Manifestante ferido pela Brigada Militar após a "batalha do tatu" em 2012

O desaparecimento de Amarildo na Rocinha (RJ), a execução de Ricardo em Santos (SP) e a perseguição ao cartunista Carlos Latuff ilustram em miúdos um fenômeno antigo que no agitado mês de junho ganhou contornos garrafais

Se cruzar com comigo ‘baixo ele’, lugar de vago é na vala, aqui no sul não se cria”. Essas foram as palavras usadas pelo 1º Tenente da Brigada Militar, Giovani da Silva Pereira, para comentar uma foto do cartunista Carlos Latuff, alvo de crescentes ameaças de morte por membros de corporações militares. O desaparecimento de Amarildo na Rocinha (RJ), a execução de Ricardo em Santos (SP) e a perseguição ao militante gráfico ilustram em miúdos um fenômeno antigo que no agitado mês de junho ganhou contornos garrafais.

Surpresa, confusão, incerteza, descontrole, nervosismo, instabilidade. As manifestações dos últimos meses que sacudiram o país e se multiplicaram em várias cidades deixaram as elites brasileiras, de todas as cores, de norte a sul, leste a oeste, inicialmente sem saber o que fazer. Diante desse fato aparentemente novo, velhas estratégias de controle sócio-político foram usadas para conter a onda de insatisfação, desnudando o aparelho autoritário implementado na ditadura plenamente vigente na atual democracia. Buscamos trazer uma radiografia desse retrógrado aparato institucional através da análise do caso do Rio Grande do Sul, pois a derrubada do aumento da tarifa de ônibus deu ânimo e esperança de vitória aos demais protestos pelo país que começavam a ocorrer no amanhecer de junho. E, igualmente, intensificou a velha estratégia de reação.

A técnica utilizada na repressão aos movimentos sociais
Aquilo que a classe média e outros setores passaram a sentir na pele, com a violência policial, já faz parte do cotidiano da maioria das comunidades pobres do país. Essas violações, que são pintadas como meras “exceções” pelas autoridades públicas e grandes veículos de comunicações, fazem parte de uma técnica coerente de contenção social. Os próprios “homens da segurança” do Rio Grande do Sul – o secretário civil, Airton Michels, o Comandante-geral da Brigada Militar, Coronel Fábio Duarte Fernandes, e o Major do 9º Batalhão de Polícia Militar, André Luiz Córdova – afirmaram sistematicamente que a conduta da repressão foi e será eminentemente técnica. Vamos conhecer as sete principais características desse tipo de intervenção policial.

1. A ideologia da defesa coletiva
O evento que transformou os protestos de Porto Alegre em uma inspiração nacional foi contra o aumento da passagem de ônibus e, principalmente, a sua derrubada. Sem desconsiderar a projeção e a importância dessa conquista, voltemos um pouco no tempo. Talvez mais emblemático para entender o atual momento seja a manifestação de 4 de outubro de 2012, quando centenas de jovens, em “Defesa Pública da Alegria”, reuniram-se na frente da prefeitura para protestar contra o cerceamento dos espaços públicos e privatização para a ‘Coca-Cola’ de alguns pontos históricos da cidade – Largo Glênio Peres e o Auditório Araújo Vianna.

O resultado dessa manifestação foi a resposta violentíssima do Poder Público ao intento das pessoas em fazer uma ciranda em volta do boneco inflável da Coca-Cola. Mais de trinta pessoas foram enviadas para o Hospital Pronto Social (HPS), vítimas da violência policial. Airton Michels justificou a ação porque foi uma defesa do “direito de ter opinião e a convivência entre posições antagônicas”. No caso, a opinião dos empresários envolvidos no megaevento e seus “simpatizantes”. Logo, o boneco inflável seria o símbolo público “ameaçado” que justificou toda a truculência. Discurso que se repete, configurando em uma técnica argumentativa que visa transformar práticas e interesses de alguns grupos como sendo de todos e, assim, a fazendo hegemônica.

