Sabrina Marcelino
Às vésperas desse Natal, fui a um shopping. Como sempre, cheguei antes das pessoas com quem tinha marcado. Impaciente, fui até o banheiro. Na porta do banheiro, uma senhorinha terceirizada da limpeza me olhava. Quando ficamos só eu e ela no banheiro ela veio na minha direção e me disse: “Você já está indo embora?“. Achando estranho, respondi que tinha acabado de chegar. Ela então falando muito baixo e rápido: “É que eu queria te pedir um favor“. E me pediu para trocar um panetone na promoção do shopping. Disse que me levava até o lugar, que era só juntar 400 reais em notas de compras e trocar por um panetone, mas ela não podia fazer isso porque trabalhava lá.
Arrancou um bolinho amassado de notinhas fiscais do uniforme e me levou até o elevador de serviço. Tentei puxar algum assunto e ela não respondia, apertava impaciente o botão do elevador e olhava para todos os lados como quem estava nervosa e com medo de ser vista. Apontou para o ponto de troca e quando eu ia comentar mais alguma coisa ela já tinha virado as costas e saído andando disfarçando.
Peguei a fila um pouco chocada – era só um panetone Bauducco, mesmo que fosse caro não parecia nada demais, desses que as pessoas ganham junto com cestas no final do ano. Mas já me bateu o ódio de saber que nada no capitalismo é psra todo mundo. O shopping distribui panetones simples pra pessoas que nem esperavam ganhar nada, só são avisadas em alguma loja cara que com os R$ 400 que gastaram podem ganhar um panetone. Eu mesma nunca gastaria R$ 400 num shopping acho, aliás, ainda é um mistério para minha cabeça como que tem gente que faz compras de verdade em shopping, se existem lugares bem mais baratos.
Chegou minha vez e entreguei o bolinho de papel para a atendente, que fez um cadastro meu (claro, como tudo no capitalismo, o negócio não é nem só uma promoção para aumentar as vendas – quem se sente estimulado a gastar R$ 400 só pra ganhar um panetone Bauduco? -, é para aumentar o banco de dados de contatos do shopping para futura publicidade). A moça contava as notinhas quando tirou uma e disse: “Senhora, essa nota não é daqui“. Foi aí que percebi que provavelmente a senhorinha só tinha juntado notinhas que achou limpando o shopping, quem sabe no lixo, observando as pessoas que saíam das lojas.
Ao final da contagem a atendente disse de novo: “Está faltando R$ 2 “. Não aguentei, repeti chocada: “Está faltando R$ 2 de R$ 400? Se eu pagasse o estacionamento desse shopping já ia dar esse valor, vou ter que pegar a fila toda de novo depois de comprar sei lá, uma casquinha?” E a atendente só deu de ombros porque realmente não podia fazer nada. O capitalismo é assim também, toda essa compartimentalização alienante do trabalho para tirar qualquer poder de decisão do trabalhador sobre seu próprio trabalho, enquanto o consumidor só poderia dirigir a raiva a alguém que não pode fazer nada. Já ia quase saindo quando um homem do meu lado tirou uma notinha do bolo dele e disse: “Ah, no meu está sobrando R$ 3, toma pra completar o seu“. Foi uma gentileza qualquer. Agradeci, entreguei a última e triunfante notinha e recebi o panetone depois de mais ou menos meia hora de história.
Tentei voltar pelo elevador de serviço, onde mais um terceirizado esperava. Perguntei se o elevador ia subir ou descer e ele me olhou espantado, como quem não entendeu porque eu estava ali ou quem não está acostumado a ser percebido, e não respondeu. Decidi descer de escada rolante até o banheiro onde tinha encontrado a senhora. No caminho, passei por ela e satisfeita estendi o panetone. Para minha surpresa, ela passou reto, fingindo que não me viu, e foi até o banheiro. No banheiro ela finalmente parou de me ignorar, pegou o panetone muito feliz e disse “Deus te abençoe!“. Virou e saiu andando antes que fosse vista falando comigo.
Terrível. Saber que certamente ela seria demitida se alguém percebesse qualquer parte daquela movimentação, mesmo uma simples conversa entre a “cliente” e a funcionária da limpeza. Um panetone, um simples panetone que muita gente ganha do serviço e que os clientes nem queriam muito. Quem sabe não vai fazer o Natal feliz na casa dela, quem sabe ela não deu de presente para alguém que gosta muito. Quem sabe ela já não devia estar aposentada. Mas o certo é que ela quis arriscar muito pelo panetone. Eu mesma nem teria coragem de pedir isso para alguém, só um panetone não ia me fazer falar com um estranho. Por mais que eu não fosse o público alvo da promoção, eu também não ligava para o panetone.
Tudo aquilo me embrulhou o estômago e me peguei pensando de novo no motivo pelo qual a gente luta. Por que é que as pessoas acham normal um mundo desses e loucura é falar de revolução? Teorizamos refeitórios públicos, lavanderias públicas, creches públicas, hospitais, escolas, uma economia planificada em oposição à anarquia do livre mercado, pleno emprego para ninguém mais passar por uma humilhação sequer. Tem gente que só quer um simples panetone e é bombardeada pelo Luciano Huck num sábado à tarde proclamando a beleza do Natal por ser essa época de caridade. Mas é o socialismo que é a tal da “utopia”. Se Huck um dia tivesse que usar o SUS e visse gente chegando esfaqueada e escoltada pela PM, quem sabe deixava de ser o playboy imbecil que largou a São Francisco porque ganhou um programa de TV na Globo, com os contatinhos certos.
São 100 anos desde a Revolução Russa. Os primeiros passos foram dados. Outubro criou creches, ampliou o número de escolas, deu o direito até à cultura aos trabalhadores, multiplicando teatros e óperas públicas. A miséria era maior que os planos bolcheviques previram, a guerra na Europa e as guerras contrarrevolucionárias foram duras. Mas nada é mais duro que o capitalismo, onde a miséria faz parte da roda da produção.
Não sei vocês, mas cada gesto de gentileza das pessoas, daqueles que quem faz não ganha nada, reforça a chama da esperança revolucionária. Não somos naturalmente ruins e egoístas, somos resultado de um emaranhado complicado de relações sociais. Só falta mesmo uma faísca de consciência, porque somos a esmagadora maioria e temos o controle do funcionamento do mundo em nossas mãos.
Que esse Natal seja muito vermelho, que anuncie um ano de muitas lutas e greves e que o coração de vocês também tenha certeza de que não há sentido algum senão em viver pela construção de outra realidade.