, via o empoderamento, o empreendedorismo, a representatividade. Ideologias, que na verdade servem apenas para desviar a luta dos oprimidos e canalizá-las para estratégias eleitorais ou por dentro do regime burguês capitalista.

O capitalismo, por sua própria natureza, não pode solucionar definitivamente o problema do machismo e da opressão. Como um sistema baseado na opressão e na exploração, só pode resolver de forma parcial, incompleta, desvirtuada e como exceção, a questão das opressões, concedendo direitos aqui para logo em seguida retirá-los ali. Por isso dizemos que só com a derrota do capitalismo e o fim da sociedade de classes podemos acabar definitivamente com a opressão.

O que não quer dizer que devemos recuamos um milímetro sequer no combate ao machismo e todas as formas de opressão, aqui e agora, de dizer não ao assédio moral e sexual, à cultura do estupro, às agressões e mortes de mulheres. De exigir da burguesia e do Estado todas as medidas que possam pôr fim ao machismo e a violência, a punição aos agressores, a proteção das vítimas. Assim como de exigir das organizações da classe, os sindicatos e movimento sociais, que assumam essa bandeira como parte de seu programa e suas lutas.

Exigimos punição para Rogério Caboclo e seus cumplices na CBF

Após o afastamento de Caboclo, outros relatos de assédio começam a surgir no âmbito da CBF. Segundo funcionários, com a ascensão do cartola à presidência da entidade, um clima de tensão e medo passou a predominar. De cara, salários pagos à títulos de bonificação foram cortados e o plano de saúde alterado.  Em ambos os casos as medidas foram direcionadas apenas para os trabalhadores, já que para os diretores seguiu tudo igual.  Até a rotina de almoço foi alterada, com a proibição dos funcionários de almoçar antes do chefe. Como era comum Caboclo atrasar em outros compromissos, os funcionários ficavam impedidos, às vezes, por horas, de se alimentar. O grau de autoritarismo era tamanho que os convivas só podiam provar a sobremesa depois do presidente degustar a sua.

Nada disso, contudo, motivou a diretoria e vice-presidentes da CBF a tomarem uma atitude contra os abusos de Caboclo, pelo contrário, sua conivência era proporcional aos privilégios que mantinham durante o período que esse se manteve na presidência. Por isso exigimos punição rigorosa para Caboclo, mas também que medidas sejam tomadas contra os outros diretores, que agiram como cumplices dos abusos que aquele cometeu.

Tudo isso evidencia o quanto o machismo anda de mãos dadas com o autoritarismo e como a luta das mulheres trabalhadoras como mulheres, por direitos, contra a violência e o machismo, não está desvinculada de sua luta como trabalhadoras, contra os abusos patronais, por melhores condições de trabalho, salário, etc. e que ambas as lutas devem se inserir também no terreno da luta de classes e se direcionar contra o sistema capitalista e a classe que dele se beneficia, a burguesia.

Basta de assédio moral e sexual, basta de ataque aos direitos dos trabalhadores! Pelo afastamento definitivo de Rogério Caboclo e seus cúmplices da CBF, que respondam por seus atos na justiça criminal e trabalhista e que sejam devidamente punidos e as vítimas sejam reparadas e tenham seus direitos reestabelecidos!