Jimi Hendrix
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Redação

Foi num 15 de agosto há 40 anos, que teve início um dos mais míticos shows da história da música: o Festival de Woodstock. Aliás, o que ocorreu na área rural de Bethel, nos arredores de Nova York, foi muito mais que um show. Foi a celebração de uma época,Às 17h do dia 15, Richie Havens subiu ao palco para abrir o festival ao som de alguns dos maiores clássicos do rock psicodélico e da música folk, cuja melhor tradução é “popular”, em vez de “folclórica”, já que muitas vezes se remete às canções de trabalho da população negra escravizada ou a músicas de autoria indeterminada. Numa explosão de alegria, o público literalmente foi ao delírio com suas interpretações de “With a little help from my friends”, “Strawberry fields forever” e “Hey Jude”. Além disso, Richie apresentou uma música composta praticamente nos bastidores de Woodstock que se tornou um dos símbolos máximos do festival, a eletrizante “Freedom”.

Pouco depois, foi a vez do papa da música indiana, Ravi Shankar, encher o ar com seu orientalismo, enquanto uma torrencial tempestade lavava o corpo e a alma do milhares que balançavam os corpos ao som de sua cítara.

Depois de uma série de outras bandas, Joan Baez, a porta-voz da música de protesto na época, no sexto mês de gravidez, tomou o microfone e, acompanhada apenas de seu violão, fez a multidão cantar em coro uma das mais belas músicas cantadas pelo movimento negro da época: “We shall overcome” (“nós venceremos”).

O clima psicodélico iniciado no dia anterior e mantido a todo vapor pelos presentes no decorrer de toda a noite, intensificou-se no sábado, 16, quando subiram ao palco bandas como Quill e, principalmente, o som chicano do Santana, que agitou Woodstock com músicas como “Persuasion”, “Soul sacrifice”.

Um momento eternizado naquele sábado foi a apresentação de Janis Joplin, que morreria pouco depois. Com sua voz rouca, digna de uma diva negra do blues, Janis interpretou, de forma visceral, músicas como “My heart”, “Ball & Chain”, “To love somebody”, a inigualável “Summertime” (do musical negro Porgy and Bess), “Try (Just a little bit harder)” e “Work me Lord”.

Se não bastasse a enorme qualidade musical das apresentações que driblavam as muitas falhas técnicas do evento, os músicos ainda as intercalavam com discursos que remetiam ao Vietnã, às lutas dos movimentos feminista, negro e GLBT, aos direitos humanos e a todo tipo de questão. Tudo num clima de extrema irreverência e criatividade.

Um exemplo registrado destas cenas está na fala de Jerry Garcia, do Grateful Dead, que também se apresentou no sábado. Enquanto cantava músicas como “Mama tried”, “Dark Star/High Time”, Garcia ostentava um enorme baseado, dizendo “Maconha: evidência A”, num claro desafio à criminalização da droga.

Já perto da madrugada, o Creedence Clearwater Revival, não deixou ninguém parado ao cantar “Ninety-nine and a half (Won’t do)”, “I put a spell on you”, “Sing a simple song” e a deliciosa “Dance to the music”.

A apoteose, contudo, aconteceu já na manhã de domingo quando, às 4h, o The Who fez ecoar pelos 600 acres da fazenda praticamente todo o repertório de uma de suas mais fantásticas criações, a ópera-rock Tommy, com interpretações ensandecidas de “Tommy can you hear me?”, “Acid Queen” e “Pinball wizard”.

Duas horas depois, quando o sol brilhava em meio às nuvens de chuva, foi a vez do Jefferson Airplane fazer com que o público embarcasse numa viagem. Declarando que ali estava se construindo um novo amanhecer, o grupo o saudou com sucessos como “Somebody to love” e “Uncle Sam’s Blues”.

Depois de um intervalo, Joe Cocker e a Grease Band iniciaram sua apresentação às 14h, provocando o que talvez tenha sido o momento mais alucinado do festival ao cantar “Feelin’ alright” e “Let’s go get stoned” (algo como “vamos ficar chapados”), que serviu como deixa para o que talvez tenha sido a maior celebração pública da cannabis em qualquer parte do mundo.

Para esfriar os ânimos, uma nova tempestade teve início logo no final do show, obrigando uma interrupção dos espetáculos até o início da noite, quando a banda country Joe and the Fish retomou as apresentações ao som de “Love machine”.

Já passava da meia-noite quando o Blood, Sweat & Tears fez sua apresentação, mas o público resistia com incansável energia, recarregada ainda mais pelas apresentações de Johnny Winter e seu irmão Edgar Winter, que enlouqueceram o público com “Johnny B. Goode” e com as fabulosas interpretações feitas pelo Crosby, Stills, Nash & Young para sucessos como “Blackbird” e “Marrakesh Express”.

O festival terminou na manhã de segunda, quando restavam apenas umas 50 mil pessoas na área. O fechamento coube ao incomparável Jimi Hendrix. Numa perfomance de guitarra que muitos diriam depois estar possuído, Hendrix fez uma apresentação que o eternizou, apesar de sua precoce morte, também pouco depois de festival.

Ao lado do grupo “Gypsy Sun and Rainbows”, o jovem negro tocou nada menos do que 16 músicas. Depois de incendiar o público com “Voodoo Child”, “Lover man” e “Red house” (tocada com uma guitarra de cinco cordas, depois de uma delas estourar no meio da música), Hendrix deu seu recado político e entrou para a história ao apresentar uma versão eletrizante para o então odiado hino norte-americano (“The Star-Spangled Banner”).

