O governo Lula aprofunda a política de FHC, atendendo mais fielmente que seu antecessor as imposições do FMI. Além de manter os pagamentos de juros da dívida, o governo Lula ainda quebra direitos históricos dos trabalhadores na reforma da Previdência, quer a “independência“ do Banco Central, a nova Lei de Falências, mantém intocada a injusta estrutura tributária do país e ainda aceita a implementação da Alca – Área de Livre Comércio das Américas – para 2005.
O pagamento da dívida e a reforma da Previdência
De janeiro a maio de 2003, o governo federal, os estados e municípios “economizaram“ R$ 37 bilhões para pagar a dívida pública interna, o que significou 5,73% do PIB (até mais que os 4,25% impostos pelo FMI). Como sempre, isso não foi suficiente para pagar nem mesmo os juros dessa dívida, que atingiram R$ 65,3 bilhões, o que correspondeu a 10,12% do PIB.
Curiosamente, mais do que toda a economia prevista pelo governo com a “reforma da Previdência“ nos próximos 30 anos, que será de R$ 56 bilhões. Ou seja, o governo, para continuar beneficiando os verdadeiros privilegiados deste país (bancos e especuladores do mercado financeiro), quebra direitos históricos dos servidores públicos (como a paridade e a integralidade), aumenta a idade mínima de aposentadoria, reduz as pensões e ainda abre espaço para a privatização da Previdência através dos fundos de pensão. Esses fundos aplicam seus recursos, principalmente, nos bancos, que, além de já serem beneficiados pelos juros da dívida, serão também privilegiados com essa “reforma“.
Ano passado, os pagamentos de juros chegaram a R$ 190 bilhões, para um “superávit primário“ de apenas R$ 50 bi. Aí está o grande engano dos que acreditam que o governo Lula estaria em uma “transição“: mesmo que a taxa de juros se divida por quatro, continuaremos pagando a dívida ad infinitum, tendo de cortar gastos sociais para sempre, impedindo os investimentos necessários para que se possa gerar emprego e crescimento econômico.
Se observarmos a tabela ao lado, que retrata o orçamento federal, veremos que, enquanto foram programados para o ano R$ 140 bilhões para o pagamento das dívidas externa e interna, apenas R$ 78 bilhões serão destinados a todas as áreas sociais listadas. Quando consideramos o gasto já realizado de janeiro a maio, vemos que foram destinados à dívida mais de R$ 37 bi, quase o dobro dos R$ 20 bilhões gastos com todas as áreas sociais listadas (Segurança Pública, Assistência Social, Saúde, Educação, Cultura, Urbanismo, Habitação, Saneamento, Gestão Ambiental, Ciência e Tecnologia, Agricultura, Organização Agrária e Energia). E a dívida diminuiu por causa deste enorme sacrifício imposto à sociedade? Como sempre, não. Se considerarmos somente a dívida mobiliária federal interna, esta passou de R$ 687,3 bilhões em dezembro de 2002 para R$ 709,4 bi em maio de 2003. A Dívida Consolidada da União, que soma esta dívida com a externa, chegou a R$ 1,191 trilhão, na mesma data.
Na tabela abaixo observamos também que, enquanto o governo já gastou até abril 26,48% do que foi programado para o ano com o pagamento da dívida, apenas aplicou 25,76% dos gastos sociais. Além disto, gastos fundamentais estão sendo relegados a segundo plano, como urbanismo, habitação e saneamento, onde quase nada foi gasto, apesar da liberdade que o governo tem para aplicar esses recursos. O gasto com transporte foi, até agora, de apenas 5,66% do programado para o ano. Não é por acaso que as estradas estão completamente abandonadas. O gasto com reforma agrária até o momento também foi mínimo, de 8,53%.
Governo continua pagando e a dívida externa não pára de crescer
Enquanto isto, a dívida externa atingiu em março (segundo a última informação do governo) a cifra de US$ 233,7 bilhões, o que já reflete os três primeiros saques do último acordo com o FMI (que totalizaram US$ 10 bilhões). Nos primeiros cinco meses de 2003, o comemorado saldo comercial (de US$ 8 bilhões) continuou sendo totalmente utilizado para pagarmos os juros desta dívida (US$ 5,1 bilhões) as remessas de lucros das multinacionais aqui instaladas (US$ 2,1 bilhão), e os serviços contratados do exterior (US$ 1,7 bi).
