Redação

Cesar Neto e Yves Mwana Mayas

A onda de saques que aconteceu na África do Sul no mês julho mostrou a falência do modelo de governo tripartite do CNA/COSATU/PARTIDO COMUNISTA. A esquerda em geral e a esquerda reformista em particular tratam de minimizar os acontecimentos nesse país. Este texto tentará mostrar que: a) que 300 mortos mostram o quanto é repressiva a nação do Arco Iris de Mandela; b) que a explosão em forma de saques é a expressão da pobreza das massas; e c) que o modelo estalinista de revolução por etapas imposto pelo Partido Comunista, CNA e a central sindical COSATU, faliu. A esquerda reformista e a estalinista em particular preferem não discutir a falência desse modelo. A burguesia e sua grande imprensa, mais realista, falam do fim de um ciclo. Alguns até fazem uma relação entre os vinte e sete anos de governo do CNA/COSATU/PC com os também vinte e sete anos do governo de Kenneth Kaunda, na Zâmbia. Há muitas similaridades entre esses dois processos: sua origem nas lutas e sua decadência política e repressão aos que lutam.

Atualmente, na primeira quinzena de julho,

pode parecer superficialmente que tudo

mais ou menos voltou ao normal. De fato

nas profundezas do proletariado, como

nas cúpulas do classes dominantes, está

em preparação quase automática,

um novo conflito está em andamento1

Leon Trotskky

A luta heroica luta contra o apartheid:

O regime de apartheid foi implantado em 1948, pelo então primeiro ministro e pastor protestante Daniel François Malan, do Partido Nacional. O apartheid tinha um claro objetivo econômico, na medida em que a atrasada indústria sul africana, não conseguia competir com as grandes empresas capitalistas europeias, e para poder minimamente resistir, necessitava reduzir o custo de produção e produzir em condições análogas ao trabalho escravo. Assim, era necessário oprimir e desmoralizar os trabalhadores para que pudessem submetê-los. Impedir que os negros frequentassem praças, hospitais e escolas destinadas a brancos, além de criminalizar os casamentos interraciais, era parte desse sistema de opressão-exploração para produção a baixo custo. A resistência ao apartheid, imposto em 1948, começou já nos primeiros dias e ganhou impulso nos anos 70, 80 e 90. A resistência ao regime de apartheid inspirou a luta de ativistas negros e do movimento operário em todo o mundo. Nos anos 80 e 90, as lutas se radicalizaram com a eclosão de greves gerais de massa, greve estudantis, diversas formas de boicote, ocupação de terra, etc. No auge da luta para derrotar o regime de apartheid, várias townships (favelas) se tornaram verdadeiras áreas liberadas onde o Estado não entrava e a comunidade se auto organizava para as tarefas de educação, distribuição de alimentos e serviços e auto defesa. Trabalhadores e jovens se armavam para defender suas comunidades contra os representantes do Estado sul africano.

Nessa época, as massas negras, muitas vezes com o apoio de trabalhadores brancos, transpirava ódio contra o apartheid, contra o Estado sul africano e caminhava a passos largos rumo ao entendimento da necessidade de destruição do capitalismo. Era um processo revolucionário em curso que assustava a grande burguesia nacional e estrangeira.

Negociação ou aprofundamento da luta? Revolução por etapas ou Revolução Permanente?

A enorme pressão de uma situação revolucionária, obrigou ao grande capital abrir canais de negociação. É correto negociar, fazer concessões, desmobilizar quando estamos na ofensiva? Essa pergunta foi feita por muitos ativistas. Na prática os ativistas se perguntavam sobre o melhor caminho: negociação ou aprofundamento da luta. Pensando num plano mais teórico marxista, se colocava o velho debate entre a teoria estalinista da revolução por etapas ou a do marxismo revolucionário, da Carta ao Comitê Central da Liga dos Comunistas escrita por Marx, das Teses de Abril de Lenin ou da Revolução Permanente de Trotsky.

