Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU
2º artigo da série “A reforma da Previdência e as mulheres”: Como a proposta de reforma da Previdência vai aprofundar a desigualdade entre homens e mulheres
A proposta de reforma da Previdência enviada pelo governo Temer ao Congresso tem gerado muita polêmica na sociedade e revolta no interior da classe trabalhadora. Entre suas principais medidas estão a imposição de uma idade mínima, o fim da aposentadoria por idade e a equiparação das regras para concessão da aposentadoria para homens e mulheres. No primeiro artigo do Especial “A reforma da Previdência e as mulheres” abordamos as consequências do fim da aposentadoria por idade para as mulheres trabalhadoras. Nesse segundo artigo, vamos tratar especificamente da equiparação do tempo de contribuição para a obtenção da aposentadoria entre homens e mulheres.
Vários argumentos têm sido levantados para justificar a mudança. O principal deles é o de que as mulheres estão vivendo mais que os homens e, em se aposentando mais cedo, tendem a “custar” mais para a Previdência. Outros argumentos também têm sido utilizados, como o de que quando a diferenciação foi implementada, as mulheres compunham uma parcela muito pequena da força de trabalho e, por isso, o impacto na Previdência era pouco significativo, ou que a tecnologia reduziu o tempo dos afazeres domésticos das mulheres e ainda que a ampliação da participação na força de trabalho leva “naturalmente” à redução das desvantagens em termos de remuneração e condições de trabalho.
Nenhum desses argumentos expressam a realidade, respondem apenas aos interesses dos capitalistas burgueses. A verdade é que impacto social da equiparação será enorme e vai colaborar para aumentar o fosso da desigualdade entre homens e mulheres.
Como as pessoas se aposentam hoje
Desde a reforma da Previdência de FHC em 1998, as pessoas podem se aposentar basicamente de três formas: por idade, por tempo de contribuição e por invalidez. Para ter direito à aposentadoria por idade, os trabalhadores urbanos precisam ter pelo menos 60 anos (mulheres) e 65 anos (homens) e ter contribuído por no mínimo 15 anos. Para os trabalhadores rurais a regra é 55 anos (mulheres) e 60 anos (homens).
No caso da aposentadoria por tempo de contribuição, os homens precisam ter contribuído por 35 anos e as mulheres 30 anos. Quando a pessoa está incapacitada para o trabalho, seja por doença ou acidente, ela tem direito, desde que seja segurada do INSS, à aposentadoria por invalidez. Além disso, para se aposentar por tempo de contribuição, embora não haja uma idade mínima obrigatória, desde que foi criado o fator previdenciário, e mais recentemente a progressividade do fator (MP 676/15), para ter direito ao valor integral do benefício é necessário que a soma da idade e do tempo de contribuição seja igual ou maior que 85 anos para as mulheres e 95 para os homens (fórmula 85/95).
De acordo com a progressão, a fórmula 85/95 deveria evoluir gradativamente entre 2017 e 2022, até que essa soma atinja a fórmula 90/100.
Atualmente no Brasil a maioria das pessoas se aposenta por idade. Dos cerca de 18 milhões de aposentadorias em vigor: 52% são por idade, 28%, por tempo de contribuição e 20% por invalidez. Isso é consequência, sobretudo, das características do mercado de trabalho brasileiro, com altos níveis de desocupação e subaproveitamento da força da força de trabalho e grau elevado de informalidade.
A tendência cada vez mais frequente das flexibilizações e desregulamentação das leis trabalhistas (terceirização, trabalho temporário, só para citar alguns exemplos) também colabora para a redução do número de pessoas que se aposentam por tempo de contribuição pois, embora a maioria dos trabalhadores ingresse no mercado de trabalho muito cedo, permanece nele em condições muito adversas.