2. A impunidade como instrumento de comando
A Brigada Militar é considerada, conforme já afirmou o próprio comandante Fábio Fernandes, uma “instituição de Estado” (que fica) não suscetível a governos (que passam). Qualquer ato realizado pelo soldado fica sujeito a investigação do próprio Comando através das Auditorias Militares, da Corregedoria-Militar e do Tribunal de Justiça Militar, cujo um dos “Juízes” é o caricato Coronel Paulo Mendes, ex-Comante-geral da Brigada Militar no auge da truculência policial contra os movimentos sociais no governo Yeda Crusius (PSDB). O secretário de Direitos Humanos do governo estadual, Fabiano Pereira, admitiu após o “conflito do tatu” que os procedimentos adotados pelo governo para averiguar as denúncias contra os policiais militares seriam “o Inquérito Policial-Militar (IPM), uma investigação pela 17ª Delegacia de Polícia Civil e a apuração de violações por parte da Ouvidoria de Segurança Pública”.

O que consiste esse IPM? Pouco se sabe, mas foi a partir desses IPM’s, copiados clandestinamente por advogados, que milhares de casos de tortura foram revelados para o mundo durante nossa ditadura civil-militar, no livro “Brasil nunca mais” (1985). Nenhuma dessas violações foram reconhecidas pelos IPM’s, na época. Os comandos sempre negaram, admitindo após muitos constrangimentos, “eventuais excessos”, nunca investigados. O que mudou? Há espaços de escuta, como a ouvidoria civil da segurança, que recebeu mais de 60 relatos de violações graves e concluiu o óbvio: houve violações generalizadas e sistemáticas da repressão no episódio do Tatu. De resto, a estrutura é a mesma. São 11 meses sem qualquer apuração e responsabilização. Hierarquia e disciplina integram os valores morais e as bases institucionais da Brigada Militar (art. 12, caput, Lei Complementar Estadual, 10.990/97). Os soldados podem obedecer ao conjunto de técnicas determinadas como eficientes pelo comando. Se obedecerem, jamais serão punidos. Por evidente, as investigações se referem à quebra de disciplina (art. 28, decreto 43.245/04). Por isso, jamais darão em nada.

3. Impessoalidade da tropa
A despersonalização da tropa é fundamental desse ponto de vista técnico. Primeiro, porque garante a lealdade do efetivo com o comando. A violação existe (materialidade) mas enquanto a autoria for ocultada fica impossível haver responsabilização. É assim que a ditadura civil-militar até hoje garante a impunidade de seus torturadores. Por muito tempo, se negou a existência de tortura e outras graves violações (materialidade). Depois que isso não foi mais possível, admitiu-se como “excesso”.

Senão fosse o bastante, a identificação individual da Tropa depende de abertura de uma sindicância interna. Sim, o Major Córdova parece não conhecer o nome de seus subordinados. É porque saber quem eram os servidores públicos militares de serviço depende de investigação. Foi isso que nos afirmou o secretário Michels, em audiência no dia 07 de agosto de 2012. Apesar de a publicidade ser um princípio constitucional da administração pública (art. 37). Mesmo que todo preso – imagine-se de quem está em liberdade – tenha como cláusula pétrea o direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou interrogatório (inciso LXIV, art. 5º). Até mesmo o Regulamento Disciplinar da Brigada, que classifica a não identificação como uma falta leve, nada vale (Anexo I, dec. 43.245/2004). Regras políticas incapazes de atrapalhar a técnica – nenhuma identificação, nenhuma punição.

