Na contra-corrente da mercantilização, blocos e manifestações populares tomam as ruas do país reinventando essa grande festa do povoOs festejos carnavalescos surgiram na Europa, durante a Idade Média, quando o cristianismo tentou pôr um fim às tradições consideradas “pagãs” que, desde muitos séculos antes de Cristo, aconteciam no final do inverno para celebrar a vida, a fertilidade e o prazer. Na Grécia, por exemplo, este era um período dedicado a Dionísio (conhecido como Baco entre os romanos), o deus do vinho e da fertilidade.

Ao inserir o festejo em seu calendário, a Igreja tentou lhe dar um novo sentido, o que acabou determinando o nome da festa. Carne levare ou carne vale, em latim, significa “adeus à carne”. Uma referência tanto ao jejum imposto durante a Quaresma, quanto à evidente intenção da Igreja de pôr um freio às liberdades sexuais que sempre caracterizaram a festa.

Até chegar aos dias de hoje, o carnaval percorreu um longo caminho. Nas ruas de Veneza, a festa ganhou fantasias e máscaras e, em outros países da Europa, surgiram as brincadeiras de rua. Sua chegada ao Brasil, nos anos 1700, se deu através de portugueses e negros que vinham das ilhas da Madeira, Açores e Cabo Verde e de lá trouxeram a tradição do “entrudo”, uma brincadeira caracterizada pelo “mela-mela” de farinha e água com limão, origem das batalhas com confetes e serpentinas.

O tempero final e decisivo para que o carnaval brasileiro assumisse as características e a importância social que tem foi a contribuição africana para esta história: da “ginga” e capoeiras ao samba e os muitos instrumentos de percussão que há séculos ritmam as fantasias e delírios do povo que toma as ruas de todo o país.

Mesclando-se com tradições e festas populares, o Carnaval desdobrou-se em formatos tão diversos quanto a cultura brasileira. Frevos, afoxés, maracatus, bois e côcos entrelaçam-se com sambas de roda, choros e marchinhas, numa explosão popular onde nunca faltaram irreverência, críticas e, principalmente, a preservação do que havia de essencial naquilo que o cristianismo tentou conter e aprisionar: a celebração da vida, da alegria, da possibilidade, mesmo que fantasiosa, de “virar o mundo ao avesso”, de colocar no centro do poder um “rei” saído do povo (o “momo”), criado para parodiar os trejeitos da elite e de levar para o centro do espetáculo todos aqueles que, no restante do ano, são destituídos de qualquer poder.

Nem tudo é festa, mas…
É verdade que, há muito, o Carnaval sofre um processo de mercantilização e distanciamento de seus significados originais. Exemplos não faltam. Do “apartheid” absurdo que separa, em Salvador, um punhado de gringos e endinheirados (brancos, na sua maioria) da massa que vai atrás dos trios elétricos, à transformação dos desfiles de escolas do Rio “no maior espetáculo da terra”, movido a rios de dinheiro e voltado para fazer brilhar as “beldades” globais e as celebridades descartáveis que pipocam como pragas.

Como também não é possível deixar de lembrar tudo de nefasto que vem junto com os cortejos carnavalescos. Como a exploração das mulheres (principalmente das negras) com objetos sexuais e o turismo escandaloso alimentado pelas elites em torno desse lucrativo “mercado”. Ou, ainda, a melancólica transformação das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro e de São Paulo em veículos ou vitrines para a celebração de empresas e setores do Capital.

Mas seria pura ingenuidade esperar algo diferente do capitalismo. Como, também, seria um erro um tanto estúpido deduzir que neste campo o sistema já deu (ou jamais será capaz de dar) a palavra final. Muito pelo contrário. Guardadas as devidas diferenças, assim como em tudo mais no mundo em que vivemos, para cada investida do capital surge uma nova forma de resistência, para cada espaço cercado por “cordeiros”, sambódromos e bailes fechados, abre-se um outro, ocupado por blocos e manifestações populares que insistem em tomar as ruas, como que repetindo, apesar de todos os pesares, os versos da libertária Chiquinha Gonzaga: “Ó abre alas que eu quero passar…”

“É o poema da multidão”
O verso acima é do poema “O canto de liberdade”, do pernambucano Solano Trindade, cuja trajetória forma um enredo no qual é impossível separar a luta anticapitalista, o combate anti-racista e o resgate das tradições populares, particularmente do Carnaval.

Assim como Solano, foram muitos os que viram no Carnaval um pólo de resistência que, longe de servir como mera forma de alienação e amenização dos conflitos sociais, deveria ser interpretado como “poesia-viva”, construída pelas massas na rua, apesar de restrições e obstáculos criados pelas ladainhas religiosas, pelas falcatruas neoliberais ou por sua apropriação, indébita, por parte da burguesia. Hoje são versos deste “poema” que continuam sendo escritos com as formas, cores e ritmos dos mais diversos. Nas ruas de São José dos Campos (SP), no já tradicional bloco “Acorda Peão”, organizado pelo Sindicato dos Metalúrgicos; nas ladeiras do Recife e de Olinda, onde o centenário frevo ainda varre as mazelas da vida; nos rincões e vilarejos mais distantes, onde os folguedos ainda guardam tradições seculares ou, até mesmo, nos animados blocos independentes e “livres” (sem cordões, sem destaques e toda parafernália da Globo).

Algo que, segundo o militante do PSTU Alexandre Barbosa, o ‘Xandão’ (que se define como “folião amante da cultura popular carioca”), tem ganho cada vez mais importância no carnaval carioca: “o carnaval de 2007 vai consolidar um fenômeno que já ocorre há alguns anos, o resgate do carnaval de rua. Serão mais de 300 blocos em alternativa à mercantilização dos desfiles das grandes escolas. As turmas de bate-bola se misturam com o folião que não tem fantasia e aos blocos e invadem a avenida Rio Branco, palco das grandes lutas e passeatas. Nestes blocos, o folião anônimo, fantasiado ou não, é a grande estrela. A tradição das marchinhas do Bola Preta, que reúne mais de 250 mil pessoas, se une à irreverência do Bloco da Segunda, que sempre traz enredos com sátiras políticas que não poupam os governantes”.

Sinal de que nos corações, corpos e mentes de nosso povo ainda brilha o desejo de transformar o asfalto em uma passarela por onde também possa desfilar a crença de que, podemos, sim, ter um país mais justo, mais livre e, por que não, mais alegre.

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