Redação

Pablo Biondi, de São Paulo

Já familiarizada com o cinismo e a “picaretagem” dos políticos profissionais – os quadros dos partidos da ordem que ocupam os cargos eletivos mais importantes da República –, a classe trabalhadora brasileira depara-se agora com um novo episódio desse processo de agonia e desmoralização do regime político. O julgamento da chapa Dilma-Temer no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) escancara novamente a putrefação da democracia liberal e a falsidade do discurso ideológico que a acalenta.

Não é demais insistir: não há um “golpe” no país, tampouco uma “onda conservadora”. A presença de interesses políticos escusos na condução da presidência, do Congresso Nacional, dos ministérios e das altas cortes do país não é nenhuma novidade. O que há de novo é a crise aguda do sistema político, é a incapacidade dos partidos da ordem de ganhar a confiança das massas e de conduzir os projetos e políticas da burguesia com a devida estabilidade. Também figura como novidade, como produto direto da crise política, o conflito aberto entre os três poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário), tornando pública e notória a politização dos tribunais superiores.

Ocorre que a democracia liberal nunca pretendeu realmente extirpar a política dos tribunais superiores, apenas disfarçá-la. Tanto é assim que a Constituição Federal atribui ao presidente da República a prerrogativa de nomear direta e indiretamente os ministros (magistrados) desses tribunais. Obviamente, essa nomeação é feita por critérios de interesse político, por mais que o texto constitucional proponha critérios supostamente técnicos de “saber jurídico”, e há um sentido muito preciso para essa disposição institucional.

O governo Temer e o Judiciário
O Executivo detém, então, a prerrogativa constitucional de colocar ministros de sua confiança nas cortes superiores. Contudo, essa não é uma “falha” da constituição brasileira. Trata-se antes de um mecanismo liberal típico, presente também nos Estados Unidos, por exemplo. A democracia liberal propõe um “equilíbrio” entre os poderes, mas consta em suas entrelinhas que o Legislativo prevalece em última instância sobre o Executivo, e que esses dois poderes prevalecem em última instância sobre o Judiciário. Isso significa que a existência de um Judiciário relativamente controlável pelo sistema político é uma condição de estabilidade para o regime. Condição essa que, no Brasil de hoje, foi corroída junto com o próprio sistema político, permitindo que alguns juízes se “atrevessem” a influir no cenário político-partidário.

Em seu desgaste profundo, o governo Temer agarrou-se desesperadamente ao instrumento da nomeação. Indicou Alexandre de Moraes do PSDB para compor o Supremo Tribunal Federal, deixando de lado nomes menos suspeitos, tidos como mais “técnicos”, para garantir um ministro bastante engajado no jogo político, disposto a defender o governo sem hesitar. Antes disso, no entanto, Temer já havia articulado para colocar Gilmar Mendes na presidência do TSE, seguramente prevendo as ameaças que pairam agora sobre o seu mandato. Como se pode ver, Mendes é uma peça-chave nos esforços de blindagem judicial do governo.

O processo de cassação da chapa Dilma-Temer
Em meio às turbulências dos escândalos recentes, o governo Temer deparou-se com a entrada em pauta do processo de cassação da chapa Dilma-Temer (PT, PMDB, PCdoB e Cia.). Esse processo decorre de uma ação movida pelo PSDB logo após as eleições de 2014 – justamente o PSDB, que embarcou no governo após o impeachment, e que, como se demonstrou amplamente, chafurda na mesma lama que seus adversários ocasionais.

Depois do vazamento dos áudios que incriminam Temer, evidenciando suas ações para obstruir as investigações da Operação Lava Jato, pode-se dizer que esse governo frágil, sem base social, tornou-se moribundo – quase um cadáver insepulto. A maior parte da burguesia já o abandonou. A questão que se coloca para ela já não é se vale a pena mantê-lo no poder ou não, mas como retirá-lo do Planalto com o menor custo possível. A sobrevida política do governo Temer explica-se em parte por esse impasse sobre a melhor maneira de abreviá-lo.

O ideal, para a burguesia, seria a renúncia de Temer. Uma vez que ele se recusa a fazê-lo, o “plano B” seria a cassação de seu mandato no TSE a partir do processo em trâmite. Tal alternativa seria muito mais eficiente do que um novo impeachment, procedimento demorado e sujeito a um grande número de indeterminações oriundas dos estratagemas da política parlamentar – nessa hipótese, por certo, o sistema sangraria ainda mais. De qualquer modo, a aposta na cassação pela via judicial não deixa de ser um improviso de última hora. Aliás, trata-se de uma guinada brusca, já que, inicialmente, a classe dominante trabalhava para blindar o “governo tampão”.

No processo em questão, acusa-se a chapa Dilma-Temer de “abuso de poder econômico”, ou seja, de utilizar meios ilícitos para desnivelar a disputa entre os partidos do ponto de vista dos recursos financeiros de que dispõem. O elemento ilícito consiste numa arrecadação paralela de verbas para as campanhas eleitorais a partir da cobrança de propinas das empresas que orbitam em torno da Petrobrás, sendo que os frutos da propina foram armazenados juntamente com as fontes legalizadas de receita. É aí que reside o “abuso” para a democracia liberal: não na captação de somas estrondosas de dinheiro junto à burguesia para que ela mande à vontade nos candidatos eleitos, mas apenas na ilegalidade das fontes. Fossem esses recursos provenientes de “doações” declaradas pelas empresas, todas essas relações íntimas entre os capitalistas e os governantes seriam admitidas pela Justiça com muita naturalidade e com toda a hipocrisia que lhe é própria.

