Ana Godoi
Acidade é Salvador. O ano 1798. No dia 12 de agosto, em uma manhã de domingo, a cidade se deparou com vários panfletos pregados nas portas de locais de grande movimento. A notícia logo se espalhou. Pessoas na missa de domingo, nas padarias e ruas comentavam o fato.
Os onze papéis espalhados pela cidade conclamavam o povo a se rebelar contra a Coroa Portuguesa e o governo da Capitania. Neles podia-se ler: “Animai-vos povo baiense que está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade: o tempo em que seremos todos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais. ”
Assim, era deflagrada a Conjuração Baiana. Diferente de sua irmã famosa, a Conjuração Mineira ou Inconfidência Mineira (1789), o Movimento Baiano caiu em esquecimento na história “oficial” brasileira.
Os motivos são evidentes. O processo político baiano envolveu as parcelas mais pobres da população, dentre eles negros livres e escravizados, além de defender, junto com a independência de Portugal, a implantação da república e a abolição da escravidão. Outro destaque desse movimento foi a participação de mulheres negras, como Ana Romana e Domingas Maria do Nascimento, ambas alforriadas.
Ou seja, foi um processo insurrecional que se radicalizou e acabou sendo abortado por uma burguesia que não estava disposta a ir às últimas consequências para defender seus interesses.
Revolta anticolonial
A Revolta dos Alfaiates faz parte de um conjunto de levantes que ocorreram durante o período colonial, principalmente entre o final dos anos 1700 e início dos 1800. Alguns destes movimentos tinham como ponto em comum a luta pela independência de Portugal e a construção de uma República.
Nesse período da história, ideias de igualdade, liberdade e fraternidade circulavam com muita intensidade, pois, do outro lado do oceano, na França, uma revolução varria o continente e abria portas para uma nova forma de sociedade. Os ideais da Revolução Burguesa impactaram profundamente estes levantes coloniais, apresentando a bandeira da igualdade de direitos.
O contexto nos ajuda a compreender os motivos que levaram a essa efervescência política e social em terras brasileiras. Como colônia, o Brasil era uma sociedade voltada para o enriquecimento de Portugal, metrópole que detinha o controle e o direito de exploração de nosso território. Assim, toda a organização política estava nas mãos de uma elite branca, composta por grandes proprietários de terras que possuíam estreita relação com a Metrópole, enquanto a grande maioria da população, composta por uma variedade de pessoas, desde brancos pobres, artesãos, alfaiates, comerciantes, negros e negras livres e escravizados e indígenas, que foram expulsos de suas terras, viviam em duras condições de vida e sem qualquer participação na vida política do país.
A participação popular e a luta contra a escravidão
A Bahia era uma capitania importante e Salvador foi a capital brasileira entre 1549 e 1763. Mesmo tendo perdido prestígio ao longo tempo, por não deter mais o monopólio da produção açucareira, tendo que concorrer com as colônias espanholas.
No final dos anos 1700, Salvador não era mais a capital da colônia, mas ainda cumpria o papel político de garantir os interesses da metrópole. Assim, D. Fernando José de Portugal, governador da capitania, tinha a tarefa de garantir o cumprimento das determinações de Portugal e cuidar para que nada ocorresse de errado com a produção colonial.
Além de deter o monopólio comercial com a colônia brasileira, Portugal cobrava altos impostos da população local, o que acarretava condições de vida cada vez mais difíceis. Entre 1790-1800 a produção açucareira voltou a ter novo fôlego, pois os concorrentes enfrentavam dificuldades na produção. O Haiti, principal produtor açucareiro, naquele momento, passava por uma grande revolução na qual os negros e negras escravizados se rebelaram contra seus senhores
Portanto, para conseguir manter o comércio do açúcar, a Bahia passou a colocar toda sua capacidade produtiva voltada para atender a demanda internacional e os lucros de Portugal, sacrificando, inclusive, a produção de alimentos. Isso causou a alta dos preços dos produtos básicos, como a farinha de mandioca e a carne, o que sacrificou a população local e fez com que as condições de vida da população ficassem cada vez mais insuportáveis.
O alto nível de exploração levava a fome e a miséria para garantir o enriquecimento de Portugal e tudo isso aprofundou ainda mais o sentimento anticolonial que já existia na população. A ideia de que era preciso pôr fim à dominação de Portugal aproximou a elite brasileira, que já se desenvolvia aqui, da população mais pobre. Mas, obviamente, as enormes diferenças e interesses de cada setor os separavam profundamente.
