Brasilia DF 06 12 2018 i.O futuro ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, anuncia a futura ministra de Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Ela também ficará responsável pela Funai.Valter Campanato/Ag. Brasil
Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

Uma polêmica generalizada envolvendo a futura ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo de Jair Bolsonaro, Damares Alves, tomou conta das redes sociais nos últimos dias, após um vídeo onde ela firma ter visto Jesus em um pé de goiaba, viralizar na internet. Não demorou para que Damares se transformasse em alvo de todo tipo de chacota. Até a imprensa burguesa deu destaque ao fato.

De acordo com o testemunho da pastora, o episódio teria ocorrido num momento dramático de sua vida, quando tinha 10 anos de idade e estava prestes a cometer suicídio por sentir-se culpada pelos abusos sexuais que sofreu dos 6 aos 8 anos. É lamentável que a tragédia pessoal de Damares Alves tenha servido de piada. Não tem graça, sobretudo quando se sabe que há milhares meninas e adolescentes padecendo em silêncio sobre goiabeiras, à espera de alguém que as liberte de seu sofrimento. Da mesma forma como milhares de mulheres vítimas de assédio e/ou outros tipos de violência sofrem caladas por medo ou vergonha de denunciar seu agressor.

Infância roubada
As crianças são as principais vítimas da violência sexual no Brasil. Segundo o Atlas da Violência – 2018, dos 49.497 registros de estupro contabilizados em 2016, 68% foram contra menores, sendo que em 51% dos casos se trataram de crianças de até 13 anos de idade. Mesmo os casos de estupro coletivo têm como vítima, majoritariamente, crianças de até 13 anos. Na maioria dos casos o abuso acontece em casa e os autores são conhecidos das vítimas. A taxa de recorrência também é altíssima. Em 2016, 42,4% das vítimas disseram não ser a primeira vez que sofriam com violência sexual.

A violência sexual contra meninas e adolescentes também se expressa nas estatísticas de casamentos infantis. A cada sete segundos, uma garota com menos de 15 anos se casa no mundo. O Brasil é um dos campeões no ranking de casamento infantil, atrás apenas da Índia, Bangladesh e Nigéria. São 554 mil casamentos de meninas entre 10 a 17 anos por ano no país, segundo o Banco Mundial, sendo mais de 65 mil delas com idades entre 10 e 14 anos.

A absoluta maioria dessas meninas não tem escolha. Seja para resolver conflitos familiares, se livrar de situações de violência doméstica, incluindo o abuso sexual, ou tentar uma vida melhor, essas garotas são literalmente forçadas a um casamento precoce. Acabam assim, tendo sua infância e/ou adolescência roubadas e carregam as consequências para o resto da vida. Estima-se, por exemplo, que 30% da evasão escolar feminina no ensino secundário no mundo está relacionada ao casamento precoce. A interrupção dos estudos, por sua vez, afeta as possibilidades de emprego e quando conseguem, geralmente estão mais submetidas a atividades precárias, sem proteção trabalhista e com rendimentos muito baixos.

Lobos em pele de cordeiro
É de se questionar, portanto, o porquê as especulações sobre se Cristo apareceu ou não no quintal de Damares, tenha despertado mais interesse dos responsáveis por editar e viralizar o vídeo do que a realidade tão presente na vida de milhares de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.

Chama a atenção também o fato de que, apesar de Damares ter relatado que a igreja foi conivente com o abuso que sofreu, essa questão praticamente não foi levantada,  pois segundo ela: “quando minha mamãe descobriu, quando eu era criança, que aquele homem tinha abusado de mim, a igreja disse para a minha mãe que era pecado ela falar disso comigo. Mãe não podia falar de sexo com criança na igreja quando tinha 6 anos, porque era pecado. Era tudo pecado e a igreja mandou a minha mãe orar. Eu trocaria 19 anos de oração da minha mãe por um abraço dela quando eu tinha 6 anos”, conclui.

Evidentemente, a forma grotesca como o caso foi retratado nas redes sociais, deve ser severamente condenada. É inadmissível que num país onde a cada 11 minutos um estupro seja registrado, esse tema se transforme em motivo de chacota, mas é de se estranhar que nem Bolsonaro nem os outros “paladinos da moral e da ética” “dignos representantes da família e dos bons costumes”, que aproveitaram o episódio para denunciar a “hipocrisia da esquerda” e a “farsa das feministas” (como se a esquerda fosse uma coisas só e as feministas não tivessem diferentes concepções em relação à luta das mulheres por seus direitos), não proferiram uma palavra sequer sobre isso.

O fato de que a própria pastora, ignorando sua experiencia pessoal, tenha afirmado em mais de uma ocasião que o único lugar em que as crianças estão seguras é na igreja, revela uma enorme contradição. Se fosse bem assim, ela mesma não teria sido vítima da pedofilia. Que tenha buscado refúgio na religião para sobreviver à violência é uma coisa, que tenha se convencido de que a visão de Jesus a salvou da morte também, mas pregar que a igreja, uma das instituições mais reacionárias e que reproduz de forma mais descarada o machismo na sociedade é o único lugar em que meninas e meninos estarão protegidos, é muito diferente.