A ousadia de Hendrix, que iniciou os conhecidíssimos acordes com os dedos estendidos no sinal de paz e amor, surpreendeu o público e escandalizou a mídia, principalmente porque em seu impressionante arranjo, fez com que partes do hino soassem como bombardeios, desconstruindo, assim, o símbolo máximo do patriotismo norte-americano, em aberta referência às atrocidades cometidas no Vietnã.

Sua despedida e o final do Festival de Woodstock não poderiam ter sido menos apoteóticas. Foi ao som da fantástica “Purple Haze”, sucedida pela impagável “Hey Joe” que os últimos momentos daquele sonho libertário chegou ao fim.

Nem depois!
Já era quase tarde de segunda-feira quando os últimos milhares começaram a tomar o rumo de casa. Muitos já tinham percebido que haviam participado de algo histórico, mas, certamente, poucos sabiam que, ali, começava um verdadeiro mito da história da música contemporânea.

Um mito que, como todos os demais, com o passar dos anos, foi amplificado com inúmeras histórias e lendas, nenhuma delas, contudo, capaz de superar o que houve de mais real em Woodstock: o festival foi a celebração mais impressionante de toda uma época.

Foi a festa que celebrou tudo que significou 1968, o ano que nunca acabou. O momento de exaltação das liberdades que estavam sendo arrancadas nas ruas. O grito de jovens mulheres que haviam colocado abaixo o mito da submissão feminina. O eco estrondoso de uma juventude que rebelou-se contra a segregação racial e a homofobia.

Acima de tudo, foi a expressão artístico-musical daquilo que pulsava nos corações e mentes de uma juventude que ousou se rebelar, que não se curvou à ordem e que sonhou tão intensamente com um mundo diferente que chegou a transformar tudo isto em realidade, mesmo que de forma temporária e anárquica.

Por isso mesmo, foi um momento único. Não porque aqueles jovens envelheceram e os sonhos morreram com eles, deixando apenas sua trilha sonora como testemunha. Muito pelo contrário. Ao juntar gente de todos os cantos do EUA e muitas partes do mundo, o Festival de Woodstock e as ideias cantadas, trocadas e vividas naquele fim-de-semana se espalharam como rastro de pólvora, chacoalhando, ainda por anos, o status quo e o cenário cultural de uma parcela significativa do planeta.

Foram estas ideias que contribuíram, por exemplo, para por fim à Guerra do Vietnã e para formar toda uma nova geração de ativistas nas décadas seguintes. Anos nos quais, apesar das esperanças de muitos, não viram o esplendor da Era de Aquário, devido a fatores que estão muito mais ligados à realidade do que à imaginação que vibrou intensamente naqueles três dias.

A contraofensiva, tanto econômica quanto política, iniciada na década seguinte, repercutiu profundamente no cenário cultural. O mundo mudou, a música mudou. Em poucas palavras, a força do capital sufocou o ímpeto coletivo das manifestações artísticas.

Em meados da década de 1970, os festivais ao ar-livre foram dando lugar aos shows realizados em locais fechados, ginásios e centros de convenções, cada vez mais controlados e caros. Paralelamente, a ideia do verdadeiro multiculturalismo e da diversidade artística que possibilitou encontros como o de Ravi Shankar, Joan Baez e Jimi Hendrix num mesmo palco, foi perdendo espaço para os espetáculos solos. Tudo isto acompanhado pela crescente mercantilização dos eventos.

Prova irrefutável disto foram as tentativas ao redor do mundo de ressuscitar o espírito de Woodstock. Exemplos particularmente lamentáveis foram as tentativas oficiais de reeditar o festival.

No aniversário de 25 anos, em 1994, um megaevento, o Woodstock II (com ingressos custando US$ 135), foi organizado também nos arredores de Nova York, com bandas como Nine Inch Nails, Aerosmith, Metallica e Red Hot Chili Peppers, ao lado de remanescentes como Peter Gabriel, Carlos Santana e Joe Cocker. Mas tudo foi diferente.

A organização do show foi marcada por uma acirrada disputa comercial, liderada por uma empresa que também detinha o nome da marca e que se autopromoveu como “o Woodstock que daria lucro”, inclusive para os músicos.

Uma promessa que, contudo, ainda esbarrou na invasão promovida por dezenas de milhares que, a exemplo da primeira edição (mas se confrontando com o forte esquema de segurança), puseram as cercas abaixo, dando livre acesso à maioria dos 250 mil que se acotovelaram no local.

Enquanto isso, outro evento foi programado para o local original do festival, a Fazenda Yasgur, mas foi cancelado na última hora, depois de vender apenas 1.650 ingressos. Apesar disto, cerca de 25 mil fãs se deslocaram para o local, o que acabou resultando numa inusitada apresentação gratuita proporcionada por músicos veteranos, como Richie Havens, Country Joe McDonald, Arlo Guthrie, Canned Heat, Sha Na Na e Melanie.

Pior, contudo, foi a edição do 30° aniversário, em 1999, que acabou numa enorme pancadaria, dezenas de acusações de estupro, incêndios e milhares de feridos. Tudo isso ao som de talentos pra lá de questionáveis e nada imortais, como o Limp Bizkit, Insane Clown Posse e Kid Rock.

Em 2009, Woodstock está sendo novamente celebrado. Mas o que não deve ser esquecido pelas novas gerações é que “o sonho não acabou”, que é possível sonhar em mudar o mundo.

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