4. Repressão de condutas individuais como pretexto para a repressão política
Depois de obtidas as garantias que só uma ‘instituição de Estado’ possui, é preciso justificar a ação policial. Segundo o coronel Fábio Fernandes, a tropa reage de forma “proporcional à ameaça”, com “o uso progressivo da força de uma intervenção moderada” (25.06.13). Curiosamente, diz conter condutas individuais de dano ao patrimônio e ameaça aos manifestantes pacíficos com o uso de armas generalizantes – bombas de gás lacrimogênio, gás de pimenta e bala de borracha. No episódio em que a Brigada Militar prendeu 17 ativistas acampados contra o fim do parque do gasômetro, na madrugada de 29 de maio de 2013, a justificativa para eles irem no micro-ônibus algemados era “a proteção dos próprios manifestantes”. A súmula de Dantas, que regulou o uso das algemas, só vale para banqueiros.

5. Técnica do combo ordinário de violações
Uma vez lançada a primeira bomba de gás lacrimogênio, a manifestação está encerrada e aqueles que não retornarem às suas casas estão com suas garantias individuais suspensas. Com isso, entra em cena a técnica do combo de violações: Prisões ilegaisconsistem na detenção mediante violência, sem identificação, sem acusação e sem existência de flagrante. Enxertos e falsas acusações cumprem o papel de demonstrar o nexo entre a pessoa presa e o crime que se quer acusá-la. Por exemplo, muitos tardiamente acusados de dano ao patrimônio tiverem suas mochilas suprimidas. Depois, no Batalhão, as mochilas aparecem com pedras e paus. As torturas psicológicas visam criar pavor, pânico e forte subordinação através do uso da violência em alto grau de persuasão. Aplicada em local reservado sempre que possível, sem testemunhas aparentes, requer o uso de denominações pejorativas segundo os valores da instituição (vadia, vagabunda, puta, maconheiro, baderneiro, comunista, veado de merda, vândalo, vagabundo, marginal, delinquente, filho da puta). Ela precisa ser praticada em alto tom de voz ou baixo, a depender do local. Mas sempre de forma firme e incisiva. A tortura física, por exemplo, pode ser lançada na viatura, quando o manifestante já está algemado, preso e sendo transportado. Socos, cacetadas, gás de pimenta, choques, chutes. Mas também em certos casos ela se dá no momento imediata à detenção, como parte da imobilização. As ameaças, por sua vez, têm lugar principalmente quando as duas anteriores estão interditadas pelo ambiente. Por exemplo, no dia 17 de junho, uma adolescente algemada foi ameaçada de estupro por um soldado do Batalhão de Operações Especiais, dentro do 9º Batalhão comandado pelo Major Córdova. A incomunicabilidade é deixar o preso imobilizado por algum tempo sem comunicação externa. Enquanto se está no Batalhão é proibido fazer ligações para Advogados/as ou familiares. Somente após os procedimentos acusatórios finalizados se permite a comunicação. Caso apareçam defensores, essa técnica é relaxada.

6. Espionagem, perseguição e sabotagem das manifestações
Essa técnica é mais sofisticada e cumpre ser realizada pelo serviço de inteligência, os chamados “P2”. É preciso colocar policiais à paisana disfarçados de manifestantes, em assembleias, como o atual Secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, realizou na década de 1980 em Porto Alegre. Especialmente para obter informações de itinerários, estratégias e lideranças. Além disso, eles exercem um papel fundamental para a justificação do início da dispersão. Outra tentativa é incitar e até iniciar agressões leves contra a tropa e o patrimônio. Nas manifestações do dia 24 de junho de 2013, essa técnica foi usada bem em frente ao pelotão da choque. A loja Paquetá começou a ser arrombada a poucos metros da tropa, por “mascarados”. Isso “autorizou” o início de lançamentos de bombas de gás pelos helicópteros, na frente e no meio da manifestação. Faz parte também o monitoramento sem garantias legais, especialmente pelas redes sociais. No dia 21 de junho, o Alto Comando do Exército se reuniu com os comandantes das oito regiões militares do país. Sob o comando do General Enzo Martins Peri, frisaram que a inexistência de lideranças declaradas e organização clara dificulta a técnica de infiltração. Por isso o foco nas redes sociais, 24hs por dia. Mais uma técnica de sabotagem consiste em “estourar aparelhos”, sem mandado judicial, de sedes dos movimentos políticos dos protestos. Foi o caso da invasão de uma biblioteca anarquista em Porto Alegre pela Polícia Civil. Foram roubados computadores, livros, documentos e outros pertences. O grupo de teatro “Levanta Favela” foi intimidado e teve seus instrumentos de cena depredados por policiais. Também é usada a técnica da intimidação por meio de inquéritos e acusações de delitos. Após os protestos em frente a prefeitura de Porto Alegre que resultaram em manchas de tintas na camisa do Secretário César Busatto, a 17º Delegacia da Polícia Civil da capital passou a intimar dezenas de manifestantes para prestar depoimentos. Na defesa jurídica deles, presenciamos que buscam a identificação das lideranças e das organizações políticas. O pretexto é a individualização de danos ao patrimônio. Por fim, a tolerância com grupos adversários dos manifestantes. Normalmente estão ligados aos grupos nazistas e integralistas da cidade, que perseguem e violentam gays, negros, anarquistas e comunistas. Apesar das diversas denúncias, há anos, nenhuma dessas pessoas sequer responde a processos.