Ou seja, continuamos a drenar as riquezas do país para o exterior, sob o pretexto de pagarmos os juros de uma dívida que já pagamos. Já a conta de capitais (que inclui os empréstimos e investimentos estrangeiros) somente fechou positiva nos primeiros cinco meses de 2003 pois o FMI entrou com US$ 4 bilhões em março. Nesse período, a entrada de investimentos diretos (que vem, em tese, para atividades produtivas) foi de apenas US$ 2,6 bi, bem menos do que o observado no mesmo período do ano passado (US$ 7,1 bi), o que nos deixa dependentes do capital especulativo.
A “reforma tributária“
Outra exigência do FMI é a de que, na reforma tributária, não haja perda de arrecadação, para – evidentemente – não comprometer o pagamento de juros. Como não se está prevendo, na reforma, a inversão da lógica tributária no Brasil, onde os tributos sobre o consumo – até mesmo de produtos da cesta básica – respondem por 70% da arrecadação (inversamente aos países desenvolvidos, onde a maioria dos tributos incide sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos), os trabalhadores e consumidores continuarão a pagar a conta do endividamento.
Enquanto isso, os banqueiros, que recebem os juros da dívida, conti-nuarão privilegiados por isenções e brechas legais.
A independência do Banco Central
Outra promessa do governo ao FMI é a “independência“ do Banco Central, que daria mandatos fixos ao seu presidente e diretores. Dia 2 de abril, o governo aprovou no Congresso a Emenda Constitucional 53, de autoria de José Serra (cabe lembrar, adversário de Lula na eleição do ano passado), que acaba com a limitação dos juros reais a 12% ao ano, permite a regulamentação do sistema financeiro de forma fatiada (por várias leis) e permite a aprovação da independência do BC apenas com maioria simples no Congresso Nacional (257 deputados), e não mais 3/5 (308 votos). Ora, se cabe ao Banco Central implementar medidas cruciais para a mudança do atual modelo econômico, como a mudança na gestão da dívida, a queda nas taxas de juros ou controles de capital e de câmbio, por que se conceder mandatos fixos ao seu presidente? E se o povo conseguir pressionar o governo a realizar essas medidas, mas o presidente do Banco Central for contra? Como fica a posição do governo, que foi eleito pelo povo? É importante ressaltar que o próprio Lula tem discordado da autonomia das “agências reguladoras“, alegando que elas aumentam as tarifas públicas independentemente de sua vontade.
Transição?
Não é por acaso que, em sua última carta de intenções ao FMI, de 28 de maio de 2003, o governo afirmou: “Todos os critérios de desempenho desta revisão foram cumpridos e houve avanços nas discussões voltadas para a votação de uma nova Lei de Falências no Congresso ainda neste ano. Os parâmetros estruturais de final de junho, relativos ao envio das reformas tributária e previdenciária ao Congresso, foram atingidos antes do prazo. As perspectivas econômicas permaneceram, de um modo geral, inalteradas e estamos confiantes em relação ao cumprimento dos critérios de desempenho do programa“.
Diante da situação difícil do Brasil, os defensores do governo costumam argumentar que ele recebeu uma herança pesada do governo anterior, e por isso deveríamos esperar até que se possa corrigir o rumo. Porém, quebrando direitos dos trabalhadores e fortalecendo ainda mais os nossos maiores inimigos (os especuladores do mercado financeiro), o governo não apenas manteve o rumo do governo anterior, como também está acelerando ainda mais o passo.
* Maria Lúcia Fatorelli é auditora fiscal da Receita Federal, recém-eleita presidente do Unafisco Nacional, coordenadora do Fisco Fórum-MG e da Auditoria Cidadã da Dívida pela Campanha Jubileu Sul
Post author Maria Lúcia Fattorelli*,
especial para o Opinião Socialista
Publication Date