Em visita a Belo Horizonte, Lula não poupou os críticos do Bolsa Família, definindo-os como “imbecis” e “ignorantes”. Três reações foram muito comuns. Vieram, sobretudo, da oposição de direita e de setores das classes médias. Diante da fala do presidente e do reajuste de quase 10% concedido ao valor do benefício, passaram a destacar o fato de que se tratava da fala de um analfabeto, de que o programa serve apenas para alimentar a preguiça dos pobres e miseráveis e de que tudo não passa de eleitoralismo do governo.

Os socialistas não podem abrir mão de se pronunciar
Em primeiro lugar, o projeto em si não é uma invenção do governo Lula. Há quinze anos, em Campinas, a prefeitura, que era do PSDB, adotou como referência a política do Bolsa Escola como parte de uma suposta política de constituição de uma rede de proteção social. No ano seguinte, Cristovão Buarque, então governador do Distrito Federal pelo PT, implementou uma política bastante assemelhada. Somente em 2001, FHC estabeleceria uma política focada, com as mesmas características, no plano federal. Num determinado momento, passam a coexistir diversos programas assistencialistas, dentre eles o próprio Bolsa Escola, o Bolsa Alimentação e o Auxílio Gás. O que fizeram os petistas: agregaram os inumeráveis programas num só: o Bolsa Família.

Em segundo lugar, as políticas assistencialistas ou de “transferência de renda”, como alguns as denominam, não são uma prerrogativa exclusiva do Brasil. Os anos 1990 foram pródigos na fabricação de programas semelhantes aos que começaram a ser aplicados por aqui. Hoje, dificilmente encontraremos um país pobre que não aplique soluções paliativas, distintas na forma, mas similares de conteúdo. As “Missões” venezuelanas, o “Oportunidades” do México e o “Bolsa Família” do Brasil são programas que encerram em seu miolo a mesma concepção, a de que é possível combater e reduzir a pobreza sem transformações de fundo, estruturais.

Com a crescente concentração de renda, mesmos nos países ricos, alguns centros do imperialismo, como a cidade de Nova York (EUA), passaram a adotar fórmulas muito aproximadas daquelas aplicadas nos países dependentes. Quer dizer, as desigualdades, aqui ou lá, deveriam ser combatidas com o mesmo remédio. Logo, o horizonte da humanidade seria o capitalismo, convertido num eterno presente.

Em terceiro lugar, é fato que o assistencialismo é uma excelente moeda de troca, em especial em lugares em que as desigualdades são de tal modo extremas que uma patética regressão pode ser tida como um prodigioso passo adiante. O que queremos dizer com isso? Empurrados, brutalmente, para o leito da miséria absoluta, setores expressivos da população se deslocam eleitoralmente no rumo dos seus supostos benfeitores. No final do governo FHC, eram mais de 5 milhões; atualmente, suplanta a casa de 11 milhões de famílias. Ora, como bem o disseram os Titãs, família é “Papai, mamãe, titia” e “Vovô, vovó, sobrinha”. Ou seja, são muitos votos e, nessa direção, não há como negar o caráter eleitoreiro de que se reveste a estratégia do governo Lula.

FHC e os tucanos, no entanto, estão sendo pagos na mesma moeda. Não podem reclamar, não portam autoridade para o exercício da crítica, salvo também por um viés igualmente eleitoralista. Ambos – PSDB e PT – transformaram as velhas reformas socialdemocratas em coisas do passado e fizeram a população amargar o elixir de um reformismo sem reformas. Antes, as políticas sociais adotavam uma característica universal: salário mínimo, limitação da jornada de trabalho, previdência social etc. No presente, a ofensiva contra os direitos sociais vem acompanhada de políticas compensatórias que, entre outras coisas, têm a finalidade de evitar que estoure a panela de pressão. Nessa questão de fundo, DEM, PSDB e PT não divergem, mas convergem.

É oportuno lembrar que as instituições ditas multilaterais – FMI, BIRD, BID etc. – sempre negaram a luta de classes como alternativa à miséria crescente engendrada pelo capitalismo. Nada mais natural. A sua tática específica era e é a defesa de soluções sem conflitos, por dentro do sistema. Em seu sinuoso trajeto, essas instituições, contudo, nunca estiveram tão sintonizadas com um conjunto de políticas adotado pelos países dependentes.