7. Aliança com a imprensa-empresa
Esta técnica é tão importante que se confunde com a própria estratégia da repressão. Para que exista eficiência, é preciso um grande grupo de comunicação que domine os principais veículos de imprensa e seja capaz de alcançar as classes médias, altas e uma parcela da baixa. No Rio Grande do Sul, isso é possível com o Grupo RBS. Três, ao menos, são as funções exercidas por esse grupo.

Representar os manifestantes como criminosos aos olhos ausentes.Quando ocupam as ruas, agridem o direito de ir e vir de todos. Grande parte da “notícia” deve se ocupar com o trânsito, outros serviços públicos e economia “interrompidos”. Se manifestam seus anseios com escritos em paredes de prédios e muros, são pichadores. Caso resolvam radicalizar os protestos em resposta às violências sociais e policiais, são vândalos e depredadores, logo devem ser tratados como qualquer criminoso (leia-se, com violação de direitos). Há aqui um argumento concessivo, pois ressaltam em notas de roda pé que é “uma minoria” agindo assim. Nas manchetes, o protesto resulta como um bando de baderneiros e criminosos.

Isolar os manifestantes da população e legitimar a repressão ao movimento. A aplicação das técnicas ordinárias de repressão são tratadas como “confronto entre polícia e manifestantes”. Havendo violações, são mitigadas como “supostos excessos”. Essa variável somente é quebrada quando o calcanhar de aquiles da imprensa é tocado: os jornalistas. Por isso há uma preocupação permanente em poupar esses trabalhadores da repressão. Quando isso não é possível, a relação estremece. Flores, reuniões e pedidos de desculpas precisam ser enviados. Outra forma de deslegitimação provêm da técnica estimada para determinar o número de manifestantes através da utilização da ‘confiável’ conta policial. Por último, também se atribuí aos manifestantes a prática de crimes. Essa técnica foi exposta de maneira magistral na suposta agressão que o presidente da Câmara de Vereadores, Dr. Tiago Duarte (PDT), diz ter sofrido de manifestantes.

Exclusividade de fonte e contrainformação. Com a participação ou não do poder civil, consiste em criar uma falsa notícia para dificultar a mobilização da resistência dos movimentos políticos frente à repressão policial. No episódio do parque do gasômetro (quarta-feira, 29 de maio), a Prefeitura de Porto Alegre vazou o deferimento de ação de reintegração de posse do parque, ocupado por dezenas de manifestantes contrários ao corte de árvores do Parque. Tal decisão deveria ser cumprida pela Brigada Militar em 48 horas. Minutos depois, a RBS publica que “Prefeitura desiste da ação de reintegração de posse de praça ocupada por manifestantes”. Na matéria, o procurador do município assegura que não pretende propor nenhuma medida judicial entre a noite de terça-feira (28 de maio) e a manhã de quarta-feira (29 de maio). Às 04hs15min., na madrugada da mesma quarta-feira, o Batalhão de Operações Especiais (BOE) e o Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) atacou os manifestantes dormindo, sem possibilidade de resistência e registro da operação. Às 05hs15min., ainda na escuridão da madrugada, a Prefeitura iniciou o corte das árvores. Toda a operação foi registrada com exclusividade pela RBS.

