Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU
Firminia Rodrigues, da Secretaria Nacional de Mulheres
O dia 28 de setembro marca a Luta pela Legalização e Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe desde 1990, ano em que o Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho instituiu essa data para discussão, lutas, protestos e visibilidade para o tema. No Brasil, essa data também é lembrada pela morte de Jandira Magdalena dos Santos, vítima, em 2014, de um aborto clandestino malsucedido e que culminou na sua morte, aos 27 anos de idade, sendo seu corpo encontrado carbonizado e sem a arcada dentária para não ser identificado.
Assim como Jandira, milhares de mulheres trabalhadoras e pobres morrem todos os anos por aborto não legalizado e criminalizado na América Latina e Caribe. Nessa região, três a cada quatro abortos são feitos de forma insegura, em um total médio de 4 milhões de procedimentos por ano. Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), apontam que o aborto ilegal e inseguro cause ainda 30 mortes a cada 100 mil abortamentos na América Latina e no Caribe.
Alguns países têm o aborto legalizado, como Cuba, Guiana, Guiana Francesa, Uruguai, Argentina e Porto Rico, e recentemente o México aprovou a descriminalização. É uma grande vitória que a legislação desses países esteja a favor da vida das mulheres, apesar de sabermos que a garantia legal não significa necessariamente o acesso real ao aborto seguro e gratuito. Muitos lugares onde a interrupção da gravidez não é crime não asseguram a gratuidade do procedimento, ou dificultam seu acesso, restringindo-os a alguns poucos serviços de saúde, impossibilitando, por exemplo que mulheres pobres, do campo ou de cidades pequenas e comunidades, que não tenham como se deslocar até ali, possam realizá-lo. Ou ainda precarizando os serviços de saúde ou se apoiando no argumento de objeção de consciência por parte dos profissionais de saúde para fechar serviços.
No restante da região, contudo, legislações retrógradas e inclusive retrocessos na lei, seguem submetendo as mulheres a riscos desnecessários de morte e sequelas ou condenando-as à prisão mesmo por abortos involuntários. São países que variam desde restrição total, como El Salvador, Nicarágua, Suriname, República Dominicana e Honduras; à existência de exceções para salvar a vida da mulher, como no Brasil, Chile, Venezuela, Guatemala, Panamá, Haiti; combinação para salvar a vida da mulher e sua saúde física, como na Bolívia, Costa Rica, Peru e Equador e combinação para salvar também a saúde mental como na Colômbia.
É fundamental avançarmos na luta pelo aborto, sem restrições, em todos os países, além de que seja assegurado pelo Estado, de forma ampla, gratuita e segura, para que todas as mulheres, independentemente de sua condição econômica, possam acessá-lo se assim o desejarem, e que essa medida seja acompanhada de outras políticas públicas, partindo da compreensão da maternidade como um direito e não uma imposição.
Aborto e a questão trans
É importante salientarmos que a discussão sobre o aborto não abarca apenas mulheres cisgênero, mas também homens trans e pessoas intersexo e não binárias, já que pela possibilidade biológica de uma gravidez, essas pessoas também se veem na condição de terem de recorrer a procedimentos clandestino e inseguros quando diante de uma gestação não planejada e indesejada. A invisibilidade e transfobia não permite sequer encontrar números específicos de aborto realizado por homens trans, pessoas intersexo e não binárias. O que se apresenta é a dificuldade de se acessar os serviços de saúde numa situação de abortamento, legal ou provocado. E mesmo quando se consegue acessar esses serviços, o que se vê é desinformação, preconceito e desconhecimento de como lidar a gravidez de alguém que não uma mulher cis. A saúde reprodutiva da população LGBTI nunca foi prioridade e a negação do direito ao aborto também entra nessa questão. Os números apresentados nesse artigo têm relação, quando nominados, às mulheres, que são os dados públicos e mesmo assim subnotificados, mas queremos explicitar que alguns números também podem abarcar homens trans e não binários, mesmo que não de forma específica.
