Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU

Semana passada, a Suprema Corte americana concordou com a lei antiaborto aprovada no estado do Texas, uma das mais restritivas já aprovadas nos Estados Unidos. A lei proíbe qualquer tipo de aborto após as 6 semanas de gestação, e ainda permite que qualquer pessoa denuncie uma mulher ou profissional de saúde que estiver envolvido na prática do aborto, com recompensa para a denúncia. Além de um enorme retrocesso naquele estado, esse posicionamento tem um significado histórico e pode mudar a legislação americana em diversas outras regiões. Estados como Alabama, Ohio, Georgia, Kentucky e Mississipi já têm leis parecidas.

Em 2013, o Texas já havia aprovado uma lei que restringiu o acesso ao aborto a várias mulheres. A lei impunha sérias restrições a clínicas e médicos que faziam o aborto legal. Como resultado, mais da metade das clínicas do estado foram fechadas e mulheres precisaram deslocar-se por mais de 300 km para ter acesso ao aborto seguro. A justificativa da lei era que o aborto era um procedimento extremamente arriscado e que precisava ser realizado em locais com grande suporte médico. No entanto, em 2016, a lei chegou até a Suprema Corte e foi vetada pela maioria dos juízes. Os argumentos conservadores não tinham amparo científico. Um parto pode ser muito mais arriscado que o aborto. Assim como procedimentos cirúrgicos de portes parecidos que não tinham medidas tão exigentes para execução. Prevaleceu a decisão de assegurar às mulheres do Texas um aborto seguro e de fácil acesso, mantendo então a mesma posição do caso Roe versus Wade.

Qual a importância do caso Roe versus Wade

Para quem não sabe, o caso Roe versus Wade foi uma decisão da Suprema Corte em 1973 que assegurou o direito de todas as mulheres americanas ao aborto, julgando como inconstitucional qualquer lei que violasse esse direito. A decisão se baseava no direito à privacidade e que toda mulher podia decidir por si mesma a continuidade ou interrupção da gravidez. Roe era o pseudoanônimo de Norma McCorvey, que teve seu acesso ao aborto negado pelo estado do Texas. Recorreu a instâncias superiores, porém a decisão veio somente após o nascimento da criança, que na época foi encaminhada para adoção.

Desde então, todos os estados americanos foram proibidos de aprovarem leis restritivas ao aborto. Porém, os movimentos antiaborto nunca aceitaram esta derrota. Ao longo das décadas de 80 e 90, várias clínicas e médicos foram atacados por esses movimentos. E o tema era alvo dos debates presidenciais. Os setores evangélicos determinavam seu apoio aos candidatos republicanos condicionados pelo seu posicionamento contra o aborto, na esperança de modificar a composição da Suprema Corte e derrubar a decisão Roe versus Wade.

Várias tentativas foram feitas nesse sentido. E durante o governo de George W. Bush foi aprovada uma lei que proibia a interrupção da gravidez no 3º trimestre de gestação. Várias mulheres com fetos com malformações incompatíveis com a vida extrauterina foram impedidas de interromper a gestação. Precisaram continuar em uma gravidez mesmo sabendo que não teriam seus filhos vivos após o parto.

Durante o governo de Trump houve uma mudança significativa na Suprema Corte e os conservadores viraram maioria. Viram então a grande oportunidade de derrubar a decisão de 1973. A abstenção da Suprema Corte em revogar a atual lei do Texas é inconstitucional e um atraso de décadas nos direitos democráticos das mulheres americanas.

A luta pelo acesso ao aborto como direito democrático e de saúde pública

Os abortos não deixaram de acontecer, não importa a legislação. O melhor exemplo é o Brasil, onde é estimado um número de 500 mil abortos todos os anos, mesmo sendo ilegal. O que muda é o direito a um aborto seguro sem risco a vida ou punições. E tais mudanças irão atingir muito mais as mulheres negras e pobres do EUA, que já não possuem acesso universal a saúde.

O instituto americano Guttmacher, uma organização de pesquisa que apoia o acesso ao aborto, divulgou que em 2017 o número de abortos foi quase 50% do número de 1990. Isso se deve, entre outras causas, ao maior acesso a orientações contraceptivas. Pois, quando o procedimento é realizado por uma equipe médica preparada, existe a preocupação de não haver recorrências, diferente de um aborto clandestino. O acesso a métodos contraceptivos eficientes e seguros é a verdadeira ação de promoção a vida que um governo pode ter e não interferindo no direito particular de cada mulher decidir sobre seu futuro e seu corpo. Isso porque os métodos usados pela maioria das mulheres no mundo ainda têm taxas de falha de até 7 a 8%, fazendo com que um significativo número das gestações seja indesejado.