A negociação significava a retirada dos trabalhadores e dos jovens das ruas, o freio e a desmobilização em troca da concessão de direitos democráticos.

O aprofundamento das lutas significava construir os organismos de duplo poder que colocasse em discussão o famoso “quem manda aqui”, os trabalhadores ou a burguesia, e também o desenvolvimento do armamento dos trabalhadores e dos jovens que já existiam em algumas townships. Isso é radical? Não. Os trabalhadores vinham lutando desde 1948 contra o apartheid e, como dissemos acima, os anos 80 e 90 foram de profunda radicalidade.

A negociação foi imposta ao movimento de massas pelas organizações políticas CNA (Congresso Nacional Africano), Partido Comunista da África do Sul e pela central sindical COSATU

A negociação se deu com a utilização de um tripé composto por: cooptação, desmobilização e desmoralização do movimento.

No processo de cooptação importantes figuras foram incorporadas à negociação. Entre elas, Thabo Mbeki, que começou sua militância como dirigente estudantil, estudou na Rússia e mais tarde foi escolhido para o Comitê Central do Partido Comunista; Jacob Zuma que ficou 10 anos preso na Ilha de Robben junto com Nelson Mandela; o dirigente maior do mineiros, Cyril Ramaphosa. Esses três personagens acabaram sendo presidentes da África do Sul. Coincidentemente, Mbeki perdeu o poder, o controle do CNA para Zuma, e foi obrigado a renunciar. Zuma, assumiu e sofreu impeachment imposto pelo seu próprio partido dirigido por Ramaphosa.

Além desses três importante personagens que chegaram à presidência da Republica tiveram uma infinidade de outros dirigentes que foram cooptados para distintos tipos de órgãos de controle político e sindical dos trabalhadores, que naquele momento estavam em luta.

A consequência da cooptação foi a desmobilização, a retirada dos trabalhadores das ruas e o controle dos organismos independentes que foram construídos. E ao cooptar e desmobilizar foi possível iludir os trabalhadores e a juventude com a promessa de uma Nação Arco Iris.

O primeiro grande ato de desmobilização foi no assassinato Chris Hani, líder do Partido Comunista da África do Sul e chefe de gabinete do uMkhonto we Sizwe , o braço armado do Congresso Nacional Africano (ANC). Ele foi assassinado por Janusz Waluś , um imigrante polonês, membro da organização de extrema direita AWB (Afrikaner Weerstandsbeweging -Movimento de Resistência Afrikaner). O assassinato de Chris Hani provocou uma comoção nacional e foi em um momento álgido das lutas contra o apartheid. O corpo de Hani foi velado no Estádio First National Bank, em Soweto. Ônibus, táxis e quaisquer veículos eram confiscados na tentativas de viajar do estádio até o local do enterro. Durante a vigília noturna realizada em memória de Hani multidões de jovens negros atearam fogo nas casas próximas e atacaram os carros que passavam2. Pelo menos duas pessoas morreram nesses distúrbios, em uma das casas incendiadas morreu queimado um homem branco e que era membro da direção da AWB. E quase todos os grandes centros urbanos da África do Sul foram saqueados por turbas enfurecidas. Esse fato se deu ainda com o país presidido por Frederick de Klerk, do Partido Nacional. Nelson Mandela a principal figura da oposição, mas já negociando com o regime de apartheid foi à TV lamentar a morte de Chris Hani, pedir calma e dizer para as pessoas ficarem em casa e rezarem pela alma de Chris Hani.

O caso Chris Hani é um exemplo da desmobilização com um viés político. Houve outras formas, por exemplo, através da esvaziamento e destruição das organizações populares, juvenis ou sindicais.