A origem do modelo brigadiano de policiamento
O modelo de policiamento utilizado pelas Polícias Militares do país fazem parte de um conjunto de técnicas desenvolvidas primeiramente nas colônias francesas – na década de 50 – e posteriormente aperfeiçoada pelos Estados Unidos como meio de conter os movimentos revolucionários que se multiplicavam na América Latina após a Revolução Cubana de 1959. Resumidamente, percebeu-se que o centro da disputa passou para o plano da consciência, do psicológico, “dos corações e das mentes”. Por isso, a importância do emprego intensivo de ações psicológicas: persuasão da população, controle dos meios de comunicação e uso de propagandas. A aliança Brigada Militar e RBS está inscrita nessa questão.

Confundidos com a população, um dos principais desafios das forças de segurança é a identificação do “inimigo”. Para tanto, desenvolve-se atividades de inteligência com a criação de redes de informação capazes de identificá-lo por sua ideologia, já que as fronteiras territoriais se perderam. Na América Latina, os estadunidenses promoveram formas de cooperação entre as polícias – o famoso “Plano Condor” – capazes de promover operações discretas, silenciosas e mesmo ilegais. A invasão não-judicial da sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG) com a apreensão da sua biblioteca é um bom exemplo de ações desse tipo.

As técnicas de contenção social descritas acima, que foram formadas no caldo doutrinário das guerras ‘contrarrevolucionárias’ (francesas) ou guerras de ‘contrainsurgência’ (estadunidenses), são base de formação das polícias militares em todo o país. Os cursos promovidos pelo Escritório de Segurança Pública da Agência de Desenvolvimento Internacional, realizados no Canal do Panamá de 1962 à 1972, deram as diretrizes técnicas necessária para conter os “distúrbios de rua”. Os oficiais da Brigada Militar, que se destacaram e foram considerados sucessivamente os melhores alunos, logo tiveram a oportunidade de aplicar os conhecimentos adquiridos. Em maio de 1967, quando os estudantes de Porto Alegre realizaram grande ato contra o acordo MEC-USAID, esquadrões policiais “anti-tumultos” demostraram sua capacidade de controlar e dissolver ajuntamentos de massa. O episódio que ficou conhecido como “passeata da catedral”, porque os manifestantes acabaram buscando refúgio na Catedral Metropolitana, é exemplar. Todos foram caçados no interior da igreja, em um ato que guarda enormes semelhanças com a prisão e a humilhação de manifestantes que se refugiaram no Bar Garibaldi em Porto Alegre nos atuais protestos.

A aplicação das técnicas destinadas a controlar os “corações e mentes” previstos no treinamento dos policiais e inspirados na Doutrina de Segurança Nacional pode ser fartamente exemplificada na atuação policial em todo o país. No caso da Brigada Militar fica evidente a ação baseada em “instrumentos de exceção” previstos na Constituição Federal de 1988, principalmente através de restrições ao direito de reunião (art. 136, § 1º, alínea “a”).

