Ricardo Ayala, de São Paulo (SP)
O capitalismo com “face humana”
A rebelião das massas argentinas, em 2000, abriu um processo político na América Latina que conduziu aos governos de vários países distintas forças políticas que se apresentaram como alternativa aos efeitos sociais do neoliberalismo no continente. Na América do Sul, o ascenso de Chavez, na Venezuela, e o seu “Socialismo do século 21”, deu inicio a uma onda de governos que, em sua retórica, se colocavam contra o neoliberalismo no subcontinente.
Cada um destes governos expressou de distintas formas o que seria a sua alternativa ao neoliberalismo. Em 2003, Lula foi eleito presidente do Brasil e lançou o “neodesenvolvimentismo”. No mesmo ano, Nestor Kichner chegou à Casa Rosada, na Argentina, dando inicio ao “capitalismo sério”, e a Frente Ampla, encabeçada por Tabaré Vàzquez, ganhou as eleições no Uruguai.
Em 2006, depois de uma rebelião nacional contra a privatização da água, Evo Morales foi eleito na Bolívia e lançou o “processo de cambio” (processo de mudança) e, no ano seguinte, no Equador, Rafael Correa iniciou sua “Revolução Cidadã”. Para finalizar este ciclo, em 2008, Fernando Lugo chegou à presidência do Paraguai, desbancando décadas de governos do Partido Colorado.
No governo, estas forças políticas defenderam uma gestão “civilizada” do capitalismo semicolonial latinoamericano (ou do neoliberalismo, dentro da ordem), em contraposição à burguesia tradicional e seus partidos desgastados pela devastação social, produzida, até então, pela paralisia econômica decorrente da política de liberação econômica e financeira dos 1990.
Entre os principais países do continente, Colômbia, Chile e Peru ficaram de fora desta primeira onda de governos supostamente antineoliberais.
Na Colômbia, a existência das Forças Armadas Revolucionárias (Farcs), até então a mais antiga guerrilha do mundo, deu origem ao seu polo oposto: um Estado paramilitar, conhecido por, até muito recentemente, assassinar mais de um líder camponês ou dirigente sindical por dia, com a desculpa de combater a guerrilha, e também por criar, no outro extremo, uma franja social que era base política do governo contra a guerrilha, mantendo o movimento de massas “emparedado”.
No caso do Chile, os governos da chamada “Concertación” (Coalização) da Democracia Cristã e do Partido Socialista, que sucederam a ditadura, ainda detinham as expectativas da população e as consequências sociais da manutenção das contrarreformas implementadas por Pinochet ainda não tinham vindo à tona. Ao mesmo tempo, a exportação de cobre, peça chave de toda economia do país, mantinha, minimamente, a sobrevida dos trabalhadores, com um baixo desemprego.
Já no Peru, a corrupta ditadura de Fujimori, foi o polo oposto à guerrilha do Sendero Luminoso, que, tal como Colômbia, mantinha as massas espremidas entre uma guerrilha e a violência do Estado.
Neoextrativismo
A economia baseada na exportação dos recursos naturais
Com diferenças entre os distintos países, o modelo chileno (baseado na exportação de recursos naturais) foi o eixo sobre o qual todos os chamados governos progressistas ou “antineoliberais” fundamentaram sua política econômica, subordinada à exportação destes recursos para a industrialização da China e do Sudeste da Ásia, que demandavam minério de ferro, cobre, produtos agrícolas (como a soja) etc., em uma escala sem precedentes na história do capitalismo.
Subordinação
Cavalgando a elevação histórica dos preços destas mercadorias, os “governos progressistas” mantiveram intactas a subordinação dos países à divisão mundial do trabalho imposta pelos países dominantes , que controlam o mercado mundial destes produtos. Abrindo mão da soberania que diziam defender, aprofundaram a mesma estrutura produtiva que diziam ser contrários, fazendo com que o processo de desindustrialização avançasse no continente.
Politicas sociais compensatórias
Ao mesmo tempo, os programas sociais, como o Bolsa-Família, no Brasil, ou o estímulo aos pequenos negócios, foram incapazes de compensar o desemprego e o subemprego, quando se instalaram os efeitos da profunda crise do capitalismo mundial e os preços dos recursos naturais caíram. Resultado: os efeitos sociais foram devastadores em todo continente, assim como a decepção nas forças políticas que despertaram a ilusão de uma mudança real na vida das massas.
