Mercado negocia escravos na Líbia
Soraya Misleh, de São Paulo

Negros amarrados e pendurados por cordas, confinados, desumanizados e vendidos como escravos a fazendeiros e comerciantes. As cenas que pareciam remeter a tempos remotos ganharam as redes sociais em meados de novembro último e alertaram o mundo sobre a persistência da bárbara realidade em pleno século XXI: a submissão de pessoas à escravização.

A denúncia refere-se à Líbia – uma das principais rotas e destinos da tragédia contemporânea de africanos negros que tentam ir pelo Mediterrâneo para a Europa. Na esperança de uma nova vida – ante a miséria, a colonização e as guerras incentivadas pelo imperialismo para o contínuo saque das riquezas do continente –, famílias acabam nas mãos de atravessadores criminosos que abastecem o “mercado de escravos”. Muitos são jovens: cerca de 60% da população africana tem menos de 25 anos. Sem enxergarem perspectivas em sua própria terra, vendem o pouco que têm para pagar a travessia e quando chegam a cidades da Líbia, no norte da África, têm seus parcos pertences e passaporte apreendidos pelos traficantes. Ali começa o inferno da escravização: passam a ser ofertados em leilões como objetos por cerca de US$ 400.

Após a denúncia chegar à opinião pública, em reunião no dia 29 de novembro, durante a 5ª Cúpula Europa-África, em Abidjan, na Costa do Marfim, dirigentes de nove países dos dois continentes– entre eles a Líbia –, assim como a Organização das Nações Unidas (ONU), as uniões Europeia (UE) e Africana (UA) anunciaram medidas de urgência para, segundo divulgado pela mídia, “evacuar da Líbia quem quiser ser evacuado”. Não explicam o que significa “quem quiser” para alguém que está privado das próprias decisões ou como será a aplicação da medida.

Outra das deliberações do encontro é a formação de força-tarefa e comissões de investigação para desmantelar as redes de traficantes. E ainda, que será deflagrada campanha de conscientização para dissuadir jovens africanos a emigrarem. Melhorar sua qualidade de vida e parar de usurpar suas riquezas não esteve na pauta, evidentemente, porque isso levaria a questionar a colonização levada a cabo pelos próprios governos europeus, bem como o papel das autoridades africanas na aliança com o imperialismo.

Hipocrisia
Diante das denúncias, essas lideranças passaram a expressar sua indignação e horror com as cenas revoltantes. “A escravidão não tem lugar no mundo. O acontecido na Líbia representa um dos abusos aos direitos humanos mais revoltantes e pode ser considerado um crime contra a humanidade”, chegou a declarar António Guterres, secretário-geral da ONU durante coletiva de imprensa na sede da organização em Nova York. A eloquência nas afirmações tem sido denunciada como o que realmente é: hipocrisia.

A justa indignação popular não surpreendeu as lideranças e instituições internacionais. Já em abril de 2017 a Organização Internacional das Migrações (OIM), vinculada à ONU, denunciou publicamente o “mercado de escravos” – sete meses depois, nada tinha sido feito. Em diversas reportagens, africanos revelam que há tempos isso tem ocorrido na Líbia. Alguns falam em “prática antiga no país”, desde antes da queda de Muammar al-Gaddafi, que permaneceu no poder por 42 anos e foi morto pela população enfurecida em seu país no mês de outubro de 2011 – auge do processo revolucionário no Oriente Próximo e Norte da África. Um ano antes, o ditador chegou a pedir desculpas publicamente pela escravização na região – para alguns, referência ao século XIX, a outros, à época contemporânea.

Como escreve o especialista em Economia Política Adam Hanieh em seu Lineages of RevoltIssues of Contemporary Capitalism in the Middle East (Genealogia da revolta – Questões do capitalismo contemporâneo no Oriente Médio, na tradução livre), o regime de Gaddafi levou a uma classe trabalhadora fortemente estratificada, com larga proporção composta por imigrantes de países vizinhos, como Egito, Tunísia, Nigéria, Gana e Chade. Nos anos 2000, quando o ditador faz o caminho definitivo de aproximação com o dito “Ocidente” e adota políticas neoliberais, os trabalhadores migrantes na Líbia correspondiam a cerca de 25% da população. Ainda conforme Hanieh, o regime alimentou deliberadamente o racismo anti-imigrantes – e, assim, dividir a classe trabalhadora. Gaddafi e sua imprensa oficial referiam-se a eles como traficantes de drogas, assassinos e transmissores de doenças infecciosas.

A retórica de “saudade” de Gaddafi, portanto, não serve como saída. É inaceitável o argumento vendido ao mundo como verdade de que os povos do dito “Oriente” são atrasados e não podem se autogovernar, ante a dita “civilização ocidental. Assim, restaria a eles o tirano conhecido, amplamente denunciado pela violação de direitos humanos, inclusive escravização e abusos sexuais, que não poupava quem ousasse quebrar o silêncio imposto por seu totalitarismo. A fachada midiática do regime líbio, que encobria Gaddafi em um manto de modéstia e anti-imperialismo, como ainda hoje reivindicado por parte da esquerda, não sobrevive à análise dos fatos e informações disponíveis.

Em fevereiro de 2011, os líbios desmascaram a falsa propaganda e demonstraram que sua opção era outra. A ditadura sanguinária mostrou sua verdadeira face: diante da revolução popular, respondeu com força letal e massacres, como denuncia relatório da Anistia Internacional à época. O imperialismo tentou conter a revolução e decidiu intervir: buscava estabilidade aos seus negócios no país rico em petróleo e, portanto, um novo parceiro, já que o antigo – Gaddafi – não tinha mais condições de governabilidade. Até agora, contudo, não alcançou a estabilidade almejada. Os líbios que se levantaram e derrubaram o tirano seguem armados. O momento é crítico, contudo, as condições socioeconômicas mostram que novo ascenso pode sobrevir – nesse interim, é preciso ajudar os trabalhadores líbios a construírem a necessária direção revolucionária para assumirem afinal o poder que lhes pertence. Não à toa, muitos não consideram como seu o governo hoje no país, agente do imperialismo e ante seus próprios interesses burgueses – cuja preocupação central obviamente nunca foi pôr fim à escravização.

A Líbia não é o único caso: segundo Índice de Escravidão Global, hoje há quase 46 milhões de escravizados em 167 países, inclusive no Brasil – mais de 70% são mulheres e 99% estão sujeitas a exploração sexual. Desses, mais de 25 milhões são submetidos a trabalhos forçados. Diante da barbárie, só uma resposta: organizar os de baixo para derrubar os de cima, em todo o mundo.