Neste dia 30, o Supremo Tribunal Federal (STF) retoma o julgamento sobre o Marco Temporal, suspenso desde o dia 7 de junho, depois de um pedido de vista feito pelo bolsonarista André Mendonça.

A tese do Marco Temporal é defendida por grandes proprietários de terras, grileiros e empresários do agronegócio. Consiste na ideia de que os povos tradicionais só têm direito a territórios já ocupados até a data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988.

O Marco Temporal coloca em xeque as demarcações de terras e ameaça os povos indígenas que já tiveram seus territórios formalmente reconhecidos. De acordo com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), existem 137 áreas em situação de estudo no país, fase inicial dos processos administrativos de demarcação das terras.

Votação é um ataque histórico aos direitos indígenas

O julgamento no STF começou em junho de 2021, ano em que o relator, o ministro Edson Fachin, manifestou voto contrário ao Marco Temporal. O placar atual da votação tem um voto favorável à tese ruralista, dado Nunes Marques (indicado para o STF por Bolsonaro, em 2020), e um voto contrário, de Alexandre de Moraes, que apresentou uma proposta de “meio termo” que, como veremos a seguir, também é defendida pelos ruralistas.

Quem conhece um tiquinho da História do Brasil sabe que a tese do Marco Temporal é uma farsa. Muitos indígenas, de fato, não ocupavam o seu território ancestral na data da promulgação da Constituição, e a razão para isso é bastante óbvia: em 1988, os indígenas há muito já haviam sido expulsos e impedidos de estarem em suas terras. Impedidos por jagunços armados por latifundiários ou mesmo pelas “autoridades” do Estado brasileiro, que simplesmente removeram os indígenas de terras cobiçadas pelos fazendeiros.

A aprovação do Marco Temporal vai representar o maior ataque aos direitos constitucionais indígenas em nossa história recente. Vai legitimar as invasões, as expulsões e a violência que vitimam os povos indígenas. Vai representar um novo ciclo de genocídio indígena.

Marco Temporal avança no Senado

No Congresso, o Marco Temporal avança empurrado pela Bancada Ruralista e com pouca resistência do governo Lula. Basta lembrar que, na Câmara dos Deputados, o projeto recebeu 99 votos favoráveis de deputados de partidos que ocupam ministérios no atual governo. Dentre eles, parlamentares do MDB, União Brasil, PSB, PSD e PDT.

No Senado, a Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) aprovou um projeto de lei (PL 2.903/2023) que estabelece o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas. O projeto, cuja relatoria é da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS), vai agora para análise da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Em seguida, caberá ao plenário votar a decisão final.

O texto é absurdamente draconiano proíbe a ampliação das terras indígenas já demarcadas e declara nulas as demarcações que não atendam aos seus preceitos. Também estabelece novas regras para dificultar a demarcação de terras indígenas, dentre elas a suspeição (ou seja, questionamento legal da “imparcialidade”) dos antropólogos, peritos e especialistas que atuarem no procedimento.

O PL prevê, ainda, a exploração econômica das terras indígenas (inclusive a mineração) e autoriza a União a utilizar as terras indígenas para a defesa nacional e para a realização de projetos de interesse público (instalação de bases militares, construção de rodovias, instalação de redes de comunicação etc.), sem que seja necessário consultar a comunidade ocupante ou os órgãos indigenistas – uma clara violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Por fim, o PL altera a Lei 11.460, de 2006, para permitir o cultivo de organismos transgênicos em terras indígenas.

Como Zanin vai votar?

Além de se desgastar por fazer muito pouco para impedir o andamento do Marco Temporal no Congresso, um outro vexame preocupa o governo: Como votará Cristiano Zanin, indicado por Lula para ocupar uma vaga no STF?

Nos últimos dias, Zanin se revelou terrivelmente reacionário e conservador. Três de seus votos foram contra direitos humanos ou questões há muito defendidas pelos movimentos sociais: o reconhecimento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) em relação à violência policial contra os povos guarani e kaiowá no Mato Grosso do Sul; a descriminalização do porte de maconha e a equiparação das ofensas homofóbicas ao crime de injúria racial.

Já quando deu um voto favorável, pela manutenção da condenação de dois homens acusados de roubar objetos que totalizavam R$ 100, contrariou um preceito legal (“o princípio da insignificância” do delito) e vários outros juristas. Portanto, não será nenhuma surpresa caso Zanin vote a favor dos ruralistas

“Solução” de Alexandre de Moraes é armadilha

As organizações dos movimentos indígenas alertam corretamente para uma armadilha que está sendo preparada. Trata-se da solução articulada por Alexandre de Moraes, que votou contra o Marco Temporal, mas apresentou uma “tese meio termo’’, na qual supõe a existência de proprietários rurais de “boa fé”.

