Apesar das promessas presidenciais em sentido contrário – principalmente no sentido de realizar um maior debate com a sociedade organizada acerca do polêmico projeto da transposição do Rio São Francisco, quando da greve de fome do Bispo Dom Luiz Flávio Cáppio – o governo Lula, através do Ibama, assinou, no último dia 23 de março, licença ambiental para o projeto de transposição. Neste mesmo mês, lançou edital de licitação para a primeira fase da obra.

Conforme já denunciando em artigo no qual sou autor, juntamente com Roberta Roldão, especialista em recursos hídricos [1], a verdade é que nem mesmo houve tempo suficiente para uma discussão acerca dos impactos ambientais, entendendo-se meio ambiente no sentido mais amplo da palavra, como a própria Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981) determina.

Não é mera coincidência que, ao mesmo tempo em que o governo dá o sinal verde para essa obra, que longe de resolver os problemas que afligem a população pobre nordestina pode causar impactos ambientais gravíssimos, são negociados acordos comercias, através dos quais o Brasil pode assumir o papel de principal fornecedor dos chamados biocombustíveis, mormente de etanol, para as principais potências do planeta.

Voltando a destacar os sérios problemas que a transposição pode trazer, citamos, entre outros, a possibilidade real e concreta de interferência nas populações indígenas, aumento e aparecimento de novas doenças, visto que a água é um excelente vetor; perda de terras potencialmente agricultáveis; desapropriações e todos conflitos que decorrem desta; especulação imobiliária nas várzeas potencialmente irrigáveis no entorno dos canais; interferência com o patrimônio cultural das populações atingidas; perda e fragmentação de áreas com vegetação nativa, de habitats e ecossistemas; modificação da composição e risco de redução da biodiversidade das comunidades biológicas aquáticas nativas das bacias receptoras; risco de introdução de espécies invasoras; maior número de ocorrência de acidentes com animais peçonhentos; aceleração do processo erosivo e de carreamento de sedimentos; modificação no Regime Fluvial do Rio São Francisco; eutrofização dos novos reservatórios.

Ademais, como boa parte dos rios brasileiros, pelos descasos da maioria absoluta dos governantes das três esferas (municipal, estadual e federal), que nunca se preocuparam realmente com a questão ambiental, o Rio São Francisco está com sua saúde extremamente comprometida.

Como denuncia Luiz Flávio Cappio, o bispo de Barra desprezado por Lula, em recente artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, dos 5.400km de margens do Rio São Francisco, apenas 5% das matas ciliares estão preservadas. Cappio afirma, ainda, que numa caminhada por ele realizada “da nascente à foz do rio, de outubro de 1992 a outubro de 1993, foram detectados todos os tipos de agressão, como a destruição das fontes, a morte das lagoas e dos brejos e o desmatamento das matas ciliares que protegem os barrancos. O assoreamento é cada vez maior, com queda dos barrancos e poluição das águas pelos dejetos sanitários das cidades, pelos dejetos químicos das indústrias e pelos agrotóxicos de grandes projetos de irrigação” .

Mas nada disso interessa, pois como dizem os coronéis nordestinos, os latifundiários, ou melhor, os “agrobusines”, ou seja, essa gente que vem lucrando com a expansão de cultura da cana, não se pode obstar o progresso. No caso em discussão, isso significa mais e mais áreas para o cultivo da principal matéria-prima, no Brasil, do combustível equivocadamente chamado de “ecologicamente correto”.

Para entender bem a situação que estamos enfrentando, é preciso destacar que, para o agronegócio, essa gente que em sua maioria não se importa com nada para garantir seus lucros (refiro-me aos velhos, mas não abandonados, métodos dos latifundiários), está colocada uma oportunidade, diga-se de passagem, de ouro, que dificilmente será perdida, pois as principais potências econômicas, as maiores responsáveis pela degradação do meio ambiente – em especial Estados Unidos, União Européria e Japão – têm como meta substituir, nos próximos treze anos, no mínimo, 20% de seu consumo de combustíveis derivados de petróleo pelo chamado biocombustível.

