Muito em breve, o debate programático-eleitoral estará na ordem do dia. Com base no desempenho dos governos petistas e naquilo que foi anunciado pela direção do programa de Lula através da grande imprensa, é possível levantar a seguinte questão: qual a natureza de tal programa?

De acordo com os argumentos petistas, combater a exclusão ocasionada pelo desemprego de massas exigiria um nível máximo de “eficiência” na gestão de um Estado regulador cada vez mais “complexo” e, ao mesmo tempo, mais “econômico”. Somente com a retomada econômica em termos capitalistas seria possível pensar na inclusão, por meio deste Estado “eficiente”, dos setores da classe atingidos pelo desemprego.

Melhores salários ou políticas compensatórias?

A mudança no eixo das práticas políticas petistas, nestes termos, é flagrante. Ao invés de reivindicar melhores salários passou progressivamente a defender políticas sociais compensatórias para as parcelas da classe trabalhadora que perdiam o emprego por conta dos sucessivos ajustes neoliberais. No âmbito destas políticas compensatórias, o Programa de Renda Mínima (RM) ocupa um espaço central.

De início, é preciso dizer que, do ponto de vista histórico, experiências não-contributivas de distribuição de renda não constituem novidade alguma. As mais expressivas remontam ao pós-1929 americano e alguns projetos em países escandinavos. A grande novidade reside no fato, segundo o qual de “última linha de proteção social” – complementar e nunca suplementar às garantias salariais –, de a RM ter se transformado, na prática, em “principal instrumento de justiça social”.

Maior defensor da RM no Brasil, o senador Eduardo Suplicy em seu livro Renda de Cidadania: A Saída é pela Porta coleciona uma infinidade de argumentos, dos mais diferentes intelectuais e líderes políticos, em favor da RM. Economistas como Galbraith (ex-assessor Kennedy) e Hayek e Friedman (pais do neoliberalismo), Roosevelt, Luther King e Gandhi, são invocados com o objetivo de justificar a RM petista.

Evidentemente, apesar de cada um ter defendido, em diferentes momentos históricos, a proposta da RM, alguma razão deve existir para tamanho consenso. O mesmo consenso que redundou, em 1991, na aprovação unânime do projeto de RM apresentado pelo próprio Suplicy ao senado federal. A razão é que a RM constitui um eficiente instrumento do Estado capitalista para legitimar o desmonte das conquistas e garantias dos trabalhadores no contexto do neoliberalismo.

Renda mínima não combate a exclusão

Ao contrário do que apregoa a proposta petista, a RM não combate a “exclusão social”. Senão vejamos. A experiência européia com a RM é bastante antiga: Dinamarca (1933), Reino Unido (1948), ex-Alemanha Ocidental (1961), Países Baixos (1963), Bélgica (1974), Irlanda (1977), Luxemburgo (1986) e França (1988). Portanto, os possíveis benefícios para a classe trabalhadora provenientes destas diferentes experiências – tanto em relação às condições de acesso, quanto em relação aos modos de financiamento – já tiveram um tempo bastante significativo para amadurecer.

Contudo, se verificarmos os indicadores oficiais de taxa de pobreza da União Européia veremos que dos oito países da Europa com experiências nacionais de RM, cinco (Países Baixos, Alemanha, Dinamarca, Reino Unido e França) assistiram a um aumento da taxa de pobreza entre 1975 e 1995; dois (Bélgica e Irlanda) experimentaram uma relativa estabilização; e apenas um (Luxemburgo) viveu um decréscimo.

Sempre será possível argumentar que o aumento das taxas de pobreza não foi causado pela RM (o que é correto) e que sem a RM a situação estaria ainda pior (o que é errado). Contudo, analisando os resultados, é impossível negar que, do ponto de vista dos trabalhadores, a RM não representa uma saída para a dura realidade do desemprego.

O mais correto seria dizer que a RM reforça, por meio da contratualização estatal, as relações de precarização que desorganizam o mundo do trabalho, contribuindo para um aumento da taxa de exploração da classe trabalhadora.

A RM contribuiu com esse quadro na medida que o Estado passou a subvencionar a diminuição do custo do trabalho para os patrões que contratassem os “RMIs” (Renda Mínima de Inserção, como são conhecidos os trabalhadores desempregados que integram o programa na França). Afinal, se um patrão pode explorar um trabalhador pago pelo Estado, por que arcar com os “custos” provenientes do contrato salarial.

(*)Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e professor de teoria sociológica na PUC Campinas. É autor de, entre outros, A restauração do capital: um estudo sobre a crise contemporânea (SP: Xamã, 1997) e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (no prelo).


Post author Ruy Braga*, especial para o Opinião Socialista
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