Redação

Dayse Oliveira Gomes, do Rio de Janeiro (RJ)

A Revolta da Vacina foi um movimento de combate à vacinação obrigatória contra a varíola que ocorreu no Rio de Janeiro em 1904. Foi protagonizado por trabalhadores negros e negras principalmente.

A varíola havia se espalhado em razão do descaso dos governos que ofereciam péssimas
condições de vida, racismo, falta de campanha de esclarecimento, de educação e vários outros fatores. Até a própria burguesia e a classe média não sabiam o que era uma vacina. Por isso, é um movimento complexo.

Sem a devida contextualização histórica, os trabalhadores, o movimento operário, os negros e negras aparecem de forma errada como se fossem os vilões, como gente atrasada contrária ao progresso do país.

Abolição e racismo

A abolição da escravatura, em 1888, não trouxe bem-estar para os negros, que foram substituídos pelos imigrantes como mão-de-obra nas fábricas com o intuito de branquear o Brasil. Negros e negras serviam como trabalhadores escravos e não como trabalhadores assalariados aos olhos dos governantes.

Não havia plena liberdade para a população negra, que não tinha acesso à terra, ao emprego, à educação e às mínimas condições dignas de vida. Nessa conjuntura, nos primeiros anos da República, aconteceram revoltas como a de Canudos, na Bahia, a
do Contestado, em Santa Catarina, entre outras.

A Revolta da Vacina faz parte dessa onda de revoltas, ocorrida na maior cidade do país de então.

O Brasil da época republicana era explorado pelo imperialismo e pela classe dominante formada pelas oligarquias dos grandes fazendeiros do café, uma burguesia descendente de senhores de escravos. Essa burguesia estava ligada a uma industrialização dependente de capital estrangeiro.

Racismo científico

Nesse mesmo período, havia um processo de colonização da África, da Ásia e da América Latina, cujo objetivo era a apropriação das matérias-primas dessas regiões, ao mesmo tempo em que serviam de mercado para o excedente de produção da indústria europeia. Muitas ideologias foram usadas para justificar essas ações de exploração e colonização, como o racismo científico, teorias eugenistas de pureza da raça etc.

O racismo científico é uma teoria criada por Joseph Arthur de Gobineau (1816-1882). Segundo ela, a mistura de raças (miscigenação) era inevitável e levaria
a raça humana a graus sempre maiores de degenerescência física e intelectual. É atribuída a Gobineau a frase: “Não creio que viemos dos macacos mas creio
que vamos nessa direção”. Para ele, as regiões formadas majoritariamente por negros, índios e mestiços jamais alcançariam o progresso. Essas ideologias foram importadas para o Brasil e adaptadas por intelectuais da burguesia e dos fazendeiros.

Assim, todo o atraso do Brasil passou a ser responsabilidade dos indígenas e do povo negro. A República dos fazendeiros, que usava o dinheiro público para
compensar quedas nos preços do café no mercado internacional, garantia o bem-estar e os negócios da burguesia contra os interesses da maioria da população.

A realidade das cidades brasileiras

Naquela época, não havia direitos trabalhistas, como a jornada de oito horas ou férias. Toda luta social e sindical era vista como caso de polícia. Isso motivava a atuação do movimento operário diante de uma desigualdade social não resolvida.

Muitos trabalhadores eram europeus. A maioria da população dos grandes centros urbanos estava desempregada. No setor de serviços, o trabalho informal predominava, o que contribuía muito para um crescimento urbano desordenado e com problemas de transportes, iluminação, saneamento, mau abastecimento de água e difícil alimentação.
A população pobre morava em cortiços imundos.

Esse cenário de crise social era propício para o surgimento de doenças como a febre amarela, a peste bubônica e a varíola, que matavam milhares de pessoas. Isso dificultava a visita de autoridades europeias ao Brasil, o que atrapalhava os negócios dos capitalistas e dava ao país uma imagem muito ruim no exterior.

A reforma urbana

Diante desse caos, surgiu a proposta de reestruturação dos grandes centros como São Paulo e, principalmente, Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil. Para a classe dominante, era necessário sanear o Rio de Janeiro, elitizando a cidade.

Essa tarefa foi encarada pelos presidentes Campos Sales (1898- 1902) e Rodrigues Alves (1902- 1906) em parceria com Francisco Franco Pereira Passos, prefeito do Rio de Janeiro nomeado por Alves. O prefeito realizou uma operação de limpeza, conhecida como reforma urbana, que resultou na demolição de barracos e cortiços, expulsando do centro do Rio de Janeiro a população negra e pobre.

