Sábado, 29 de julho, 5h da manhã. Algumas dezenas de pessoas dormiam. De repente, foram despertados pelo estouro de uma bomba e um incêndio na sequência. Aconteceu em São Paulo. Mais um ato da política higienista protagonizado pela prefeitura de João Doria (PSDB), coordenado com o governo do Estado, do também tucano Geraldo Alckmin. Como pegou mal derrubar prédio com gente dentro na Cracolândia, Doria resolveu testar uma nova tática: tacar fogo.
A barbárie aconteceu no viaduto Julio de Mesquita Filho, um elevado de uma das vias mais importantes da capital paulista, que liga as regiões Leste e Oeste, no conhecido bairro do Bixiga. Para entender melhor, esses elevados são partes das vias expressas que passam por cima de ruas importantes, deixando embaixo espaços bastante grandes e vazios, geralmente ocupados por população em situação de rua.
A operação foi realizada sem mandado, com a Polícia Militar, a Tropa de Choque, a Guarda Civil Metropolitana e o canil da PM. Segundo os moradores, tudo começou com uma bomba jogada pela polícia, que provocou um incêndio. Em seguida, um trator chegou passando por cima dos barracos.
A ação pegou todos de surpresa na Maloca Jaceguai, como foi batizada a ocupação. O lugar abrigava, de forma muito precária, dezenas de famílias e de pessoas sós em situação de rua. Ali moravam desempregados, idosos, pessoas que vieram de outros estados, artistas, artesãos, trabalhadores que não podem pagar os preços altíssimos dos aluguéis. E crianças, muitas crianças.
Bianca*, grávida e mãe de três filhos, conta que mal saíram dos barracos, ainda assustados, e um trator já vinha passando: “Não entraram num acordo com a gente pra gente tirar as nossas coisas. Eles já vieram com agressão, com bomba. Tacaram a bomba, pegou fogo nos fios, pegou fogo nos barracos com a gente, com todo mundo aqui dentro”.
Por fim, as paredes antes grafitadas, foram pintadas. Para Doria não basta destruir: tem de deixar sua assinatura, o cinza feio e sem vida, para mostrar que passou por ali deixando seu rastro.
“Tragédia. Eu falo pra esse presidente ‘sai!’, você não merece esse mundo”. Essas palavras saíram da boca de um menino de oito anos…
Ultrapassando a crueldade
Sem ter para onde ir, o pessoal foi parar na calçada. “Perdemos tudo, menos a nossa dignidade. Nos tiraram do viaduto para nos jogarem na calçada. Muito obrigada, Sr. Prefeito”, diz uma inscrição numa das vigas do viaduto. Já na calçada, eles sofreram mais um ataque, que podemos chamar de roubo. O rapa passou recolhendo os poucos pertences que sobraram. No estacionamento do rapa, a informação que receberam foi de que não poderiam reavê-los. Segundo uma moradora, foi dito que “o que vai pra lá, não volta”.
Como nada é tão ruim que não possa piorar, as famílias foram proibidas de montar barracas embaixo do viaduto durante o dia. Quando deixamos o local há pouco, garoava e fazia frio. A previsão do tempo para este fim de semana é de 17ºC a 13ºC com chuva. A tensão pairava: há uma ameaça de gradeamento do lugar. Caso isso ocorra, sequer vão poder passar a noite embaixo de uma cobertura que não pode nem ser chamada de teto.
O caso de Bianca é emblemático. Seu filho menor, de dois anos de idade, sofre de um problema respiratório grave. Ele tem uma válvula no pulmão e precisa de tratamento específico. Para agravar, está com pneumonia. No momento em que estávamos no local, o pequeno Cauã ardia em febre, e o pessoal da Unidade Básica de Saúde ainda não havia chegado. “Meu menino está com pneumonia com a válvula atacada. Eu não tenho condições de pagar outra operação pra ele de válvula, porque essa aí foi doada. A válvula dele custa na base de dez mil reais. A medicação dele, os aparelhos respiratórios, eles não deixaram a gente recuperar. Eu perdi todo o equipamento do meu filho respirar”.