Em uma sociedade marcada pela escravidão, as relações sociais eram determinadas não apenas pela propriedade, mas também pela cor da pele. Uma minoria branca e proprietária detinha privilégios infinitamente maiores que a esmagadora maioria da população.
Mesmo que um setor da elite local quisesse pôr fim à dominação de Portugal, que limitava o comércio e as possibilidades de lucros desses homens, as camadas populares sentiam ódio, não apenas pela metrópole, mas também contra aqueles que os mantinham escravos. E esse envolvimento dos setores populares no processo foi determinante para que o movimento ganhasse pautas sociais, como a abolição da escravidão e se radicalizasse, defendendo a instalação de uma república no Brasil.
A Revolta dos Alfaiates foi uma revolução abortada justamente pelo medo da participação popular e dos escravizados que lutavam pela abolição. Dizemos que foi uma Revolução porque suas principais pautas centravam-se em reivindicações democráticas, que questionavam a estrutura colonial e propunham uma nova estrutura para a sociedade brasileira.
Uma revolução abortada porque a covardia e debilidade da elite brasileira colocou um freio no processo e o fez retroceder, mantendo, ao fim, a mesma conformação: uma colônia com mão de obra de negros e negras escravizados para garantir lucros a Portugal.
Punição exemplar para os pobres
Doze de agosto foi apenas o início da revolta. Após a conclamação da população, reuniões ocorreram para organizar a tomada do poder. Ao mesmo tempo que os revoltosos davam passos para concretizar seu plano, o governo da Bahia também se organizou para acabar com a revolta e, dentre outras ações, infiltrou vários espiões entre os revoltosos.
Foram abertos, então, os “autos da devassa”, utilizados para vasculhar a vida das pessoas e da cidade, para descobrir quem eram os líderes do levante. Para tal, os habitantes da cidade foram incentivados a fazer delações, uma estratégia para construir o medo entre a população.
A investigação acusou 48 pessoas de envolvimento na revolta, mas “apenas” quatro foram condenados a morte por enforcamento. Não por acaso, todos eles descendentes de africanos escravizados. Lucas Dantas de Amorim Torres e Luís Gonzaga das Virgens eram soldados; e Manuel Faustino Santos Lira e João de Deus do Nascimento, alfaiates. Os corpos dos enforcados foram esquartejados e as partes expostas na cidade como um lembrete.
A condenação dos envolvidos merece uma atenção especial, pois revela muito sobre o processo. Os escravizados e os habitantes que pertenciam aos setores mais pobres da Bahia foram condenados a serem jogados na costa ocidental da África, o que equivalia o mesmo que a morte. Outros foram condenados a 500 chibatadas. Já os únicos quatro “homens de posses” condenados, que, inclusive, pertenciam ao exército, foram púnicos com poucos meses de prisão ou com exílio em Fernando de Noronha.
A prática do enforcamento seguida do esquartejamento foi muito utilizada no Brasil como forma de reprimir e ameaçar a população. A violência era utilizada como forma de controle social e, para a elite colonial, era preciso garantir a paz para que os negócios continuassem bem, mesmo que fosse em base à ameaça, ao medo e à morte.
A diferença com a Inconfidência Mineira
No mesmo período, outro processo de contestação do colonialismo português ocorreu na capitania de Minas Gerais, centro da exploração do ouro, onde também brotou uma conspiração republicana. Mas, o que separa as duas é a diferença entre os estratos sociais que participaram dos processos.
A revolta mineira possuiu um caráter mais elitista que sua irmã baiana. Por isso, inclusive, não tinha como uma de suas pautas a defesa da abolição dos escravos, sendo que vários inconfidentes, inclusive Tiradentes, eram proprietários de negros escravizados.
E justamente por essa característica, a Revolta dos Alfaiates pode ser reivindicada, um século depois, como símbolo da República que estava nascendo. Como reivindicar um processo político em que negros e negras livres e escravizados lutaram por sua liberdade, em um momento em que se queria construir a ideia de progresso à nação brasileira?
Melhor seria construir um herói, a semelhança de Jesus Cristo, para simbolizar esse momento. Nada de negro, índio ou mulher, o que era considerado ruim para a imagem da nova nação. Melhor seria colocar Tiradentes, com sua túnica branca, para simbolizar uma República que surgia sob o sangue e sofrimento de tanta gente.
E foi por isso, também, que, como as demais revoltas e levantes de nosso povo, que buscavam a liberdade e dignidade, a Revolta dos Alfaiates foi deixada para segundo plano na história brasileira.