Shirley Raposo
Mulher, negra, intelectual e militante. Essa é Ângela Davis, uma mulher que tem sua história marcada pelo intransigente combate ao racismo. Devemos fazer uma leitura de Ângela Davis no sentido de mudar a realidade, diferente da leitura “cult”, “conceitual” ou “chique” como se vem fazendo nos últimos tempos. Também não podemos ler Ângela Davis como alguém intocável, alguém a quem não se pode fazer críticas, ela tem também suas limitações.
Em seu livro Mulheres, Raça e Classe, lançado recentemente, Ângela Davis faz uma análise cronológica sobre o que foi o legado da escravidão nos EUA, trazendo a experiência de pessoas, ex-escravas, demonstrando o que era de fato a escravidão para os negros e negras, mas, especialmente, para as mulheres negras. Uma leitura muito agradável mas também muito densa, com muitas citações e uma extensa bibliografia. O texto deixa bem claro como as mulheres negras não eram vistas como seres humanos, mas sim, como mercadorias. Seus corpos eram tidos como objetos, eram totalmente animalizadas. Também faz uma grande denúncia sobre como se dava a hiper-sexualização da mulher negra e sobre a violência do estupro.
Um ponto importante no livro é a demonstração de como a escravidão consiste no mais alto grau de exploração. Diferente da atual precarização das condições de trabalho, que transforma nossa força de trabalho em mercadoria, a escravidão transforma as pessoas em mercadoria. A partir disso é possível traçar um paralelo com os dias atuais, por exemplo na questão do trabalho doméstico. Mesmo as mulheres que possuíam algum tipo de formação eram obrigadas a se sujeitar aos trabalhos domésticos, como ainda é até hoje, graças à herança da escravidão e do racismo.
Outro ponto atual e importante é do abolicionismo penal. Trata-se da política de encarceramento em massa do povo negro que é aplicada ainda hoje pela burguesia. Desde o início do livro fica bem explícito como o negro, depois de ganhar sua liberdade, é encarcerado como uma forma de voltar a se tornar escravo.
É importante ler Ângela Davis hoje no bairro da Zona Leste de São Paulo, na Cidade Tiradentes, porque esse é um dos bairros mais pobres da cidade, com o segundo maior número de negros e negras e onde a expectativa de vida em torno dos 54 anos. É um bairro dormitório e operário, fundado em cima de ocupações por moradia protagonizadas por famílias expulsas de suas casas na Zona Sul, em regiões que hoje abrigam bairros nobres da cidade. Hoje, o debates sobre Ângela Davis se concentram dentro das universidades, feito por pessoas que tem fácil acesso aos estudos e pertencente aos setores médios.
Por isso criamos o Grupo de Estudos do livro, aberto a toda comunidade, que cumpre o papel de levar esse debate para a periferia, dando acesso ao conhecimento para pessoas que sentem com mais força o peso do machismo, do racismo e da exploração. Que sentem na pele o encarceramento em massa, as mortes, a violência, os estupros e a objetificação das mulheres negras.
Ler autores negros anti-capitalistas, como Ângela Davis, é importante principalmente porque estamos diante de levantes de luta do povo negro em todo país e no mundo. Temos como exemplo os Garis do Rio, as funcionárias da Higilimp terceirizadas da limpeza do metrô; as ocupações de escola, o movimento que ocupou a secretaria de segurança pública de São Paulo e tantos outros. Diferente dos EUA, onde os negros são numericamente uma minoria entre a população, no Brasil somos mais de 50% que se auto-declara negro. Esse número deve ser ainda maior, devido às barreiras para assumirmos nossa identidade. Ainda que a escravidão de lá tenha sido bem diferente da daqui, entender o que o povo negro nos EUA passou ajuda a entender o que passamos no Brasil. Ângela Davis, ainda que tenha deixado claro desde o princípio que estava falando sobre a realidade dos EUA, nos permite entender o que foi a escravidão no mundo. Ter acesso a esse tipo de conhecimento permite a nós, negros e negras, desmistificar e resgatar nosso passado, entender nossa história, nossa origem e identidade.
Um elemento importante de se apontar na obra de Davis é a relação das sufragistas e das organizações de mulheres abolicionistas. É um debate bem atual, já que até hoje vemos organizações de esquerda que são racistas ou, como ela mesma se referia, esquerda branca, termo bastante adotado hoje pelo movimento negro. Essas organizações que discutem a classe mas que são incapazes de compreender a questão da raça não são de agora, mas desde a época descrita pelo livro. Naquela época, as mulheres brancas da elite, dos movimentos sufragista e abolicionista não convidavam mulheres negras para suas assembleias e nem mesmo ex-escravas. Também discute a forma como retratavam o homem negro, como um estuprador e com outros estereótipos. São essas ideologias que permeiam esses movimentos.