No caso sindical houve uma política deliberada de esvaziamento das entidades sindicais via a instituição do NEDLAC. Em 1994, no inicio do governo de Nelson Mandela, foi criado o Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Trabalho (National Economic Development and Labour Council – NEDLAC). A função do NEDLAC3, entre outras, era “promover o crescimento econômico e buscar o consenso e a celebração de acordo em matéria de política social e econômica4” Ou seja, a função primordial era buscar o consenso entre patrões, empregados e governo, e a celebração de acordos nas questões trabalhistas.

Inicialmente, dada a correlação de forças favorável à classe trabalhadora, o governo votava nesse órgão tripartite com os trabalhadores. Era o consenso entre trabalhadores e governo e, ao qual, os empresários “se submetiam”. Com o passar do tempo, o governo foi pouco a pouco se localizando ao lado dos empresários. Como o NEDLAC foi fruto de uma lei, desacatar suas decisões é uma infração, é crime.

Assim, atualmente, antes de ter uma greve é preciso primeiro buscar o consenso. Dessa forma passam meses e anos sem que se chegue ao consenso. Caso haja greve não “autorizada” pelo NEDLAC é uma greve ilegal. Em maio de 2020 uma greve dos trabalhadores da Volkswagen5 em protesto contra a contaminação pelo Covid 19 foi considerada ilegal e os ativistas demitidos. Para efetuar a demissão a Volkswagen recorreu à lei que dá suporte ao NEDLAC e os trabalhadores foram acusados de radicais por não buscarem o consenso.

Assim, com essa repressão legalizada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Econômico e Trabalho foi sendo controlado, esvaziado e reprimido o incrível movimento sindical dos anos 80 e 90.

1994: a oportunidade perdida

O Congresso Nacional Africano (CNA), o Partido Comunista e a central sindical COSATU chegaram ao poder nas eleições presidenciais de 1994 respaldados por uma longa trajetória de luta, de formação quadros, de inserção nas lutas sociais, mas acima de tudo, com um enorme peso de massas.

No Congresso do CNA, de 1955 , foi aprovado o documento Freedom Charter (Carta da Liberdade) que defendia a nacionalização da mineração, dos bancos e a indústria monopolista da seguinte maneira. “O povo compartilhará da riqueza do país! . A riqueza nacional do nosso país, a herança de todos os sul-africanos, será devolvida ao povo; a riqueza mineral sob o solo, os bancos e a indústria monopolista serão transferidos para a propriedade do povo como um todo; todas as outras indústrias e comércio devem ser controlados para ajudar o bem-estar do povo; todas as pessoas têm direitos iguais de comércio onde escolherem, de manufaturar e de entrar em todos os negócios, ofícios e profissões”.

O etapismo estalinista do Partido Comunista e do CNA se apresentou nitidamente no Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP), já em 1994. Mandela na introdução do RDP afirma: “… estamos prestes a assumir as responsabilidades do governo e devemos ir além da Carta para um programa real de governo. Este documento RDP é uma etapa vital nesse processo. Representa uma estrutura coerente, viável e com amplo apoio.”. Como o próprio Mandela diz na introdução, “é uma estrutura coerente, viável e com amplo apoio”, assim se trocava o nacionalismo pelas tarefas democráticas, como uma primeira e infinita etapa. ” O RDP é um quadro de política socioeconômica integrado e coerente. Busca mobilizar todo o nosso povo e os recursos do nosso país para a erradicação definitiva do apartheid e a construção de um futuro democrático, não racial e não sexista”. (Ponto 1.1.1 do RDP). Assim, com o RDP, a soberania sobre os minerais foi trocado pela “construção de um futuro democrático, não racial e não sexista”.

