(Resende - RJ, 17/08/2019) Presidente da República, Jair Bolsonaro durante o desfile militar.rFoto: Marcos Corrêa/PR
Erika Andreassy, da Secretaria de Mulheres do PSTU

O Brasil oficializou no último dia 22 de outubro, com outros 31 países, uma aliança contra o aborto e em defesa da família tradicional. A iniciativa, promovida pelos Estados Unidos, conta com o apoio de alguns dos países mais autoritários e conservadores do mundo, como Arábia Saudita, Emirados Árabes, Egito, Hungria, Belarus, Congo e Sudão e, apesar da fachada de defesa da saúde sexual e reprodutiva das mulheres, na verdade tem como objetivo restringir o direito ao aborto, assim como o entendimento sobre família.

Conforme documento denominado “Declaração de Consenso de Genebra”, os países signatários se comprometem a melhorar e promover o acesso das mulheres à saúde sexual e reprodutiva, sem incluir o aborto, reafirmando que não existe um direito internacional ao aborto nem qualquer obrigação internacional por parte dos Estados de financiar ou facilitar o aborto. A declaração não é vinculante, isto é, os países não são obrigados a modificar suas leis para seguir o texto, mas fragiliza a argumentação política na luta por avanços na legislação sobre o aborto e abre caminho para retrocessos nas normas legais existentes.

Bolsonaro reforça assim a postura antiaborto de seu governo no exterior, demonstrando mais uma vez que não subscreverá nenhuma uma agenda internacional em favor da ampliação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Em março do ano passado, o país já havia se oposto a menções ao direito de acesso universal a serviços de saúde reprodutiva e sexual em um documento elaborado pela ONU. Em julho desse ano, se absteve na votação do relatório sobre discriminação contra mulheres e meninas. No último dia 20, apoiou um texto na OEA (Organização dos Estados Americanos) que autoriza pais a imporem educação religiosa ou moral a seus filhos.

Ofensiva contra o aborto

Enquanto isso, o governo avança também sobre as já limitadas conquistas das mulheres no âmbito doméstico. Ano passado, a ministra Damares apoiou o relançamento no Congresso da Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família, que tem como prioridade avançar na aprovação do Estatuto da Família (que define família como núcleo de homem e mulher), do Estatuto do Nascituro (incentiva mulheres a não abortar no caso de estupro) e a PEC da Vida (insere na Constituição que a vida está protegida desde a concepção). Na prática, esses projetos impedem o aborto mesmo nos casos já previstos hoje pela lei: em decorrência de estupro, risco de morte para a gestante e em caso de anencefalia (quando o feto não tem cérebro).

Em junho, o ministro da saúde, General Pazuello, exonerou dois coordenadores das áreas dedicadas à saúde sexual de mulheres e homens, após uma nota técnica, assinada por ambos, que tratava do acesso à saúde sexual e reprodutiva no contexto da pandemia. O documento defendia a manutenção ininterrupta dos serviços de saúde sexual e reprodutiva durante a pandemia, incluindo os de atenção à violência sexual e o acesso à contracepção de emergência. Com relação ao aborto, apontava que se trata de direito de adolescentes e mulheres e que deve ser mantido durante a pandemia para os casos previstos em Lei. Após reclamação do presidente nas redes sociais a nota técnica foi desautorizada pelo Ministério da Saúde (MS) e os coordenadores exonerados.

Em agosto a ministra Damares agiu diretamente para impedir o aborto de uma menina de 10 anos, grávida após sofrer abusos de um tio. Numa atitude criminosa e de evidente atentado contra os direitos da criança, enviou representantes do Ministério da Mulher e aliados políticos para tentar retardar a interrupção da gravidez e pressionar os responsáveis por conduzir os procedimentos, inclusive oferecendo benfeitorias ao conselho tutelar local. Os representantes da ministra teriam ainda vazado o nome da menina para redes sociais.

Apesar da pressão dos movimentos sociais ter garantido à menina o direito legal de realizar o procedimento, o governo respondeu com uma portaria do MS dificultando o acesso das vítimas de estupro ao aborto. Além de tornar obrigatória a notificação policial dos casos de estupro, estabelecia uma série de medidas constrangedoras e intimidatórias as vítimas para fazê-las desistir do aborto. Novamente a pressão dos movimentos obrigou o governo a retroceder.

Hipocrisia

Essa postura declaradamente contra o aborto, em nome da “defesa da vida” contrasta com a falta de políticas públicas para reduzir a mortalidade materna e enfrentar a violência contra as mulheres. A declaração de Genebra reafirma a dignidade e o valor inerentes à pessoa humana e o direito inerente de todo ser humano à vida e se compromete com a gestação e o parto sem risco e oferecer aos casais a máxima possibilidade de terem filhos saudáveis. É impressionante o cinismo desse governo, que não consegue garantir sequer a vida das gestantes frente à pandemia do coronavírus. O Brasil concentra 77% das mortes de gestantes e puérperas pela Covid no mundo. Segundo o MS, até agosto 221 gestantes morreram em decorrência da síndrome respiratória aguda grave, sendo 155 com diagnóstico positivo para o coronavírus.

