Mulheres árabes se deixam fotografar no volante

A revolução nos países árabes está se espalhando para todos os aspectos da vida humana e questionando até mesmo os costumes mais consagrados. Os setores mais oprimidos por uma quantidade maior de costumes retrógrados e patriarcais, como é o caso das mulheres, vêm tomando a dianteira e aproveitando o processo revolucionário para também livrar-se dessas amarras.

No Egito, milhares de mulheres se somaram aos homens para combater nas ruas o regime de Mubarak e com isso conquistaram um lugar no pódio da história do movimento de massas ao compartirem a vitória pela derrubada da ditadura. Outro caso exemplar é o Bahein, onde mulheres de todas as idades, mesmo cobertas dos pés à cabeça com os véus negros, vêm participando em massa dos protestos em Manama, a capital, para exigir reformas políticas. A idéia de que a mulher não pode sair de casa desacompanhada, que não pode ficar ao lado dos homens em lugares públicos, não pode gritar ou agitar-se nas ruas e praças para não atrair a atenção para si, vem caindo por terra com a rapidez da revolução.

Mulheres sauditas querem dirigir
Aqui estamos falando de dirigir carro, mas a luta pela autodeterminação e a liberdade de movimento está fazendo parte do processo de emancipação das mulheres árabes , e com certeza fará delas, além de motoristas, grandes dirigentes revolucionárias.

Na Arábia Saudita as mulheres são proibidas de dirigir automóvel, mas um movimento de protesto começou a incendiar também essa regra. Há dias as mulheres vêm organizando protestos coletivos contra a proibição e desafiando esse costume secular. Muitas inclusive se deixam fotografar ao volante de um automóvel para divulgar as fotos na internet e assim ampliar o movimento.

Farzaneh Milani, em artigo no jornal The New York Times, explica que a proibição de dirigir automóvel tem origem na preocupação universal com a mobilidade irrestrita das mulheres. Na Arábia Saudita, tal preocupação é extrema: as ruas pertencem aos homens, bem como o direito de ir e vir. Uma mulher que transgride a norma será vista como uma “prostituta” pecadora, ainda que se oculte na sua “abaia”, a longa túnica negra usada por elas no Emirado. Caso precise andar pela cidade, deve fazê-lo com um chofer ou um homem com o qual tenha parentesco de sangue ou pelo casamento, dirigindo o carro. As autoridades sauditas também determinaram a suspensão das carteiras de motorista internacionais de mulheres que desobedecerem as leis locais e tiraram a carteira no exterior.

As mulheres também não podem andar de bicicleta ou moto, que são consideradas atividades anti-islâmicas e sexualmente provocativas. A partir de 1999, o governo do Irã proclamou que “as mulheres devem evitar qualquer coisa que atraia estrangeiros, de modo que o uso de bicicleta ou moto em público por elas significa corrupção e é proibido“.

Farzaneh explica que a negação da entrada de mulheres na arena pública é apresentada como uma determinação religiosa, mas essa é uma distorção proposital. No Alcorão não há nada que fundamente essa exclusão. Pelo contrário, nos primeiros anos do islamismo as mulheres eram presença vital nas comunidades muçulmanas. Freqüentavam as mesquitas e se envolviam nos debates públicos e nos processos decisórios. Ela conta que uma das viúvas do profeta Maomé, chamada Aisha, chegou a comandar um exército de homens conduzindo um camelo.

Apartheid de gênero ou arma de dominação de classe?
Usar o Alcorão e a religião islâmica como via para manter as mulheres oprimidas é igualmente uma forma de enganar as mulheres muçulmanas, uma forma de usar as suas crenças contra elas mesmas. As religiões no geral ensinam as pessoas a suportar a desgraça com resignação, e não existe nada mais proveitoso para as ditaduras árabes que apelar para isso, sobretudo neste momento em que estão na corda bamba e precisam literalmente tirar das ruas pelo menos uma parte da multidão que ativistas que protestam diariamente contra o regime.

Numa sociedade construída sobre a exploração, em que uma minoria insignificante de famílias desfruta de todas as riquezas enquanto a massa do povo deve suportar diariamente as privações, a fome, a miséria e os castigos corporais mais insanos, é natural que o governo insista em manter as normas religiosas. Em agitar o Alcorão como instrumento de opressão das mulheres, para que elas suportem com resignação o inferno sobre a Terra, já que assim garantem a felicidade depois de mortas, no paraíso celeste.

Mas pelo visto as mulheres muçulmanas não estão dispostas a isso; querem desfrutar o paraíso agora, enquanto estão vivas! Por isso, neste momento em que a revolução ameaça as classes dominantes que há séculos vêm oprimindo e explorando os povos árabes, apelar para a religião é uma forma de desviar a luta revolucionária, de dividir as massas que estão unidas nas ruas e praças, sem qualquer distinção ou discriminação que possa minar as suas forças.

As proibições absurdas contra as mulheres, muito mais do que “apartheid de gênero”, como vêm sendo qualificadas pelas feministas, são formas de atacar e enfraquecer a classe trabalhadora e a própria revolução que ameaça derrubar esses governos. Porque, apesar de que essas normas religiosas atingem as mulheres em maior número, elas igualmente atingem aos homens, pois eles também são obrigados a “suportar com resignação” as desgraças do mundo. E são justamente essas idéias, que só servem às classes dominantes, que vêm sendo questionadas pela revolução. Eis a grande ironia da história que castiga as ditaduras árabes: justamente o setor da população que mais sofre com as imposições falsamente religiosas é o que hoje está se organizando e expondo de modo mais contundente as fragilidades e mentiras desses governos.

As mulheres muçulmanas que ousaram sair de casa e invadir as ruas junto com os homens (com os quais não têm a menor relação de parentesco, mas sim uma relação mais forte ainda, a da solidariedade revolucionária) não devem acreditar nas falsas palavras do governo. Não devem suportar com resignação qualquer tipo de desgraça, em nome de uma religião imposta, mas serem livres para praticar a religião que queiram, sem que isso sirva de instrumento de opressão, de fome, miséria e castigos sem fim. É essa chaga que vem sendo exposta a cada dia nos países árabes, onde a religião sempre serviu ao Estado para controlar e subjugar o povo.

“O proletariado revolucionário fará com que a religião seja realmente um assunto privado para o Estado. E nesse regime político, liberado do modo medieval, o proletariado empreenderá uma luta declarada e ampla pela liquidação da escravidão econômica, que é a verdadeira fonte do engano religioso da humanidade“. Essas palavras de Lênin, ditas em 1905, bem que poderiam ter sido ditas hoje nas ruas e praças da Arábia Saudita, Irã, Tunísia, Egito, Bahrein, Iêmen, Síria.