No caso das mulheres trabalhadoras, essas situações são agravadas pela sua condição de oprimidas e duplamente exploradas. Em outras palavras, o machismo naturalizado na sociedade impõe às mulheres uma série de desvantagens no mercado de trabalho que, via de regra, as acompanha ao longo de toda sua trajetória laboral até o momento da aposentadoria: a localização nos setores mais precarizados e mais mal remunerados (divisão sexual do trabalho), diferenciação salarial entre homens e mulheres, maior dificuldade de conquistar postos de chefia e, sobretudo, a desvantagem na distribuição dos afazeres doméstico entre os sexos (dupla jornada) que faz com que a soma total da jornada de trabalho das mulheres (dentro e fora de casa) seja maior do que a dos homens.
Segundo o IBGE, a renda das mulheres equivale a 76% da renda dos homens –o rendimento da mulher negra é bem mais baixo, menos de 40% do que ganha um homem branco–; e as possibilidades de assumirem cargos de chefia ou direção são menores. Entre os homens com mais de 25 anos, 6,2% ocupam posições de chefia, mas entre as mulheres na mesma faixa etária esse percentual é de 4,7%. Nesses cargos, fazendo a mesma coisa, o salário das mulheres equivale a 68% do salário dos homens.
A dupla jornada faz com que muitas trabalhadoras aceitem buscar empregos em tempo parcial, por isso a jornada semanal das mulheres nas atividades remuneradas é seis horas menor do que a dos homens. Entretanto, como dedicam duas vezes mais tempo aos afazeres domésticos, no total, as mulheres trabalham cinco horas a mais por semana. Ao todo, a jornada das mulheres é, em média, de 55,1 horas semanais, contra 50,5 horas dos homens.
Apesar disso, tem crescido o número de famílias chefiadas por mulheres. Considerando todos os arranjos familiares, elas são a pessoa de referência de 40% dos lares brasileiros (essa proporção é ainda maior entre as famílias mais pobres, onde as mulheres negras assumem o papel de principal provedora). Entre os arranjos formados por casais com filhos, uma em cada quatro casas é sustentado por mulheres. Há também uma evidente tendência de crescimento das famílias monoparentais, especialmente aquelas formadas por mãe+filhos (o percentual de homens morando sozinhos com filhos ainda é mínimo), o que tende a ampliar o número de horas de trabalho doméstico realizado pelas mulheres.
Manter a diferença de idade para aposentadoria entre homens e mulheres é, portanto, uma questão de justiça social: ao longo de suas vidas, as mulheres ganham menos, tem menos oportunidades de ascender no trabalho e trabalham mais, pois enfrentam a dupla (às vezes tripla) jornada, no trabalho e no lar. Essa é a principal justificativa para a diferenciação nos critérios de aposentadoria: a dupla jornada combinada com os baixos salários das mulheres.
É também uma forma de compensar um trabalho que o Estado não reconhece e nem remunera. Sabe-se que a permanência das mulheres no mercado de trabalho formal é menor do que a dos homens, de acordo com dados da RAIS, as mulheres ficam em média 37 meses no mesmo emprego, já os homens, 41,7 meses. Isso está relacionado, entre outros fatores, à ausência de serviços públicos como creches e escolas em tempo integral para deixar seus filhos e instituições para cuidados com os idosos e os enfermos da família. Esse trabalho é essencial para a vida em sociedade e deveriam ser garantidos pelo Estado, mas não são e recaem quase que exclusivamente sobre a mulher.
A diferença de critérios de aposentadoria tem o objetivo de compensar, em parte, essa imensa desigualdade, por isso a proposta de equiparar o tempo de contribuição para a aposentadoria trará prejuízos enormes às mulheres trabalhadoras e aumentará o já enorme abismo que separa homens e mulheres na sociedade.