A questão do aborto no Brasil
No Brasil o aborto é crime, com pena de 1 a 3 anos de prisão para a gestante que o comete, e de 1 a 4 anos para o médico ou pessoa que ajude no procedimento. Em apenas algumas situações o aborto provocado não é punível pela lei: para salvar a vida da gestante; quando a gestação é resultante de estupro ou se o feto for anencefálico (não tiver cérebro). Nesses casos, o Sistema Único de Saúde (SUS) deve fornecer gratuitamente o procedimento, embora nem todos os estados contem com serviço de aborto legal. Essa permissão para abortar, contudo não significa uma exceção ao ato criminoso, mas uma escusa absolutória, ou seja, uma situação em que houve um crime e a pessoa que o cometeu foi declarada culpada, mas, por razões de utilidade pública, não está sujeita às penas previstas na lei.
Ainda assim, estima-se que mais de 500 mil abortos provocados ocorram anualmente no país. Segundo o Ministério da Saúde, os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade. Entre 2009 e 2018, o SUS oficializou 721 mortes causadas por aborto, mas esses números não refletem toda a realidade. Levantamento realizado por pesquisadores e publicado pela Fiocruz mostra que se forem consideradas o conjunto dos prontuários que mencionam o aborto, mas apresentam outras razões de morte, o número pode saltar em 29% e isso sem contar a subnotificação.
Como podemos ver, criminalizar o aborto não faz com que o mesmo não aconteça, o que sim faz é colocar na clandestinidade milhares de procedimentos feitos anualmente, submetendo as mulheres trabalhadoras e pobres a situações de risco para sua vida e saúde, e contribuindo para a “legalização” de clínicas clandestinas, que muitas vezes não possuem estrutura necessária para a prática do aborto e o submundo da venda indiscriminada de Cytotec (misoprostol) sem a devida indicação e supervisão médica. Contribui ainda para as famosas garrafadas para abortar vendidas em mercados pelo Brasil afora, isso sem contar as inúmeras formas violentas de tentar aborto como agulhas de tricô, socos, tesouras, etc. Para além de tudo isso, ainda é o que causa a morte de várias mulheres, que mesmo diante de complicações de aborto malfeito, não procuram ajuda médica, pelo receio de serem denunciadas por aborto ilegal.
Legitimação da opressão
A criminalização do aborto está relacionada diretamente à opressão da mulher em nossa sociedade, pois funciona como um mecanismo de controle de sua sexualidade. Dessa forma, autonomia e o direito de decidir sobre o próprio corpo, de exercer ou não a maternidade e momento para isso é retirado da mulher e passado para as mãos do Estado, com as justificativas mais variadas possíveis – a maioria de cunho moral e religioso – desde de que a vida começa na concepção e, portanto, abortar seria um pecado mortal, até pseudocientíficas como a de com a legalização o aborto viraria método contraceptivo, o que não tem nenhuma base real, ao contrário, países que legalizaram o aborto no geral, viram as estimativas de aborto voluntário se reduzirem provavelmente por investem mais em políticas preventivas.
A restrição do aborto portanto, representa uma expressão legal e jurídica da opressão da mulher na medida em que o controle é exercido pelo próprio Estado. É verdade que a discussão sobre o aborto está pautada na maioria das vezes nos argumentos de saúde pública, isso porque sua proibição tem consequências muito concretas na vida das mulheres trabalhadoras e pobres que não podem pagar para realizar o procedimento de forma segura em clínicas de alto padrão como fazem as mulheres burguesas, pequeno-burguesas ou que tem uma condição econômica melhor. Isso, contudo, não nega o fato de que se trata de uma luta pelo direito à autodeterminação da mulher, somente ressalta que para as mulheres da nossa classe é um direito ainda mais sentido, porque a negação de seu exercício pode representar o limiar entre viver e morrer, ou entre ter uma vida saudável ou conviver com sequelas.
Quem aborta e quem morre de aborto no país
O SUS tem um gasto anual enorme com procedimentos (curetagens e aspirações) feitos a partir de abortos malsucedidos. No primeiro semestre de 2020 foram 80,9 mil procedimentos desse tipo no país, com um custo de R$ 14,29 milhões, gasto que poderia ser reduzido, e muito, com a legalização do aborto e investimento em políticas de saúde reprodutivas com foco na prevenção da gravidez indesejada e, inclusive, no combate à violência de gênero, já que que meninas de 10 a 14 anos totalizaram 642 internações por aborto em 2020 e outras 24,8 mil ocorreram de 2010 a 2019, sendo a maioria dessas meninas negras, numa proporção de 3 crianças negras para cada branca.