Com menos de dois anos no governo, o Partido Comunista e o CNA mostraram qual era a sua real política econômica. A fase das conquistas democráticas e a “estrutura coerente, viável e com amplo apoio” como dizia Mandela, se transformou em um plano neoliberal com a aplicação do Plano GEAR (Growth, Employment and Redistribution -Crescimento, Criação de Emprego e Distribuição de Renda). O GEAR (engrenagem em inglês) enfatizou a austeridade fiscal, redução do déficit atrelando a tributação e os gastos como proporções fixas do PIB. Através do GEAR, as prioridades macroeconômicas declaradas pelo governo tornaram-se a inflação, desregulamentação dos mercados financeiros, redução tarifária e liberalização do comércio, além de limitar os gastos do governo. Um plano neoliberal nascido das entranhas dos etapismo estalinista.

A abertura da economia e a desindustrialização

Como parte das negociações envolvendo o CNA/Partido Comunista e a grande burguesia nacional e imperialista estava a abertura da economia para produtos importados. Assim, o nascente regime democrático burguês comandado por Mandela, aceitava as imposições imperialistas, tal qual os governos neoliberais de Menen na Argentina, Collor no Brasil, entre outros governos dessa mesma época. Como consequência desse processo6 a indústria nacional não conseguiu competir com a tecnologia estrangeira e nem pode competir intensificando a exploração dos trabalhadores e utilizando-se de mão obra semi escrava como na época do apartheid. A radicalização dos trabalhadores não permitia semelhante ataque. O resultado desse processo foi que a indústria nacional fechou suas portas ou diretamente foi a falência, desindustrializando o país, aumentando o desemprego que já era muito grave. Com a desindustrialização, a exploração mineira totalmente controlada pelas empresas imperialistas, se tornou o centro da economia do país. Quer dizer, o imperialismo hoje controla a economia muito mais do que na época do apartheid.

O imperialismo não perdoa: strategy of minners in Africa

Não há duvidas do papel do imperialismo nesta fase de decadência do capitalismo. O controle político, econômico e militar é gigantesco. Por esse motivo, não acreditamos que se possa fazer uma revolução por etapas. Ou como dizem os estalinistas, os castristas e os chavistas, primeiro conquistamos e consolidamos os direitos democráticos e depois avançamos para as questões econômicas.

Essa política etapista, levou a que o estalinismo que tinha o controle do movimento de massas, através do CNA e do COSATU aceitasse e aplicasse pacientemente a política do Banco Mundial, denominada Strategy of Minners in Africa7. A Estratégia para a Mineração na África, atacou duas questões centrais: a) soberania sobre os recursos naturais e b) o fim da exploração desses recursos por empresas do Estado. Quem tiver a oportunidade de ler o documento do Banco Mundial verá que ele foi aplicado literalmente nesses vinte e sete anos de governo do Partido Comunista e do CNA. O documento impôs: a) seguir evoluindo nos programas de ajuste econômico para pagar a dívida; b) os governos devem definir claramente suas estratégias de desenvolvimento da mineração. O setor privado deve assumir a liderança; c) os incentivos para os investidores em mineração devem ser claramente determinados na legislação de investimentos; d) a tributação da mineração precisa levar em consideração os níveis de impostos em outros países mineradores para manter ou estabelecer a competitividade da indústria nacional; e) a legislação de mineração deve reduzir o risco e a incerteza para os potenciais investidores e garantir fácil acesso às licenças de exploração e concessões de mineração; f) as instituições governamentais devem interromper as funções operacionais e de marketing; e g) controlar a mineração artesanal.

A impagável dívida pública

As enormes mobilizações contra o apartheid desde os anos 70 estavam crescendo dia após dia e colocando em risco a existência do regime sul africano, além da própria África do Sul capitalista. Além da luta interna, ao mesmo tempo crescia o repudio internacional ao regime de segregação racista. Em 1976, a Assembleia Geral das Nações Unidas votou a Resolução 31/33, na qual instou os bancos a não prestar assistência financeira ao governo da minoria branca e estendeu a recomendação a todos os estados para interromper novos investimentos e empréstimos financeiros para a África do Sul.