Porém, as semelhanças maiores são com o Estado de Sítio, último grau de excepcionalidade previsto. Note-se as previsões do art. 139 da CF/88: obrigação de permanência em localidade determinada – diversos manifestantes foram obrigados a permanecerem no 9º Batalhão de Polícia da capital durante as manifestações, de forma sumária. Além disso, na marcha os protestantes foram encurralados por cordões de isolamento da Polícia se obrigando a permanecer naquela localidade específica, até que o policiamento decidisse ao contrário; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei – assim como em outras manifestações, a rotina de reprimir jornalistas amadores, de imprensa cibernética e até dos oligopólios foram constantes. Além disso, o nome dos soldados das tropas é negado rotineiramente;suspensão da liberdade de reunião – dado certo momento, definido pelo Comando do policiamento, o direito de reunião é suspenso e todos devem dispersarem. Outro lugar-comum em todas as manifestações; busca e apreensão em domicílio – sedes de organizações políticas são invadidas, pertences são apreendidos, tudo sem qualquer amparo legal; intervenção nas empresas de serviços públicos – empresas de ônibus, escolas, bares, e lojas do entorno das manifestações foram orientadas a fecharem suas portas. O clima de exceção foi completamente montado; requisição de bens – todos disquetes, cartões de memórias, outras formas de arquivos de som e imagem, além de aparelhos, todos foram apreendidos com os manifestantes “para averiguação”.

O impasse político
É duro reconhecer, mas o engenho criado pela ditadura civil-militar de 1964 permanece intacto. Tanto a instrução (art. 13) como o controle e a coordenação das Polícias Militares estão vinculados ao Estado- Maior do Exército (art. 1º, parágrafo único). Até o Comando, embora permitida a indicação de militares pelo governador civil, depende de aprovação do Estado-Maior. E através das Inspetorias-Gerais das Polícias Militares tudo é controlado periodicamente (art. 2º). As Forças Armadas continuam sendo uma instituição com forte poder informal de veto, especialmente em momentos de ‘crises’ como o que estamos vivendo. A força dessa instituição pode ser medida pela capacidade de resistência apresentada na entrega dos arquivos à Comissão da Verdade, a recusa em admitir a existência de tortura como política institucional e o uso de termos como “Revolução de 64”, “terroristas”, “subversivos”, “ameaça comunista”, etc.

Outra forma de perceber essa permanência é a incapacidade do poder civil, representado pelo governo Tarso Genro (PT) – vinculado à resistência política e à oposição ao modelo autoritário – em conviver com os novos movimentos sociais que emergem nesse momento político. Mesmo detendo a capacidade de ordenar o momento da tropa agir ou não agir, de tolerar ou não tolerar, as técnicas básicas utilizadas para contenção social aparentemente lhe escapam de controle. A Brigada Militar atua com significativa autonomia. A imobilidade de ação do governo estadual também pode ser explicada em razão dessas autoridades políticas estarem espremidas na competição eleitoral, por um lado, e no paradigma da manutenção de poder, por outro. Na dúvida, seguem os mandos de Maquiavel: um bom governante deve fazer o bem sempre que possível e o mau sempre que necessário.

Outra característica do impasse é a incapacidade da tríade Estado, imprensa-empresa e forças militares em deslegitimar os novos movimentos sociais, representado em Porto Alegre pelo Bloco de Lutas. Sem representantes, sem partidos, sem sindicatos, descentralizados, sem pauta única e conectados em rede e pela internet, esses manifestantes tem como característica comum a repulsa do modelo tradicional de democracia empresarial. Muitos analistas se apressam em fazer comparações com a ‘primavera árabe’ ou outros movimentos contestatórios que surgiram nesses últimos anos. Parece, entretanto, que tal movimento mantém características próximas àquelas apresentadas pelos zapatistas – todos tapavam seus rostos, afirmavam não ter representantes além de um subcomandante que renuncia sua identidade individual, defendem pautas difusas, amplas e de cunho social e libertário, rechaçando a política tradicional e buscando autonomia desse sistema. Em suma, um movimento que busca tomar as rédeas de suas próprias vidas.

Entretanto, existe um traço comum que liga o movimento zapatista, os ativistas antiglobalização – como o “Occupy Wall Street” – as mobilizações populares contra as políticas de austeridade fiscal na Europa, a “Primavera Árabe”, os confrontos estudantis no Chile, enfim, os novos movimentos sociais como um todo: quebra do monopólio da informação exercido, até poucas décadas atrás, pelos grandes conglomerados midiáticos. O uso das redes sociais, blogs, celulares para produzir informação agrediu a censura exercida pela imprensa-empresa, como a RBS. As técnicas da ocultação das violações policiais e deslegitimação política estão ameaçadas. Mas é preciso também ser reticente perante essa possibilidade aberta pela internet: ela também serve para o monitoramento, infiltração, espionagem – como nos mostra de forma exemplar o caso Snowden.