Mas, quem aborta no país? Segundo a Pesquisa Nacional sobre Aborto no Brasil, de 2016, 1 em cada 5 mulheres até 39 anos já fez aborto, sendo a maior parte entre 20 e 29 anos; 88% das mulheres que abortam declaram ter religião; 67% já têm filhos. Além disso, boa parte é casada, trabalha fora e usa algum método anticoncepcional. Isso derruba por terra a visão moralista e burguesa de que quem faz aborto é aquela mulher “irresponsável” e “promíscua” que aborta indiscriminadamente usando o procedimento como método contraceptivo. Ao contrário, a maioria das mulheres que abortam, o fazem apesar de suas convicções morais e religiosas, muitas vezes por não terem condições de criar mais uma criança, já que o mesmo Estado que nega o direito ao aborto, não garante condições de exercer a maternidade com dignidade. Não por acaso, as maiores taxas de aborto são entre mulheres negras e indígenas, com menor escolaridade e que moram no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país, onde a pobreza é maior e a oferta de serviços e políticas sociais, menores.
E se, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 3 em cada 10 grávidas realizam aborto no país, o número de mulheres que morrem evidencia como a combinação classe, gênero e raça opera na sociedade de classes burguesa. Das 721 mortes causadas por aborto entre 2009 e 2018, a maioria eram mulheres negras, numa proporção de 6 para cada 10 mulheres mortes. Enquanto entre mulheres brancas a taxa é de 3 óbitos por aborto a cada 100 mil nascidos vivos, entre as negras esse número sobe para 5. Para as que completaram até o ensino fundamental, o índice é de 8,5, quase o dobro da média geral de 4,5. As mulheres indígenas, moradoras distantes dos centros urbanos e meninas menores de 14 anos também estão no ranking de mulheres que mais morrem devido à abortos clandestinos. E esses dados são subnotificados, já que os oficiais são de pessoas que procuraram o serviço de saúde após complicações.
Governo Bolsonaro e o retrocesso na discussão do aborto
Se a discussão e a aprovação da legalização do aborto já eram difíceis no país, já que nenhum governo pautou verdadeiramente esse tema para não se indispor com os setores conservadores, no Governo Bolsonaro a situação piorou. Um governo de ultradireita, que fez questão de colocar o que há de mais reacionário, como a ministra Damares Alves, para lidar com a questão do aborto. Damares não apenas defende contra o aborto e faz lobby no Congresso em nome do governo e dos evangélicos para aprovar leis ainda mais restritivas, mas inclusive busca impedir que as mulheres exerçam seu direito legal de recorrer ao aborto nos casos previstos por lei, como quando tentou impedir uma menina de apenas 10 anos de realizar o procedimento.
Entre 2019 e junho de 2020 nada menos do que 28 projetos de lei para restringir o aborto foram propostos no Congresso, contra apenas 1 em favor da legalização. Isso mostra que a luta pelo direito ao aborto não está desconectada da luta pelo Fora Bolsonaro, já que esse governo é uma ameaça direta de retrocesso aos nossos direitos. Ao mesmo tempo, o fato de que em nenhum governo “progressista” ou dito de “esquerda”, como o PT, incluindo Dilma, que foi a primeira mulher a governar o país, a pauta do aborto tenha avançado, evidencia que não podemos depositar nossas esperanças no resultado de uma ou de outra eleição para obtermos essa conquista democrática, pelo contrário, no sistema capitalista burguês as leis, os direitos democráticos e todas as garantias sociais são resultado da luta de classes.
As lutas democráticas e a independência de classes
Embora seja perfeitamente possível conquistas democráticas nos marcos do regime democrático burguês e por isso mesmo podemos e devemos nos organizar e lutar para isso, é preciso entender que, enquanto perdurar esse sistema, esses direitos não estarão assegurados, nem a priori, nem integralmente e sequer de forma permanente. O capitalismo é tão cheio de contradições que mesmo a igualdade e liberdade formais, ou seja, legais, não podem ser concedidos a todos os indivíduos sem que se provoque tensões no seu interior. Por isso, as conquistas são sempre provisórias, parciais, desvirtuadas, limitadas. Por isso também que até mesmo a luta mais democrática deve ser sempre travada pela classe trabalhadora, de forma independente (o que não quer dizer que não possamos fazer unidade de ação com setores burgueses em determinadas situações, mas sempre mantendo a independência organizativa e programática) e numa perspectiva socialista e revolucionária.