A disputa pelo direito das mulheres americanas de decidir pelo seu corpo não pode ser encarada apenas como uma disputa restrita à Suprema Corte. Na verdade, ela é reflexo das lutas dos movimentos sociais e de mulheres. Na década de 70, a decisão de Roe versus Wade só pôde ocorrer devido ao enorme ascenso dos movimentos de mulheres por seus direitos, cujas grandes mobilizações foram posteriormente chamadas de segunda onda feminista.

Mais recentemente, as mulheres argentinas deram exemplo ao mundo pela sua organização e mobilização que terminou na vitória da legalização do aborto no país. Assim como também no México, onde a luta das mulheres contra a violência e por direitos influenciaram de forma decisiva na sentença da Suprema Corte que anulou a pena de prisão para a interrupção voluntária da gravidez aplicada em alguns estados, descriminalizando assim o aborto e abrindo caminho para a legalização em todo o país. Isso mostra duas coisas: a primeira é que é possível derrotar a onda conservadora antiaborto e reverter a decisão do Texas, e inclusive conquistar esse direito aqui no Brasil. Mas, para isso é preciso organizar a batalha e botar o bloco na rua, pois somente por meio da mobilização dos que lutam e defendem os direitos democráticos, se pode mudar esse cenário. A segunda é como no capitalismo nenhuma conquista democrática está totalmente assegurada. O fato de 48 anos após a legalização do aborto nos Estados Unidos, venha a ser, precisamente o Texas – estado onde a batalha judicial por esse direito começou– a enfrentar esse retrocesso não é apenas simbólico, mas o exemplo de como o capitalismo não pode proporcionar às mulheres, a não ser de forma parcial, provisória e deformada a igualdade, mesmo do ponto de vista jurídico.

No capitalismo, os direitos e conquistas democráticas das mulheres estão sempre ameaçados, pois a opressão, longe de ser uma excepcionalidade, é funcional ao sistema, na medida em ajuda a dividir e fragmentar a classe trabalhadora, permite superexplorar parcelas da classe (mulheres, negros, imigrantes, etc) e ainda mantém um exército especial de reserva (as mulheres trabalhadoras), que tira e põe do mercado de trabalho de acordo com suas necessidades. Evidentemente, não são apenas as mulheres trabalhadoras ou os setores oprimidos da nossa classe que sofrem com a opressão e a falta de direitos, e é isso que explica por que muitas vezes setores burgueses e pequeno-burgueses ou parcelas da intelectualidade, se colocam na direção de movimentos em defesa da igualdade. Contudo, ao limitarem o programa de tais movimentos, a obtenção conquistas nos marcos do sistema levam a luta para um beco sem saída, já que a igualdade só pode se efetivar de verdade suprimindo o sistema capitalista que sustenta as opressões e as ideologias burguesas que as justificam. É a falta dessa perspectiva de classes, socialista e revolucionária o principal limite de muitas direções e movimentos, que mesmo mobilizando muita gente, acabam na prática impedindo que essas lutas extrapolem as margens burguesas, canalizando toda a energia dos lutadores para estratégias eleitorais ou para questões como representatividade, empoderamento, etc. E porque leis aprovadas há tantos anos, como a do Caso Roe versus Wade, possam ser revertidas pela simples mudança na composição da Corte Suprema dos Estados Unidos.

Como já dissemos, a lei antiaborto no Texas é um enorme retrocesso para as mulheres, especialmente para as mulheres pobres e negras da classe trabalhadora, por isso nós, do PSTU, nos colocamos veemente contra esse ataque, pois entendemos que, assim como a conquista da legalização do aborto na Argentina fortalece a nossa luta, a perda de uma conquista como essa nos EUA, fortalece os setores reacionários e conservadores, de Bolsonaro e da ultradireita na ofensiva contra nossos direitos. Nesse sentido nos solidarizamos e nos colocamos ao lado das mulheres e homens americanos na luta pela revogação dessa lei. Ao mesmo tempo que reafirmamos a necessidade de vincular essa luta a uma estratégia de destruição do sistema capitalista, numa perspectiva socialista e revolucionária, para que, superando esse sistema de exploração e opressão, possamos avançar para a emancipação e a real igualdade e liberdade das mulheres em se autodeterminar, em base a outras relações, mais humanas e saudáveis.