O regime, ao mesmo tempo em que reprimia internamente, também atacava os países vizinhos em sua luta anticolonial, em especial, Angola, Namíbia e Moçambique. Para tal fim, em meio ao bloqueio imposto pela ONU era necessário comprar armas e munições, dar treinamento, assistência e fazer trabalhos de espionagem. Vendidas no cambio negro, o preço das armas crescia 25 a 30%.

Mesmo com o bloqueio imposto muitos bancos emprestaram dinheiro para a África do Sul. Assim podemos dizer que a dívida publica sul africana é a) divida odiosa pois foi feita para comprar armas e reprimir dentro e fora do país; b) dívida ilegal, pois foi feita em época de bloqueio imposto pela ONU onde era proibido transações comerciais e financeiras com a África do Sul enquanto tivesse vigente o APARTHEID e c) dívida ilegítima, pois foi feita para favorecer um setor (apartheid) e contra os interesses dos que lutavam contra o apartheid e colonialismo.

Apesar de ser odiosa, ilegal e ilegítima, o governo que assumiu o poder em 1994, aceitou pagar a dívida.

A pobreza na África do Sul é consequência do roubo dos recursos naturais e da dívida insustentável

Depois de vinte e sete anos de governo do CNA/PC e central sindical COSATU, aplicando a teoria stalinista de primeiro conquistar a democracia e depois avançar, devemos fazer um balanço muito sério da política mineral, da política frente a dívida pública, pois a condição de vida da classe trabalhadora não avançou. Em muitos aspectos, piorou.

Os trabalhadores foram perdendo todos os seus direitos, sua aposentadoria, o desemprego aumentou e, caso queiram lutar, antes precisam pedir autorização ao Nedlac. E nesse quadro viram suas direções sindicais serem domesticadas e destruídas. A maioria da classe trabalhadora vive nas grandes favelas (townships), sem água e sem esgoto.

A educação deixou de ser gratuita. Todas as escolas e, em todos os níveis, são pagas. O curso de Direito da Universidade de Cape Town custa setenta mil rand anuais e um trabalhador ganha no máximo 48 mil rand no mesmo período. O salário dos professores é pago parte pelo Estado e parte pelos alunos. O governo se descompromissou completamente com a educação e com a saúde também.

Por fim, a desmoralização

A aplicação do etapismo estalinista, justamente quando as massas estavam a todo vapor, foi, sem dúvidas uma traição por parte do CNA e do Partido Comunista. As medidas de preservação e ampliação da exploração mineira por parte das transnacionais, o pagamento da dívida, as políticas neoliberais de desindustrialização, flexibilização de direitos dos trabalhadores e corte nos gastos com a saúde e educação, aplicadas ao logo dos vinte e sete anos são a razão primeira e ultima do desemprego, pobreza e morte por covid.

Como dissemos acima, a saída negociada se deu com a utilização do tripé composto pela cooptação dos lutadores e ativistas, e ao estarem na estrutura de poder esses cooptados trataram de desviar todas as tentativas de mobilização. A desmoralização veio ao longo desses vinte e sete anos de governo do CNA, do Partido Comunista e da central sindical COSATU.

A cooptação serviu para esses ativistas ascenderem socialmente. Ramaphosa o atual presidente, foi dirigente estudantil, importante dirigente do sindicato mineiro e chegou a ser diretor da empresa inglesa London Mining (Lonmin). E vários se transformaram em pequenos burgueses ou diretamente em burguesia. Esse assalto às estruturas do Estado e o enriquecimento é visível para qualquer observador atento. Mas mesmo aqueles que só acompanham a política pelos grandes meios de comunicação acabam descobrindo que os principais dirigentes estão metidos em falcatruas, roubo e corrupção.

Assim, aquela vanguarda que derrotou o apartheid, que sofreu todo tipo de perseguição, que foi exilada, que cumpriu longos anos de prisão, ao final capitulou ao processo de cooptação. A cooptação não é um problema moral, é um problema político. Problema político, já que aplicaram com todas as letras a concepção estalinista de revolução por etapas, que se traduziu na troca da Carta da Liberdade pelo RDP, GEAR e uma série de políticas econômicas que são as bases do desastre econômico e social que se vive na África do Sul.

