Pedro Henrique Ferreira, da Secretaria LGBTI do PSTU-RJ, e João Conceição, do Rebeldia USP e da Secretaria LGBTI do PSTU-SP
Há 32 anos, no dia 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) retirava a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, após 42 anos de patologização. Só em 1993 a homossexualidade foi de fato excluída do Código Internacional de Doenças (CID), o que na prática representava deixar de reconhecer a homossexualidade como doença.
Mas desde muito antes, em 1952, o DSM (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais) – manual americano que orienta a prática psiquiátrica -, já definia a homossexualidade como “doença mental”, uma dentre outras perversões ou desvios de natureza sexual. Só em 1987 a homossexualidade foi retirada definitivamente do DSM, mas anos se passaram e, até os dias de hoje, LGBTIs são internadas em manicômios, lobotomizadas, submetidas à castração química e às falsas terapias de “cura gay”, presas, violentadas, torturadas e assassinadas por conta desses eventos.
A reversão dessas medidas adotadas pela OMS e pelo DSM foram resultado de décadas de luta dos movimentos LGBTI ao redor do mundo. Representaram uma vitória, ainda que limitada e tardia, contra a patologização e contra a opressão a que lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexuais estão submetidas na sociedade capitalista.
A partir de 2004, o dia 17 de maio passou a ser incorporado nos calendários de luta dos movimentos LGBTI como Dia Internacional de Combate a Homofobia. Hoje é um dia de denúncia às violências e opressões LGBTIfóbicas e, principalmente, às práticas médicas charlatãs que buscam “curar” as LGBTIs e que, infelizmente, seguem existindo.
Além disso, 69 países no mundo ainda têm leis que criminalizam a homossexualidade. Segundo a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), a pena de morte ainda é prevista para atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo em 6 países, e imposta de forma arbitrária em outros 5 países. 42 países possuem barreiras legais contra a liberdade de expressão em questões relacionadas à diversidade sexual e de gênero, e somente 28 países que permitem a adoção por casais homossexuais.
Neste sentido, é fundamental que o Dia Internacional de Combate à Homofobia seja uma data de luta contra a LGBTIfobia no Brasil e no mundo, pela garantia de não sermos reconhecidos como doentes, criminosos ou aberreações, e para denunciar os limites e as armadilhas das medidas democráticas contra a LGBTIfobia adotadas dentro do sistema capitalista.
A patologização das pessoas Trans, Travestis e Intersexo
Apesar de gays, lésbicas e bissexuais deixarem de ser reconhecidos como doentes na década de 90, as pessoas transexuais e travestis não foram contempladas por esse direito mínimo. Mesmo com todas as lutas encampadas contra a patologização das pessoas transgênero, a nova Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID 11) lançada em 2018 pela OMS decidiu pela retirada dos “transtornos de identidade de gênero” do capítulo de “doenças mentais”. Uma vitória parcial, pois o termo passou a ser chamado de “incongruência de gênero”, e está inserido no capítulo “condições relacionadas à saúde sexual” junto com outros distúrbios como, por exemplo, disfunção sexual. De “transtornadas” a “disfóricas”, e agora “incongruentes”.
Essas definições baseiam-se em toda uma compreensão estereotipada das identidades de pessoas transexuais e travestis, que em última instância mantêm e aprofundam a opressão contra elas. Também são limitadores do acesso a serviços de saúde específicos voltados para essa população. Para derrotar essa patologização meia boca, parte do movimento LGBTI já exige que o código para exames e procedimentos indicados para pessoas trans e travestis conste na lista do CID Z, que contém a categoria “exame geral e investigação sem queixas e diagnósticos relatados”.
“Temos discutido que [a transexualidade] saia de qualquer CID, que tenha a necessidade de diagnóstico e que mude para uma CID que apenas garanta ao acesso aos procedimentos previstos para o acesso à saúde em si. Não estamos querendo inventar nada, só que não nos obriguem a passar por diagnósticos, porque o que caracteriza a doença é um diagnóstico. E principalmente quando esse diagnóstico é pautado por um profissional que vai dizer que sou ou não ‘incongruente’, o que é pior ainda. O termo ainda carrega muitos estigmas”, afirma Bruna Benevides, da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), e completa: “Luta que segue por uma despatologização que reconheça a nossa existência como uma expressão possível e natural de humanidade”.
Em relação à intersexualidade (ou seja, indivíduos que nascem ou desenvolvem características anatômicas, genéticas ou fisiológicas que não correspondam às definições típicas de homem e mulher), as práticas clínicas e médicas são ainda mais limitadas e sem base sólida. Frequentemente, as pessoas intersexuais são submetidas a procedimentos cirúrgicos próximos ao nascimento, representando na prática uma mutilação sem que o indivíduo tenha manifestado sua identidade de gênero.
Um sintoma disso é a manutenção na CID 11 da classificação “pseudo-hermafroditismo” como doença, inclusive com um cunho profundamente pejorativo por conta do termo “hermafrodita”. Como defendido pela ativista intersexo Dionne Freitas, “pessoas intersexo deveriam ter acesso completo à autodeterminação corporal”, e a alteração desse tipo de classificação é somente o primeiro passo da luta por esse direito.
Para combater a LGBTfobia, a nossa luta é todo dia!
Embora a medida adotada pela OMS há mais de 30 anos tenha representado uma vitória pontual para as LGBTIs trabalhadoras, ela não extinguiu todo um conjunto de práticas e ideologias LGBTIfóbicas na medicina, na psicologia e no direito. Enquanto isso, a LGBTIfobia se manifesta em outros cenários continuamente: a violência, o desemprego, a prostituição compulsória e a expulsão de casa e das escolas, por exemplo.
A despatologização das nossas orientações sexuais e identidades de gênero, tal como todas as medidas adotadas dentro da sociedade capitalista em que vivemos, é absurdamente limitada pelo próprio papel que a opressão cumpre para a exploração geral dos trabalhadores: a classe dominante quer nos dividir do resto da classe trabalhadora e nos superexplorar. Essa divisão, o rebaixamento geral das nossas condições de vida e salário, bem como a formação de uma grande massa de trabalhadoras LGBTIs que vive na miséria e no desemprego são a base de funcionamento do capitalismo que arranca os nossos direitos e as nossas vidas.
Precisamos botar pra fora já Bolsonaro, Mourão e Damares e derrotar todos os que atacam as LGBTIs: conservadores, fundamentalistas, Felicianos e Malafaias da vida! Mas para acabar de vez com a patologização das LGBTIs e garantir tudo que nos é direito, é fundamental acabar com o capitalismo. As trabalhadoras e os trabalhadores, em toda a sua diversidade, precisam colocar o socialismo e a revolução na ordem do dia, fazer uma rebelião ainda maior que Stonewall, para poder tomar as rédeas do país e controlar as riquezas e os meios de produção, e assim garantir que todas as necessidades e os interesses das LGBTIs trabalhadoras sejam atendidos, e não somente o reconhecimento de que não somos doentes. Só com o fim de todas as formas de exploração e opressão vamos ser realmente livres!
Para que as LGBTIs consigam realmente derrotar a LGBTIfobia de uma vez por todas é imprescindível acabar com o capitalismo! A partir dos escombros da sociedade capitalista é fundamental construir uma sociedade socialista, onde a sociedade lute todos os dias pelo fim da LGBTIfobia, onde tenhamos a liberdade de sermos e viver quem somos!
Pela despatologização total de todas as orientações sexuais, identidades de gênero e intersexualidades! Criminalização da LGBTIfobia, pra valer, já!