Para isso, a legislação foi modificada, e Passos teve plenos poderes para que as autoridades judiciárias, federais ou locais, não pudessem revogar medidas
e atos administrativos do município. Desse modo, teve o caminho livre para realizar demolições, despejos e interdições sem ser incomodado pela Justiça.

A finalidade era tornar os grandes centros numa “Europa possível”. No caso do Rio, o objetivo era transformá-lo numa capital “nos moldes franceses”.

A demolição das pensões e dos cortiços provocou uma imensa crise de habitação que elevou os aluguéis e pressionou as classes populares para os subúrbios e para cima dos morros que circundam a cidade.

A revolta explode nas ruas do Rio

Para que isso desse certo, era necessário culpar a população pobre e negra pelas doenças. O médico Oswaldo Cruz foi o escolhido para coordenar a vacinação. Não houve preocupação alguma em garantir informação sobre as vacinas.

Os trabalhadores tinham várias razões para não confiar nas agulhas do governo nas
peles de suas crianças. Isso favorecia boatos como a de que a vacina seria na virilha, região íntima. Vacinar pessoas não é semelhante à vacina de gado.

Sem convencimento, praticamente ninguém compareceu aos postos de vacinação.
Esse quadro contribuiu para que o Congresso aprovasse, em 1904, a Lei da Vacina Obrigatória, que autorizou os funcionários da saúde a vacinar todos os brasileiros a partir dos seis meses de idade. Quem não acatasse a ordem teria de pagar
multas e seria demitido do trabalho. O projeto também exigia comprovantes de vacinação para a realização de matrículas nas escolas, viagens, hospedagens e casamentos.

Os trabalhadores viram a vacinação como mais um ataque do governo, assim como
as demolições de suas moradias e as propagandas racistas. Assim, entre 10 e 16 de
novembro de 1904, a população foi para as ruas armada com paus, pedras e pedaços de
ferro contra a vacinação obrigatória. Setores contrários ao presidente Rodrigues Alves,
além do movimento operário, uniram-se à rebelião. Até cadetes das forças armadas fizeram parte dos protestos.

O governo desarticulou o movimento, prendeu vários manifestantes e suspendeu a
vacinação obrigatória contra a varíola. Tempos depois, em 1908, houve uma forte epidemia de varíola. O povo, convencido pela realidade, correu para os postos de vacinação.

O que foi a revolta

Não se pode compreender a Revolta da Vacina sem entender o contexto de exploração e opressão do povo negro e pobre do Rio de Janeiro. A população estava revoltada
com os despejos provocados pela reforma urbana. Também estava cada vez mais
oprimida pelas políticas racistas que levaram à marginalização dessa população.

Desse modo, a campanha de vacinação foi encarada como mais uma ação desumana e autoritária do governo Rodrigues Alves. A insistência em resolver questões sociais com a polícia e com extrema violência contra a população mostra o desespero e o medo que a burguesia brasileira tem dos trabalhadores. Temia que o povo pobre e negro pudesse desalojá-la do poder por meio de uma rebelião. Por isso, foi feita uma campanha de vacinação que tratava o povo pobre como animais e não como seres humanos que deveriam ser convencidos sobre a mesma. Graças a isso, milhares de pessoas, inclusive da própria burguesia, pagaram com a vida quando veio a epidemia de varíola em 1908.

A Revolta da Vacina mostra, mais uma vez, que a burguesia nacional é totalmente cruel com os trabalhadores. São completamente submissos aos interesses econômicos do imperialismo e às suas teorias racistas que desqualificam a maioria da população brasileira.

Um dos líderes populares da revolta foi Horácio José da Silva, mais conhecido como
Prata Preta. Capoeirista e estivador, Prata Preta liderou os revoltosos na barricada
do bairro da Saúde contra o exército. Foi preso e deportado para o Acre.

PARA LER
O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
Lilia Moritz Schwarcz
A abolição e a manutenção das injustiças: a luta dos negros na Primeira República brasileira
Thiago Dantas da Silva e Maíra Rodrigues dos Santos
A revolta da vacina
FIOCRUZ

PARA ASSISTIR

Sonhos tropicais (2001)
Direção: André Sturm