Em cenário político marcado por uma crise ética e política grave e complicadíssima, o governo federal edita a Medida Provisória 258/2005, que centraliza, em um único órgão, toda a administração tributária do país por meio da fusão da Secretaria da Receita Federal – SRF – com a Secretaria da Receita Previdenciária – SRP.

É papel nosso denunciar à sociedade que a MP altera substancialmente a arrecadação, a fiscalização, a administração dos créditos relativos às contribuições previdenciárias, bem como a execução dos créditos inscritos em Dívida Ativa.

Em processo açodado e sem o devido e responsável debate, o governo utiliza-se do instrumento antidemocrático da medida provisória impedindo a responsável avaliação dos impactos da fusão para o Estado, a Previdência, os direitos dos trabalhadores e a vida do contribuinte.

O governo também não demonstrou à sociedade o custo da fusão e quais, exatamente, seriam os ganhos de racionalização, economia, eficiência. Ao revés, uma fusão sem esses estudos prévios pode levar ao caos administrativo e à paralisia das atividades.

Riscos para o financiamento da Previdência
Toda a sociedade está correndo sérios riscos, como denunciou o ex-ministro Jair Soares (jornal Zero Hora, em 18.08.2005): “A concepção da Hiper-Receita não é nova: quando titulei o MPAS no governo Figueiredo (1979 a 1982), houve pelo menos duas tentativas, rechaçadas sob o poderoso argumento de que os recursos detraídos da população brasileira, via contribuições previdenciárias, tinham inelutável destinação histórica, constitucional e legal na garantia do pagamento dos benefícios e de serviços assistenciais aos segurados.”

Esse risco está consubstanciado no parágrafo 2º do artigo 3o. da MP 258, que garante a destinação ao pagamento de benefícios do Regime Geral de Previdência Social apenas das contribuições previstas nas alíneas “a”, “b” e “c” do parágrafo único do artigo 11 da lei 8.212, deixando de fora as demais contribuições sociais que incidem sobre o lucro, o faturamento e sobre as movimentações financeiras. Ao considerar apenas as contribuições que incidem sobre a folha de salários, o governo tenta “legalizar” o rapto de parcela fundamental das receitas previdenciárias garantidas e vinculadas pela Constituição Federal. A aprovação desta MP, da forma como se encontra, é altamente temerária para o conjunto dos trabalhadores brasileiros e para aqueles que dependem dos benefícios pagos pela Previdência.

Outro aspecto da fusão dos fiscos que pode representar incalculável prejuízo para a sociedade é a abertura de brecha para compensação de dívidas para com a previdência com créditos podres, como recentemente denunciado pela imprensa, relativamente às compensações realizadas pelo sistema “perdcomp” da SRF, envolvendo fraudes milionárias. Assim, empresas que devem à previdência poderão não pagar suas dívidas causando grandes danos ao financiamento da Previdência Social.

É importante também ressaltar a coincidência entre a edição da MP 258 – que concentra toda a arrecadação tributária e previdenciária sob o domínio do Ministério da Fazenda – e o surgimento das propostas de aumento de superávit primário para 5% do PIB, ou de déficit nominal zero. Parece evidente o risco de utilização dos recursos da Previdência para o cumprimento dessas políticas econômicas suicidas!

De onde vem essa proposta
Para avaliarmos os reais objetivos de qualquer proposta de reforma econômica, o primeiro passo é verificarmos sua origem. Assim como outras medidas neoliberais já implementadas (altíssimos superávits primários, reforma previdenciária, trabalhista, Lei de Falências, etc), a proposta de fusão dos fiscos também tem sua origem em instituições financeiras multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Estas instituições têm financiado a fusão em alguns países e publicado documentos que defendem a adoção desta medida na perspectiva de aumentar a arrecadação e o controle sobre os recursos.

Dia 2 de junho de 2005 o Banco Mundial aprovou empréstimo de US$ 658,3 milhões ao Brasil, para apoiar as reformas previdenciárias em implementação pelo governo e o documento-programa deste empréstimo (disponível no site do Banco Mundial) chega a afirmar expressamente que “Este esforço está sendo feito a partir do reconhecimento de que as reformas do Regime Geral de Previdência Social e do Regime Próprio de Previdência dos Servidores envolverão reduções nos benefícios, e que os trabalhadores devem ter o acesso a sólidos esquemas de aposentadoria complementar.” No mesmo documento, o Banco Mundial afirma que a implementação do projeto de fusão dos fiscos disporá de recursos do Banco Mundial, sendo que o governo brasileiro, em Carta de Intenções ao Banco, afirma que está empenhado em realizar tal medida.

Por sua vez, o FMI, em dezembro de 2004, divulgou estudo que defende a fusão, a partir da análise do processo de unificação das distintas arrecadações tributárias em países da Europa Central e do Leste (Albânia, Bulgária, Romênia e Suécia). Segundo o Fundo, pode-se conseguir maior eficiência com a unificação das estruturas arrecadadoras, através, principalmente, do uso mais eficiente dos recursos financeiros, humanos e de informática. Até mesmo a redução de pessoal chega a ser sugerida, como um possível resultado positivo da fusão.

“Trem da alegria”
A MP 258 traz também o risco de “trem da alegria”, ou seja, para reduzir a resistência das entidades de servidores dos dois ministérios, o governo está promovendo ‘transformação” de cargos, compartilhamento de atribuições e outras ilegalidades que ferem frontalmente a Constituição Federal e desrespeitam a exigência de concursos públicos para ingresso em cargos públicos. Isso é altamente temerário para toda a sociedade, pois, ao distanciar-se dos estritos limites da lei, podemos perder completamente o rumo, abrindo temerários precedentes.

O Supremo Tribunal Federal já se manifestou, em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-1677/2003-DF) julgada procedente, declarando inválida lei distrital que criava cargo por transformação e determinava o seu provimento com o aproveitamento de cargos extintos sem prévia aprovação em concurso público de provas, como exige, para a investidura, o inciso II do artigo 37 da Constituição Federal.

É tão grave o descumprimento do referido inciso II do artigo 37 da Constituição Federal que o parágrafo 2º do mesmo artigo 37 da CF prevê punição à autoridade responsável pelo seu não-cumprimento, além de determinar a nulidade do ato.

ALTERNATIVAS
Diante de todo o exposto, considerando-se o risco jurídico a que ficam submetidos os ocupantes dos cargos extintos; os graves riscos para o financiamento da previdência pública; e considerando ainda a ausência dos requisitos de urgência e relevância, deve ser retirada a MP 258 e providenciada a abertura de amplo processo de discussão sobre a matéria, de forma responsável e cautelosa, eis que envolve áreas da maior importância para o Estado e para a sociedade.

O verdadeiro fortalecimento da administração tributária terá que cuidar não apenas da estrutura formal do órgão, como faz a MP 258. É urgente providenciar uma ampla revisão do modelo tributário vigente – altamente regressivo e injusto – e alterar a legislação que enfraquece a atuação do Estado, na medida em que incentiva a sonegação fiscal, merecendo destaque especial as normas do Refis, da extinção da punibilidade do crime contra a ordem tributária pelo simples pagamento, e do retardamento da comunicação ao Ministério Público.

É fundamental que toda a sociedade saiba dos diversos riscos embutidos na MP 258 e exija a garantia de finaciamento para a Seguridade Social, o fortalecimento democrático das instituições públicas permanentes e o cumprimento dos princípios norteadores da administra