As inúmeras vítimas de agressão sexual que sofreram ou seguem sofrendo nas mãos de padres, pastores ou outros líderes religiosos pedófilos e abusadores, como no mais recente caso envolvendo o médium João de Deus, que o digam. Em situações como essa, oração não basta, é preciso que os agressores sejam exemplarmente punidos e as vítimas recebam toda a assistência necessária por parte do Estado, para superar os traumas.

Desigualdade e violência
Mas, se os escândalos de pedofilia da igreja católica; os casos de abuso envolvendo pastores e líderes de outras religiões como o médium João de Deus – que já acumula mais de 300 denúncias após uma de suas suposta vítima ter tomado coragem para falar–; o envolvimento de políticos e altas autoridades na exploração sexual de crianças e adolescentes;  dão a dimensão da extensão do problema do abuso infantil e da violência contra a mulher,  também não pode ser desconsiderado que a indicação da pastora Damares para o comando de um ministério que tem, entre outras atribuições, formular, coordenar, articular e implementar políticas públicas para as mulheres, de enfrentamento da desigualdade e da violência, representa um enorme retrocesso nas conquistas que as mulheres acumularam nesse escárnio.

Uma ministra que que se posiciona contra a inclusão nos currículos escolares de conteúdos relacionados à temática de gênero e diversidade, que classifica como “apologia ao sexo” aulas de educação sexual, que acha que a mulher nasceu pra ser mãe e rejeita que o aborto seja uma questão se saúde pública, representa um retrocesso nas pautas das mulheres.

A discussão sobre a igualdade entre meninos e meninas, o combate ao preconceito, o respeito à dignidade humana, independentemente de seu sexo, cor, credo, raça ou orientação sexual, bem como a prevenção contra a violência sexual de crianças e mulheres, da gravidez na adolescência e inclusive do aborto precisa ser incorporado ao currículo escolar. As crianças têm o direito de serem educadas no espirito da igualdade e tolerância e de receber na idade adequada, informações e orientações sobre sexo, sexualidade, métodos contraceptivos, etc. Isso não tem nada a ver com “apologia ao sexo” ou “ideologia de gênero”, terminologias utilizadas apenas como forma de descaracterizar o debate e impedir a discussão sobre esses temas nas escolas.

Que tipo de avanço se pode esperar de um governo cuja ministra da mulher repercute ideias tais como a de que “homens e mulheres não são iguais”, ou de que o padrão ideal de sociedade seria o de “estar em casa toda tarde, numa rede, e meu marido ralando, muito, muito, para me sustentar e me encher de joias e presentes”, de que as meninas devem ser tratadas como “princesas” e meninos como “príncipes”. Ou ainda pérolas como: “gravidez é um problema que dura só nove meses enquanto o aborto dura uma vida inteira da mulher”?

Esse tipo de discurso só serve para desqualificar as mulheres e reforçar seu papel no seio da família tradicional. Não leva em consideração que cerca de 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, que em muitos casos criam seus filhos sozinhas porque foram abandonadas pelos maridos, e embora sejam “provedoras do lar” ganham em média 30% menos que os homens, sendo que no caso das mulheres negras, que representam boa parte dessas chefes de família, essa diferença salarial é ainda maior e que a falta de vaga na creche é a principal dificuldade para uma mulher trabalhadora arranjar um emprego ou se manter nele.

Bolsa-estupro
E se não bastasse todo esse rol de infâmias, Damares ainda declarou que como ministra vai lutar para dar continuidade à discussão do projeto sobre o estatuto do nascituro e do bolsa-estupro, ou seja, o famigerado projeto de lei que tramita no Congresso e que prevê uma bolsa para mulheres vítimas de estupro que decidiram manter a gravidez, uma espécie de compensação financeira contra o aborto, mesmo em casos de extrema violência, até que o  pai-estuprador registre a criança, se torne o responsável pelo pagamento da pensão e conviva com a criança, e consequentemente com a vítima, mesmo depois do trauma sofrido.

As mulheres vítimas de estupro precisam contar com políticas públicas que priorizem o cuidado do seu bem estar físico e emocional, incluindo o acesso legal ao aborto seguro e gratuito; e não com uma lei que busca limitar esse direito e ainda impor a convivência obrigatória com o agressor, seja ou não através do pagamento de pensão para a criança.

Como se pode perceber, a visão de Jesus na goiabeira nem de perto se compara aos enormes desafios que deveremos enfrentar diante da nova Ministra da Mulher de Bolsonaro. Mais preocupante ainda é que não tenha sido isso a repercutir na última semana. Mas não é tarde para reverter esse clima. É possível derrotar Damares, Bolsonaro e todos os que oprimem e exploram as mulheres trabalhadoras. Mas para isso é necessário unificar a classe em torno a um plano de lutas que englobe também a pauta democráticas das mulheres e de todos os setores oprimidos. Basta de violência e machismo, nenhum direito a menos!