Sem essa compreensão podemos cair na armadilha de achar que só é possível lutar pelas bandeiras democráticas em unidade com setores burgueses, o que não é verdade, já que a unidade de ação não é uma imposição histórica, pode ou não ocorrer de acordo com as necessidades do movimento dos trabalhadores. Ou o que é pior, a conformarmos organizações e frentes comuns com a burguesia pelas pautas de opressões, ou ainda apostar todas as fichas nos processos eleitorais, ou defender certas ideologias e certas políticas burguesas no interior da classe que além alimentar confusões sobre a natureza do sistema e os limites das lutas democráticas, ainda conspira contra os próprios oprimidos.
Uma coisa é defender a autonomia para os oprimidos e o direito à auto-organização desses setores no interior da classe, que é uma medida não apenas justa como necessária; outra muito diferente é alimentar a ilusão no empoderamento que é uma estratégia burguesa e que apresenta saídas individuais (ou em determinados casos de forma coletiva a grupos restritos). Uma coisa é defender que os espaços de poder e decisão burgueses expressem todos os segmentos sociais, o que pressupõe a defesa da igualdade de oportunidade, outra é legitimar a representatividade como um conceito universal e a luta pela ocupação de espaços de representação como um fim em si, sem que se faça a discussão sobre o caráter de classe desses espaços. Uma coisa é defender o direito à sobrevivência da classe trabalhadora, outra é patrocinar o empreendedorismo como uma política da classe para a redução da pobreza.
Por fim, uma coisa é defender, em certos momentos, a unidade de ação com setores oprimidos das classes burguesas pelas bandeiras democráticas, a outra é limitar as lutas democráticas aos marcos do sistema de opressão e exploração que é o capitalismo. A opressão é sustentáculo desse sistema de exploração e o domínio sobre os corpos das mulheres é parte disso. São as mulheres trabalhadoras e pobres, especialmente as mulheres negras, que mais morrem vítimas de aborto clandestino, mesmo em países onde a legalização foi conquistada, pois como faz com a ampla maioria dos direitos democráticos, o Estado burguês mesmo quando garante a igualdade na lei não o faz na prática, impedindo que seu acesso seja pleno a todas as mulheres.
Aborto legal, seguro e gratuito!
A luta pela legalização do aborto é uma pauta democrática que envolve mulheres – e como já dissemos acima, homens trans, pessoas intersexo e não binárias– de todas as classes, mas são principalmente as mulheres e LGBTIs trabalhadores, que mais tem interesse nesse tema, pelas consequências concretas que a restrição ao aborto trás para nossas vidas e saúde. Mas, não se trata de uma luta só das mulheres, e sim de toda a classe trabalhadora para que esse direito nos seja devidamente assegurado, uma luta por nossas vidas e nossos direitos democráticos, cuja conquista nos fortalece e nos coloca em melhor situação para nos organizarmos e lutarmos contra esse sistema capitalista burguês que nos oprime e nos explora.
E ainda há, pela LGBTIfobia, o cerceamento desse direito também aos homens trans e pessoas intersexo e não binárias trabalhadoras, que também podem acabar morrendo em decorrência do preconceito e da clandestinidade. Por isso é fundamental defender que a legalização do aborto seja garantida em sua plenitude, entendendo esse direito inclusive como parte do próprio direito ao exercício da maternidade/paternidade, o que significa tanto o acesso à saúde de forma universal e gratuita, acesso amplo à métodos contraceptivos sem burocracias, acesso à planejamento familiar e educação sexual e políticas para que a classe trabalhadoras possa ter e criar seus filhos e não ser obrigada a recorrer ao aborto por questões econômicas e sociais.
Essas são medidas mínimas para que o aborto clandestino e as mortes decorrentes sejam reduzidas ao extremo. Ao assumir essa bandeira junto com as mulheres e LGBTIs, as organizações da classe não estarão fazendo um “favor” às mulheres, mas ajudando na educação da classe sobre a importância do combate e da luta contra a opressão e a discriminação, a fortalecer os laços de solidariedade e a unidade dos trabalhadores e estimulando a consciência de classe. Além disso, a luta pela autodeterminação e liberdade dos corpos deve vir sempre acompanhada da luta pela superação do sistema burguês capitalista, para que haja emancipação real dos oprimidos em sua plenitude sendo que essa luta virá da organização das trabalhadoras e trabalhadores pela construção de uma outra sociedade, socialista, como uma necessidade de toda a classe.