Para onde vai o junho brasileiro?
É tarefa árdua delinear possíveis cenários abertos com o atual momento político. As manifestações começaram de forma conhecida – promovidas por grupos autônomos, anarquistas, apartidários e a juventude partidária de esquerda – visando a pauta específica de reduzir o valor da passagem. A adesão de parte da população que costumava ficar omissa dessa forma de atuação política gerou a reação nos moldes desenhados pela Doutrina de Segurança Nacional e na tentativa senil de sequestrar o sentido das ruas, onde a pauta ‘corrupção’ é a mais exemplar nesse sentido.

A aparente incapacidade de conter o movimento popular obrigou o poder público a ceder em questões pontuais: baixou-se o valor da passagem e, direto do Planalto, acenou-se com uma reforma política. Pouco para desmobilizar as pessoas. A redução da passagem promovida pela Prefeitura de Porto Alegre é a prova cabal do comprometimento das elites políticas com as empresas: ela foi feita em consonância com uma revindicação histórica da burguesa de redução de impostos. A indiferença da bancada do prefeito aos pedidos de transparência teve como consequência a ocupação da Câmara dos Vereadores pelo Bloco e a incapacidade, nascida da ilegitimidade da maioria dos representantes, de contornar o desafio criado por esse audacioso e vitorioso ato político do Bloco de Lutas.

Independente dos caminhos que seguirá o movimento das ruas, emergem três condições de possibilidades. No campo político, parece claro que o sistema representativo empresarial está em crise. A população não está indiferente ao uso da máquina pública na satisfação de interesses das empreiteiras e dos bancos. Urge o desejo de criação e de desenvolvimento de mecanismos de democracia direta não ligada aos tradicionais partidos e o modelo representativo. O governo federal acenou com essa possibilidade ao defender a Reforma Política, porém sua capacidade de efetivar essas mudanças e, principalmente, de conduzir esse processo na ampliação da democracia não são tão evidentes. Um novo jogo de forças se desenha.

No campo da comunicação, a possibilidade aberta pelos avanços tecnológicos e pela internet parece ter abalado de forma séria o modelo vigente que foi construído pela ditadura civil-militar. Já existem dois projetos de lei que podem modificar essa estrutura: o Marco Civil da Internet, já atacado pelas corporações empresárias e a implementação das necessárias garantias de privacidade contra o monitoramento. Além disso, a regulação das concessões de Rádios e TVs e a garantia de pluralidade, direito de resposta e outros temas se encontram no Projeto de Lei Popular da Mídia democrática, campanha inaugurada pelo Fórum Nacional de Democratização da Mídia.

Por último, existe o campo da segurança pública. Infelizmente, o momento de crise reforça o comprometimento das elites políticas com o aparato repressivo. Além do governo federal ser claro ao afirmar que toda a mudança promovida terá que ser feita “dentro da ordem”, há uma cultura política na sociedade de que os problemas sociais devem ser resolvidos com o aumento da violência institucionalizada. Dos problemas do trânsito ao combate à corrupção, do tráfico de drogas à “delinquência” juvenil, tudo parece se resolver mandando pessoas para detrás das grades. Isso reforça os círculos de violência e a percepção social de insegurança (cultura do medo) justificando investimentos nas polícias militares e reiterando a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais.

Mais do que nunca, esse é o momento de dedicar-se à organização popular e continuar as mobilizações das ruas. Pois nunca o castelo institucional da ditadura pareceu tão próximo de cair.

Publicado originalmente no Brasil de Fato

Carlos Eduardo Martins Torcato é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Segurança Pública e Cidadania pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Rodrigo Lentz é advogado popular, mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e consultor independente da ONU na Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.