Os relatórios do Banco Mundial concordam com tais políticas pois, em sua essência, elas coincidem globalmente com as suas propostas para supostamente combater a pobreza. Todos sabemos como os técnicos desse banco tratam essa questão: preconizam debelar a pobreza mantendo os pobres como pobres, mas sob controle. Nestes termos, o Bolsa Escola é um modo inteligente de enfrentar um tema muito caro aos capitalistas: o de controlar a fúria dos pobres e miseráveis.

Visto em conjunto, o governo Lula cumpre uma função essencial à dominação burguesa: a de convencer a população de que os seus problemas podem e serão resolvidos no capitalismo. Ao ter a cara de um trabalhador, esse tipo de condomínio governamental cumpre mais eficientemente essa antiga aspiração do capital. Não por acaso, o Sr. Lula da Silva se transformou numa espécie de herói de entidades e governos que antes execrara em sua retórica de sindicalista.

Paralelamente, não fazemos coro ao discurso de segmentos das classes médias ditos cultos e operativos. De um lado, fazem menções ao fato de Lula ser um operário analfabeto, um preconceito típico de letrados que se comportam como analfabetos políticos. Esse, de feito, não é o problema. A questão-chave que desnuda o governo de Frente Popular é que ele, apoiado nas ilusões das massas, governa para os ricos e legitima a ordem capitalista. Isto é, na aparência é um governo dos de baixo; na essência, está do lado dos banqueiros, industriais e latifundiários.

A crise econômica tem servido para desmascarar Lula da Silva. Ele deu bilhões para a banca e o empresariado. Enquanto isso, milhões de trabalhadores foram demitidos de 2008 para cá. Nessa mesma linha de reflexão, abriu mão de cobrar o IPI do empresariado ao passo que cortava recursos orçamentários para as áreas sociais (política de contingenciamento aplicada no início do ano). É esse caráter subserviente aos capitalistas que transforma a governança petista numa instância inimiga da classe trabalhadora.

O Bolsa Família é, em larga medida, uma forma de tentar desviar o foco, tentando apresentar o que é inimigo como amigo. Por exemplo, o reajuste de 9,67% representará orçamentariamente um impacto financeiro de R$ 406 milhões. Comparemos isso com os R$ 160 bilhões que Lula da Silva liberou para os banqueiros no início da crise e talvez fique comprensível a afirmação de que o seu governo tem “cara de trabalhador”, mas o seu coração é dos banqueiros. Nunca foi tão justo o velho provérbio: “quem vê cara não vê coração”.

Não há lugar, entretanto, para que acreditemos que um benefício que passa a ter um valor básico de R$ 68 possa acomodar um trabalhador. Essa identificação entre pobreza e preguiça é mera ideologia. Precisamos combater esse tipo de raciocínio que quer atribuir aos pobres a responsabilidade por uma situação de pauperismo que é resultado de um regime social fundado na exploração e na miséria.

O maior crime de Lula, do PT e do PCdoB é o de não poupar esforços com vistas a evitar que as massas trabalhadores se levantem e, com a força do seu número e da sua organização, possam colocar esse regime social – que é o capitalismo – no seu devido lugar, que é o lixo da história. Mas o governo de Frente Popular não faz isso por ignorância ou imbecilidade; faz por opção, faz por uma escolha consciente dos seus membros pela perpetuação da ordem do capital e dos seus privilégios. Na razão inversa, combater essa estratégia não é tarefa, digamos, de imbecis e ignorantes, mas de todos aqueles que não abriram mão do programa e da estratégia do socialismo.

Essa luta é concreta. Começa agora, por exemplo, exigindo de Lula que decrete a estabilidade do emprego. São também pontos decisivos: o não pagamento da dívida externa para que possamos levar a cabo um plano de obras públicas que combata o desemprego e reforma agrária que gere milhões de ocupações no campo; redução da jornada de trabalho para 36 horas sem redução de salário; reajuste geral dos salários e aposentadorias e congelamento dos preços dos alimentos.

Isso tudo é parte de um programa mais amplo que enfrente a crise do ângulo da classe trabalhadora e a sua efetivação, em última análise, dependerá da capacidade de organização e mobilização da classe trabalhadora e de uma direção consequente que não abandone o seu posto, como o fizeram os cutistas e petistas.