 A disputa no interior do TSE
Como se sabe, o TSE está dividido sobre o tema da cassação. Fala-se num placar de “4 x 3” a favor de Temer, isto é, contra a impugnação de seu mandato. A votação ainda não ocorreu, mas como em todas as grandes questões, o juízo que se faz é político, e os argumentos jurídicos são apenas um acabamento formal. A diferença é que, numa corte superior, esse acabamento deve ser feito de forma mais convincente, mais fundamentada. Seja como for, não há dúvidas de que todos os ministros já sabem como vão votar, e se eventualmente mudarem de posição, a última de suas preocupações será o embasamento jurídico. São as pressões políticas dos seus círculos de relações e as suas aspirações de carreira que determinam o seu posicionamento concreto.

Entretanto, essas pressões e aspirações não são uniformes. Elas apontam para direções diferentes, ensejando uma divisão, nesse caso específico, em dois blocos: o primeiro, chefiado por Gilmar Mendes, dedica-se a salvar o governo a todo custo; o segundo, encabeçado por Herman Benjamin, empenha-se em abreviar a gestão de Temer. Por trás dessa divisão, há um confronto entre duas estratégias possíveis para a burguesia, mas ambas são incertas e arriscadas.

O bloco de Gilmar Mendes espelha a pretensão de um setor da burguesia que, descrente nos horizontes de uma nova mudança no Planalto, prefere sustentar esse governo até as próximas eleições – muito embora se possa dizer que, no caso de Mendes em particular, há outros interesses em jogo. Contra essa aposta na inércia, desponta o bloco de Herman Benjamin, adotando uma política de moralização do regime democrático burguês. Essa política reflete uma proposta de se dar continuidade ao saneamento aparente do sistema político, numa tentativa de revigorá-lo aos olhos das massas. O objetivo maior dessa orientação é conter os danos à imagem do regime, buscando-se preservar pelo menos o Poder Judiciário no imaginário político popular, ainda que isso exija o “sacrifício” de Temer e as incertezas da sucessão presidencial.

Gilmar Mendes: o verdadeiro “advogado” de Temer
Por mais que Herman Benjamin projete-se momentaneamente como um novo “salvador da nação”, representante quixotesco de valores republicanos e novo membro do “panteão dos heróis nacionais” (ao lado de Joaquim Barbosa, Rodrigo Janot, Sérgio Moro e outros fenômenos tendentes à efemeridade), não lhe será possível superar Gilmar Mendes, presidente do TSE e verdadeira raposa política – a menos, é claro, que a luta de classes perturbe ainda mais o jogo político e traga novas reviravoltas.

Ao contrário de Benjamin, que é essencialmente um jurista, Mendes é um quadro político “não oficial” de primeira grandeza, e com a vantagem de ocupar uma posição não eletiva. Isso significa que ele pode adotar as condutas as mais impopulares sem o receio de um futuro rechaço nas urnas. Articulador habilidoso, Mendes costurou o desfecho para o processo não apenas com os seus pares no TSE, mas também com Temer, com o Congresso Nacional e com frações da própria burguesia. Como poderia um tribunal se sobrepor a um acordo dessas proporções, sobretudo quando sua direção é parte dele?

Pode-se dizer o que for de Gilmar Mendes, mas é preciso reconhecer a sua transparência no papel de defensor de Temer, cujos advogados são eclipsados pelo próprio presidente do tribunal em sua defesa. Aliás, nunca antes o TSE e o STF tiveram um ministro com relações tão cristalinas com os partidos burgueses e com as empresas capitalistas. No caso de Mendes, frequentador assíduo dos círculos do PSDB e do PMDB, além de membro de uma família fornecedora de gado para a famigerada JBS, temos a expressão caricatural de um regime em tamanho grau de decomposição que já não consegue sequer sustentar as aparências liberais da “independência” do Judiciário.

A quem confiar o “Fora Temer, Fora Todos”?
Mais do que nunca, não pode haver dúvidas de que o Judiciário não é portador de uma saída para os trabalhadores. Muito ao contrário, ele é parte dos esforços de salvação dessa democracia falida dos ricos e poderosos. A remoção de Temer de seu posto, assim como da corja que o mantém onde está, depende única e exclusivamente da mobilização dos(as) trabalhadores(as) contra toda essa ordem política corrupta e decadente, da qual a “Justiça” burguesa sempre fez parte.

Chamamos a classe trabalhadora a construir a Greve Feral do dia 30 de junho, não apenas para barrar a reforma previdenciária e a reforma trabalhista, como também para derrubar Temer e o Congresso Nacional. Somente a força organizada da nossa classe, passando por fora das tentativas de captura institucional pelo regime (“Diretas-Já”), pode ultrapassar os obstáculos colocados e abrir caminho para um governo socialista, apoiado em conselhos populares a serem construídos no curso das mobilizações.