Vejam que, de acordo com projeções de entidades patronais do setor, o número de usinas de etanol deve crescer 30% no país em apenas cinco anos – pulando das atuais 248 para 325 unidades de produção na safra de 2012/2013. Dados fornecidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) apontam pedidos de financiamento no valor de R$7,2 bilhões. O total de investimentos para a construção de novas usinas está estimado em R$ 12,2 bilhões. Caso tais previsões se confirmem, a área ocupada pela cana crescerá mais de 50%, chegando a quase 10 milhões de hectares em meados da próxima década.

Como apontado em artigo publicado por Marcos Rogério de Souza, mestre em Direito pela Unesp e advogado em Brasília (DF) “o problema é que a cana, a soja e o eucalipto são produzidos em regime de extensas monoculturas com sérios impactos negativos. Desde as plantations até as grandes propriedades do agronegócio, os efeitos são os mesmos e têm se intensificado nos últimos anos: desmatamento ilegal para dar lugar ao plantio de cana, soja e eucalipto; aumento da violência no campo decorrente da expulsão de camponeses e posseiros; ampliação da concentração fundiária; multiplicação do uso de agrotóxicos e demais agroquímicos, prejudicando a saúde humana e o ecossistema; pobreza rural e urbana, decorrente do êxodo e da baixa incorporação de trabalho; aumento das importações de produtos historicamente produzidos pelo Brasil, como arroz, trigo, cebola, batata, feijão. Importante considerar que o desmatamento é uma das principais causas do efeito estufa, conforme demonstrou relatório da ONU divulgado recentemente”.

Não restam dúvidas, portanto, que a transposição do rio São Francisco está inserida neste contexto de geopolítica internacional e é mais um destes projetos, que a despeito do discurso oficial, servem para beneficiar as elites de sempre.

Novamente, citando Dom Cáppio, “o projeto de transposição do rio São Francisco desrespeita a realidade ao considerarmos que o rio está em franco processo de morte. Trata-se de um projeto altamente agressor, ecologicamente e socialmente injusto. Ao invés de levar as águas do rio para o povo e garantir a vida da fauna e da flora, o projeto prioriza grandes projetos agroindustriais, privilegiando pequeno grupo em detrimento da grande massa que continuará sem acesso à água. É socialmente injusto e ecologicamente agressivo”.

Além do impacto ambiental produzido pela própria obra, teremos ainda aqueles acima decorrentes da monocultura latifundiária do agronegócio, causados entre outros, no caso do cultivo da cana-de-açúcar, pelo uso da grande quantidade de agrotóxicos durante todo ciclo de cultura, do uso de vinhoto (rejeito industrial da cana altamente poluente) para adubação do solo e das queimadas para a colheita, sendo que tanto a cultura da cana como a do eucalipto aceleram o processo de desertificação, uma vez que absorvem demasiadas quantidades de água do solo e subsolo.

Como bem observou Éden Pereira Magalhães, Secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em entrevista publicada no Portal do PSTU ”o compromisso que Lula assumiu após a greve de fome de Dom Cáppio, de abrir o diálogo real, não foi assumido apenas com o bispo, mas com a sociedade brasileira. E é este compromisso que o governo optou por ignorar”.

Mas se Lula tem, faz algum tempo, ignorado os compromissos feitos com a sociedade organizada, junto a qual construiu sua história, é porque considera os usineiros de cana (mas também os banqueiros e os grandes industriais, para sermos justos) seus novos heróis e estes, como bem observou um dos bilionários do álcool do mundo, consideram, Lula, um grande amigo a qual todos (os usineiros) devem gratidão.

Mais do que nunca está nas mãos das entidades dos trabalhadores e dos movimentos sociais organizados a tarefa de barrar este projeto de transposição que, se efetivado poderá causar impactos de grande monta ao clima e à saúde de nosso planeta.

ADRIANO ESPÍNDOLA CAVALHEIRO, Advogado de entidades sindicais na Região do Triângulo Mineiro (MG), especialista em Direito do Trabalho, membro do coletivo jurídico da Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas), militante do PSTU e estudioso das questões ambientais. Contato com o autor: [email protected]

NOTA:
1.
Leia o artigo