Todos nós sabemos que nas lutas há vários fatores a serem considerados. No caso específico dos trabalhadores, precisamos ver o papel de sua direção. E essa direção, o CNA, o Partido Comunista e a central sindical COSATU, se desmoralizaram. Eles atuaram conscientemente para tirar o povo das ruas e garantirem a tão necessária governabilidade ou “paz social” que a burguesia tanto necessita. E conscientemente atuaram para cooptar, desmobilizar e desmoralizar.

A explosão do movimentos de massas. Ainda é o primeiro ato

A COSATU que é a principal organização sindical do pais é parte do governo. As outras organizações, em especial NUMSA e SAFTU são uma ruptura pela esquerda do COSATU, mas que ao ser uma ruptura, trazem as marcas do velho sindicalismo sem participação das bases e controlado por dirigentes que foram educados pelos velhos quadros estalinistas com base em privilégios, autoritarismo e conciliação de classes.

Assim, a bronca e a raiva dos trabalhadores não contêm uma forma organizativa que os unifique, que discuta um plano de lutas e um programa a ser alcançado.

Um fato externo ao dia a dia dos trabalhadores acabou servindo com o estopim. A briga interna do bloco CNA-PC-COSATU levou a que um setor, capitaneado pelo expresidente Zuma, tenha organizado alguns pequenos saques para poder pressionar a outra facção. Poderia ser uma boa tática se não fosse a situação desesperadora que vivem as massas daquele país. Imediatamente, as escaramuças de Zuma se transformaram em um tremendo movimento social, com saques nos grandes supermercados, shopping centers, lojas e caminhões de mercadorias. A reação do Estado sul-africano foi igual ao que teria sido no apartheid: mais de 300 mortos.

Mas isso foi só o primeiro ato. As massas, já demonstraram força e voltarão as ruas. Ou como dizia Trotsky na França de 1936: “pode parecer à primeira vista que tudo voltou mais ou menos à normalidade. Na verdade, nas profundezas do proletariado, como nas alturas das classes dominantes, a preparação quase

automática, um novo conflito está em andamento

Saques: roubo ou expropriação?:

Do ponto de vista das lutas dos trabalhadores há muitas polemicas sobre os saques. Há aqueles que reconhecem que as lutas espontâneas não servem para organizar a classe trabalhadora e por isso não o defendem. E há aqueles que se colocam no campo da classe trabalhadora e reconhecem os saques como uma justa forma de luta. Mas isto é uma polêmica entre nós, os que lutamos ombro a ombro com os trabalhadores.

Há outra polêmica que considera que se todas as mercadorias são fruto do trabalho, do qual a burguesia se apropria, o saque nada mais é que a expropriação daquilo que já era da classe trabalhadora. A burguesia que se favorece da apropriação do trabalho alheio, só pode dizer que é um roubo.

O Partido Comunista diz que é roubo e deve ser criminalizado

O PC, através do Comitê Executivo Provincial de Gauteng, se colocou claramente contra os saques e na defesa da ordem capitalista. A declaração, emitida nos dias dos saques, é muitos nítida: [Comitê Executivo de Gauteng] “resolveu, por unanimidade, condenar a violência e os saques em curso nos termos mais veementes possíveis. Como SACP em Gauteng, consideramos isso atos de criminalidade e sabotagem econômica como parte de uma contrarrevolução bem coordenada” 8

Em outra declaração o Partido Comunista da África do Sul, membro tripartite do governo defende abertamente a repressão que resultou na morte de 300. No dia em que deu a declaração, segundo eles mesmos havia 72 mortos. Ou seja, a medida que eles defendiam resultou em outras 220 mortes. A declaração fala por si:

“Os responsáveis ​​pelas mortes, outros atos violentos, destruição, saques e violações dos direitos humanos associadas devem ser responsabilizados. A supremacia de nossa constituição e, com base nela, o estado de direito deve ser protegido e mantido. É neste contexto que as medidas anunciadas pelo governo para garantir a segurança e proteção dos cidadãos cumpridores da lei e de outros nacionais na África do Sul, ao mesmo tempo em que toma medidas para responsabilizar os seus responsáveis, foram amplamente saudadas pelos amantes da paz sul-africanos. O estado deve fortalecer sua intervenção de acordo com seu mandato constitucional para pôr fim à violência, pilhagem, destruição e sabotagem com efeito imediato”9.

É preciso preparar as lutas que virão

Os trabalhadores, em especial, os trabalhadores desempregados, a juventude e os moradores dos bairros pobres foram à luta por fora de sua organizações. Eles não esperaram pela COSATU, Numsa ou Saftu e foram à luta. É verdade que muitas vezes foram confundidos com os lumpens à serviço de Zuma, mas isto para nada invalida a sua disposição de luta. Mais que tudo, mostraram que quando saem as ruas, colocam medo no governo e na burguesia.

As necessidades obviamente não foram atendidas pois nesse processo se apresentou a maior de todas as debilidades: a ausência de um programa e de uma direção que transformasse a radicalização em vitória.

A burguesia e o governo preparam o contra-ataque. Não será contra Zuma. Será contra os pobres. Os primeiros atos foram a invasão – sem ordem judicial – das casas humildes nas townships e toda mercadoria encontrada sem nota fiscal foi recolhida e devolvida para a burguesia. A segunda medida, é a onda de prisão e criminalização dos famintos, aliás, com o apoio explicito do Partido Comunista.

As massas contam seus mortos, mas também contam com o orgulho de seus atos de rebeldia e bravura. As massas se sentem, no mínimo, como semi-vitoriosas. Elas seguramente estão repetindo o velho refrão em português cantado desde a época do apartheid: “a luta continua!”

Mas para que “A luta continue” é preciso superar as atuais organizações, em especial o CNA, PC e a COSATU. É preciso ajudar a classe trabalhadora, a juventude e o povo pobre, na construção de um programa anti-imperialista e anti-capitalista. Um programa em total oposição ao que foi aplicado nos últimos vinte e sete anos. Além do programa, é preciso também construir organizações sindicais e políticas que apliquem esse programa. Nós da Liga Internacional dos Trabalhadores, muito modestamente, nos colocamos ao lado daqueles que queiram construir o programa e a organização política para tal fim.

1 LEON TROTSY – ¿ADONDE VA FRANCIA? ANTE LA SEGUNDA ETAPA https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1936/1936-francia/07.htm

2 THE DEATH OF CHRIS HANI: AN AFRICAN MISADVENTURE https://omalley.nelsonmandela.org/omalley/index.php/site/q/03lv02424/04lv03370/05lv03422.htm

3 http://www.labour.gov.za/national_economic_developmnt_and_labour_council

4 https://nedlac.org.za/wp-content/uploads/2020/11/Nedlac-Protocols.pdf

5 https://litci.org/en/german-government-and-volkswagen-populism-and-repression-in-the-south-african-pandemic/

6 África: nacionalizar e estatizar a produção mineral para poder viver. https://litci.org/pt/africa-nacionalizar-e-estatizar-a-producao-mineral-para-poder-viver-2/

7 The International Bank for Reconstruction and Development/ The World Bank . Strategy for African Mining – Washington/DC – 1993

8 https://www.sacp.org.za/content/sacp-gauteng-calls-its-red-brigade-members-and-people-defend-our-hard-won-democracy

9 https://www.sacp.org.za/content/sacp-expresses-its-message-heartfelt-condolences-families-lost-their-loved-ones-because