O mito do custo maior das mulheres para a previdência
O argumento de que a aposentadoria antecipada das mulheres “custa muito” para a previdência tampouco se sustenta. Segundo dados da própria Previdência Social, elas representam 44,3% do total de contribuintes do INSS, entretanto, apenas 33% das concessões de aposentadorias por tempo de contribuição são para mulheres. Em termos monetários o percentual é ainda mais baixo, em 2014 dos R$ 8,7 bilhões pagos pela Previdência aos aposentados por tempo de contribuição, apenas R$ 2,1 bilhões, ou 24,8%, foi destinado às mulheres.
As mulheres são 56,7% dos beneficiários da Previdência, mas somente 51,3% do que é pago vai para ela. Isto é, o valor médio do benefício das mulheres é menor do que o dos homens, além disso, quando separados por grupos de espécies e entre homens e mulheres, os benefícios em que as mulheres representam maioria, além do salário-maternidade (onde, evidentemente elas constituem 100%), são a pensão acidentária, (94,9%), a pensão por morte (79,2%) a aposentadoria por idade (62,4%) e o auxílio-reclusão (58,6%). Como os homens morrem mais cedo que as mulheres, acabam deixando uma legião de viúvas e filhos.
Por outro lado, a absoluta maioria dos presos é composta por pessoas do sexo masculino (somente 6,4% da população carcerária é do sexo feminino) que, quando segurados do INSS, dão o direito às esposas/companheiras e seus filhos a receberem o auxílio-reclusão. É isso que explica porque as principais beneficiárias da pensão por morte e do auxílio-reclusão são as mulheres.
As mulheres são maioria entre os idosos, mas o nível de proteção social delas não é igual ao deles. Enquanto a proteção social dos homens atinge 86,1% dos idosos do sexo masculino (10 milhões), entre as mulheres está estimada em 78,5%, (11,5 milhões). Desse total de idosas protegidas, 7 milhões são aposentadas (61%), 2,3 milhões pensionistas (20%) e 1,7 milhão são aposentadas e pensionistas. Essa diferença de proteção na velhice reflete a trajetória das mulheres no mercado de trabalho, em condições bem mais precárias e sujeitas a maior grau de vulnerabilidade.
A evolução da estrutura populacional revela que as mulheres são maioria na população e também que há uma “feminização” cada vez maior da velhice, mas, embora a esperança de vida das mulheres seja maior, há estudos que indicam que a expectativa de vida saudável delas é a mesma da dos homens, ou seja, que elas vivem mais, mas com a saúde comprometida.
Uma política de exclusão previdenciária
Equiparar o tempo de contribuição para aposentadoria sem levar em conta as enormes desigualdades entre homens e mulheres já se configura numa enorme injustiça, mas que isso se dê em base ao aumento do tempo de contribuição para as mulheres (e não a redução para os homens) é ainda mais grave.
A maioria das mulheres se aposenta por idade porque não consegue alcançar os 30 anos necessários para a aposentadoria por tempo de contribuição, tanto que a idade média das mulheres que se aposentam por essa modalidade é de 57,5 anos (somente 2,5 anos a menos do que a idade mínima para aposentadoria por idade), já entre os homens (cuja idade mínima para aposentadoria por idade é de 65 anos) é de 59,3 anos. Ao contrário do que se pensa, a média da diferença de idade de aposentadoria por tempo de contribuição entre homens e mulheres não é de 5 anos, mas de 1,8 anos apenas, isso significa que a equiparação dos requisitos para a aposentadoria vai levar, muito provavelmente, as mulheres a se aposentarem (caso consigam) com bem mais idade do que os homens.
Mas se igualar os requisitos pode levar a que muitas mulheres jamais consigam se aposentar por tempo de contribuição, isso, junto com o fim da aposentadoria por idade significará, na prática, excluir de forma definitiva as mulheres do direito a se aposentar. Essa é mais uma das razões pela qual nos posicionamos veementemente contra essa infame proposta de reforma da previdência, porque prejudica de forma colossal as trabalhadoras e se aprovada aprofundará as já enormes desigualdades entre homens e mulheres na sociedade.
Érika Andreassy, da Secretaria Nacional de Mulheres do PSTU