Através desta manobra, o magistrado defendeu a garantia do direito de indenização integral às pessoas que possuem títulos de propriedades em terras indígenas, em caso de desapropriação. “Quando reconhecido efetivamente que a terra tradicional é indígena, a indenização deve ser completa. A terra nua e todas as benfeitorias. A culpa, omissão, o lapso foi do poder público”, disse em seu voto.

Essa tese é uma armadilha desastrosa para os povos indígenas. Na prática, é um golpe contra os direitos constitucionais do Direito Originário dos Povos Indígenas sobre suas Terras de Ocupação Tradicional. O advogado e professor Daniel Sarmento explica que a indenização é inconstitucional pois “ofenderia uma das dimensões do princípio da dignidade da pessoa humana, que é o direito ao reconhecimento”.

Ainda segundo Sarmento, “o pagamento de indenização àqueles que violaram gravemente os direitos indígenas — ou aos seus sucessores —, expulsando essas comunidades das terras, muitas vezes com grave violência, seria humilhação adicional para esses povos”.

A proposta de Moraes dificulta e cria mais impedimentos para a demarcação de novas terras indígenas. Mesmo em casos que o suposto proprietário estiver com propriedade sobreposta às terras indígenas de reconhecida ocupação tradicional, se ele conseguir apresentar uma certidão de propriedade da terra, registrada em cartório oficial, terá direito a ser indenizado previamente.

Legalização da fraude e mais obstáculos para demarcação de terras

A indenização aos supostos proprietários de terras desconsidera totalmente o processo de grilagem. Os títulos de propriedade são uma ficção criada por muitos ruralistas, pois a maioria dos invasores de terras consegue apresentar uma certidão fraudulenta de propriedade da terra registrada em algum cartório oficial.

No Brasil profundo e ruralista, o que vigora são as ações de verdadeiras máfias de fraude cartorial, que envolvem funcionários corruptos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), funcionários e donos de cartórios, políticos, juízes e autoridades de distintas esferas. A indenização seria um prêmio para aqueles que foram responsáveis pela expulsão dos indígenas de seus territórios.

Nesse sentido, a “solução” de Moraes abre, inclusive, a possibilidade para grileiros aumentarem suas atividades violentas e fraudulentas em terras indígenas para receberem, como recompensa, as ditas indenizações.

Por outro lado, a proposta de Moraes inviabiliza a demarcação dos territórios indígenas, pelo custo dos pagamentos das indenizações e por tornar o processo ainda mais lento e complexo.

Um exemplo concreto ocorre com a titulação dos territórios quilombolas, em tese assegurada pela Constituição, por meio do Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias. No entanto, segundo a legislação, a titulação dos territórios quilombolas prevê a indenização, o que contribui para o fato de que apenas 5% dos quilombolas vivam em territórios demarcados, segundo o censo do IBGE de 2023.

Um cálculo feito pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGC), tendo como parâmetro a titulação de terras quilombolas, estima que seriam necessários pelo menos 290 anos para concluir os 239 processos de demarcação de terras indígenas em curso.

Lutar para barrar o Marco Temporal! Direitos indígenas não são moeda de troca!
Como se vê, a solução de conciliação apresentada por Alexandre de Moraes é favorável aos interesses dos grandes proprietários rurais, ameaçando gravemente os direitos constitucionais dos povos originários. Não por acaso, o agro aplaude Moraes e ensaia a estratégia de impulsionar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para garantir as indenizações e outras medidas em favor dos ruralistas.

“A gente considera que o voto do Alexandre de Moraes é muito melhor que o do voto do Fachin, infinitamente melhor, e que deve formar maioria. Mas precisa de algumas alterações e modulações, como o reconhecimento do Marco Temporal”, declarou o presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária, Pedro Lupion (PP-PR), em reportagem a Folha de S. Paulo (29/08/2023).

Não se pode depositar confiança alguma no poder judiciário e no governo. Ao movimento indígena só resta confiar nas suas próprias forças, na mobilização e na aliança com os demais setores oprimidos e com a classe trabalhadora, para derrotar o Marco Temporal, assegurando seus direitos constitucionais conquistados com muita luta e sangue.

Embora Lula se coloque contra a tese, seu governo, na prática, vem rifando os direitos indígenas em negociações com Arthur Lira, o Centrão e a Bancada Ruralista. Basta lembrar que Rui Costa, Ministro da Casa Civil, negociou o enfraquecimento da demarcação de terras com ruralistas, para aprovar o Arcabouço Fiscal. É preciso pressionar e exigir que o governo Lula efetivamente combata o Marco Temporal e pare de rifar os direitos dos povos indígenas.