A crise
O tsunami que varreu a “primeira onda”
O impeachment de Lugo no Paraguai, em junho de 2012, deu inicio à crise destes governos. As mudanças reais na vida das pessoas dentro da ordem burguesa nacional e internacional conduziram a uma crise social ainda mais profunda, de acordo com o grau de dependência e subordinação em cada um dos diferentes países.
Na Venezuela, a desindustrialização do país, causada pela absoluta dependência na exportação de petróleo, escancarou a verdadeira face do Chavismo. Em maio de 2019, o Banco Central da Venezuela estimou que inflação, até 2021, chegaria a 282.000%. Neste mesmo ano, estimava-se uma retração em 90% do Produto Interno Bruto (PIB) em relação ao ano de 2013, período em que o poder de compra dos salários encolhera 94%. Além disso, o valor da cesta básica era calculado em 1.218.147,82 bolívares (a moeda local), enquanto o salário mínimo chegava a apenas 40.000 bolívares.
Com diferenças de ritmos e intensidade, esta mesma realidade social se abateu sobre todos os países governados pelas chamadas “forças progressistas”. A partir de então, sua função de conter o descontentamento social perdeu o sentido para a classe dominante, ao mesmo tempo em que os “de baixo” se decepcionavam com o retrocesso em suas condições de vidas.
A resposta da burguesia tradicional foi aprofundar o modelo extrativista, assim como dos países ainda governados pelo “progressismo”, como Venezuela, abrindo zonas econômicas especiais, entregues a corporações multinacionais associadas aos militares, para intensificar a exploração de ouro, minerais, madeira etc.
A burguesia tradicional também começou a lutar pelos governos e surgiram novas forças de ultradireita, como expressão mais desenvolvida da necessidade de saque e espoliação. E, aí, a via da mudança por dentro da institucionalidade cobrou seu preço: em 2015, o kircherismo foi derrotado nas eleições na Argentina e, no ano seguinte, Dilma Rousseff foi apeada da presidência pelo Congresso brasileiro.
Os efeitos da crise fizeram com que o “progressismo” passasse a se enfrentar diretamente com as massas. Na Bolívia, por exemplo, em 2016, a suspeita de fraude no plebiscito que daria a possibilidade de Morales ficar indefinidamente no poder gerou um levante da juventude, que foi capitalizado pela direita, que, contudo, fracassou em sua tentativa de golpe.
No Equador, Lenin Moreno, sucessor de Rafael Correa, aplicou um profundo plano de ajuste estrutural, negociado com o FMI, que dentre as medidas mais duras implicou em um reajuste brutal dos preços dos combustíveis, em outubro de 2019, o que provocou um levante das massas indígenas. E foi esta rebelião do Equador que serviu como faísca para detonar a revolta dos chilenos, que tomaram as com sua famosa palavra de ordem contra o aumento no preço das passagens: “Não são trinta pesos, são trinta anos”.
Retorno
A nova onda “rosa”
Mesmo antes das massas chilenas e colombianas ganharem as ruas, colocando estes países (de forma tardia) dentro da onda dos governos tidos como progressistas, na contramão da crise destes governos na América do Sul, em 2018, o governo do México (a segunda economia do continente e, ao mesmo tempo, o país mais controlado pelos EUA, servindo-lhe como uma verdadeira colônia) foi arrebatado por Lopez Obrador. Enquanto isto, no Brasil, Jair Bolsonaro capitalizava o desgaste do PT, alentando novas formações de ultradireita na região.
A partir de então, a eleição de Fernandez, na Argentina, em 2019, abriu as portas para uma recomposição eleitoral das chamadas “forças progressistas” na América do Sul. Em 2020, a administração do genocídio da pandemia pelos governos de turno detonou mobilizações no Peru e na Colômbia, além de manter a expectativa das massas chilenas, mesmo fora das ruas, pelo processo constituinte e a denúncia da pandemia.
Desde então, estes três países foram incorporados à nova onda de “governos progressistas”, com as eleições de Castilho (Perú), de Boric (Chile) e Petro (Colômbia). Um processo que, agora, no final de 2022, atingiu o Brasil, com a eleição de Lula.