Agora, sem nada, os moradores de rua dependem da ajuda da comunidade e do Teatro Oficina, que promovia um trabalho de atividades culturais e oficinas com eles.
As negociações
O prazo para a retirada completa do pessoal era até a noite desta quinta-feira, com o cercamento do local. Nesta manhã, houve uma reunião de negociação com representantes dos moradores e a prefeitura. Os moradores esperavam ansiosos o resultado.
A tensão é mais do que justificada: ninguém sabe seu destino, ninguém tem para onde ir. A situação é ainda mais dramática para as famílias que estão com medo de serem separadas. Além disso, há doentes que tomam medicação controlada e, até então, recebiam do pessoal da UBS que levava até eles.
De repente, chegaram Márcia e Paula, que participaram da reunião. Segundo Márcia, a reunião foi muito rápida. “No momento, o que eles deixaram claro pra nós é que a gente tem só albergues e CTAs [Centro de Testagem e aconselhamento], esses negócios”, contou. De acordo com ela, ficou acordado que a prefeitura enviaria alguém para fazer um levantamento para só então estudar as possibilidades de abrigo. A esperança é que as famílias não sejam separadas.
Não houve nenhum acordo firmado em papel, apenas conversa. A prefeitura disse que, até a noite, enviaria alguém para “dar uma atenção sobre alimentação e cobertas”. O que isso significa? Ninguém sabe…
De onde virá a solução?
As políticas de higienização estão por todo o lado. A chamada “revitalização” dos grandes centros são, na verdade, o que chamamos de “gentrificação” que, de forma muito simplificada, consiste em embelezar (seja lá o que isso signifique) os centros para atrair a classe média, expulsando os pobres para as periferias. Ou para lugar nenhum, como no caso desta reportagem, da Cracolândia e de tantos outros espaços similares.
Esse processo têm uma função: servir à especulação imobiliária. Em São Paulo, a política higienista ganhou força no mandato do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD e, na época, DEM), passou por Fernando Haddad (PT), que chegou ao ponto de cercar pessoas com grades dentro de uma praça na região da Cracolândia, e está sendo continuada por João Doria de forma mais brutal.
Tudo isso vai jogando cada vez mais pessoas nas ruas, dificultando ou impedindo o acesso à infraestrutura e ao emprego, criando condições de vida degradantes. Márcia é um exemplo. Ela morava no bairro do Ipiranga com seus filhos. Desempregada, teve de ir morar com a mãe. “Eu optei vir pra rua e deixar meus filhos com a minha mãe pra que eu possa arrumar um novo emprego, poder ter um cantinho pra depois ficar com meus filhos”. Já morando na rua, conseguiu um emprego como auxiliar de limpeza no Hospital das Clínicas. Ficou um mês e meio e foi demitida.
Enquanto pessoas moram em favelas, embaixo de viadutos e em calçadas, dezenas de prédios estão vazios e abandonados só no centro da capital paulista. Ter onde morar é um direito constitucional, e é dever do Estado garanti-lo e acabar com essa farra dos empresários e das construtoras, hoje quase todas envolvidas em escândalos de corrupção.
Em vez disso, o Estado usa violência para desocupar imóveis sem uso e tirar pessoas que jamais deveriam morar na rua, embaixo de um viaduto. Pessoas que deveriam ter um teto para viver com dignidade, com infraestrutura garantida.
A moradia virá com a união entre classe trabalhadora e os movimentos populares, na ruas e na marra, e não de conversas e negociações. A conclusão de Márcia não pode ser mais realista e correta: “No momento, não deixaram nada claro. No resumo, a reunião, pra mim, eu fui, mas voltei sem resposta de nada. A garantia que eu tenho é que eu ainda fico aqui. Até quando, eu não sei”.
*Os nomes foram alterados por motivo de segurança.