Em média 5 mulheres morrem por dia no país por complicações da gravidez ou parto, sendo que 92% dessas mortes poderiam ser evitadas. A taxa brasileira de mortalidade materna (57,5 para cada 100 mil nascidos vivos) é quase 10 vezes maior que a países desenvolvidos e bem acima da meta firmada com a ONU (35 para cada 100 mil até 2015). O país é responsável por cerca de 20% das mortes maternas do planeta e o quinto mais lento na busca da redução dessas mortes.

O Brasil é ainda o 5º país no ranking da violência contra as mulheres, sendo que a cada 3 minutos uma mulher é espancada e a cada 2 horas uma é assassinada, além dos 180 estupros por dia, dos quais a maioria absoluta das vítimas (70,5%) são meninas até 14 anos. Diariamente 6 meninas até 14 anos, vítimas de estupro, abortam e outras 58 tem esse direito negado.

O governo tem feio muito pouco ou nada para enfrentar essa situação. Em agosto, 6 meses após o anúncio do primeiro caso de Covid no país, o MS finalmente anunciou um aporte de 256 milhões de reais para reforço das políticas para as gestantes. Parece muito, mas não é. Num país onde ocorre cerca de 3 milhões de partos por ano, o valor destinado pelo MS, equivale a menos de R$ 90 por gestante e puérpera/ano, o que não paga nem um kit de teste para Covid para cada.

Em termos de prevenção do aumento da violência doméstica e dos estupros, o governo limitou-se a fortalecer os canais de denúncia online. Não houve campanhas de combate à violência, não houve destinação de recursos para criação e fortalecimentos da rede de assistência às vítimas de violência, o Governo Federal sequer declarou abrigos e serviços de atendimento à mulher como essenciais, deixando a cargo dos governadores decidirem, e quando houve uma recomendação nesse sentido, a mesma foi desautorizada e os responsáveis punidos.

Dos R$ 45 milhões extras disponibilizados no início de abril para o Ministério da Mulher para ação contra a Covid-19, até o início de junho apenas R$ 2 mil (!) haviam sido gastos apenas R$ 2 mil. Dos R$ 26,6 milhões do orçamento ordinário para as ações de enfrentamento à violência contra mulher, até setembro o ministério tinha gasto apenas R$ 1,6 milhão, ou seja 6%.

Tamos juntos

O Brasil, infelizmente não está sozinho nessa ofensiva contra os direitos das mulheres Nos Estados Unidos, leis antiaborto avançam nos estados. Entre janeiro e maio do ano passado, nada menos que 28 dos 50 estados do país introduziram 300 novas regras para limitar o acesso ao aborto, algumas caíram na Suprema Corte, outras foram mantidas.

Protesto contra política antiaborto na Polônia no último dia 26

A Polônia, outro signatário da Declaração de Genebra e um dos países mais restritivos em relação ao aborto na Europa vem assistindo uma onda de protestos após uma decisão da Corte Constitucional revogando o aborto em casos de malformações graves no feto. Carregando cartazes com os dizeres “vocês têm sangue nas mãos”, “nós queremos poder escolher”, ou ainda “é a guerra”, manifestantes, principalmente jovens mulheres, desfilam pelas ruas de Varsóvia, a capital do país, paralisando o tráfego. Protestos similares são registrados em várias outras cidades. No domingo, manifestantes chegaram a invadir igrejas durante a celebração de missas, e a pichar paredes em algumas delas, algo inédito num país onde 90% da população se diz católica. Em 2018, manifestações de mulheres já haviam barrado um projeto de lei que endurecia as leis contra o aborto.

Por nossas vidas e nosso direito de decidir

Ao contrário dizem os setores conservadores que se se auto intitulam “pró-vida”, políticas antiaborto, como as de Bolsonaro, não reduzem o aborto e não salvam vidas. Na verdade, leis restritivas e criminalizantes interferem muito pouco nas estatísticas de aborto, em El Salvador, por exemplo, onde é completamente ilegal, as taxas de aborto são proporcionalmente maiores que na Europa e nos Estados Unidos onde a prática é legalizada. O que sim a criminalização gera são mais abortos inseguros e, consequentemente, mais mortes maternas.

Quase metade dos abortos no mundo ocorre em condições inseguras, sendo que o aborto mata 275 vezes mais onde é proibido do que onde é legalizado. Por isso, a campanha contra o aborto não é apenas reacionária, mas também criminosa, porque nega às mulheres pobres o direito à vida que tanto esses setores dizem defender. Aliás, é fácil criminalizar o aborto quando quem está morrendo são as mulheres pobres da classe trabalhadora, já que as mulheres ricas da burguesia – que também praticam aborto –, o fazem no conforto e segurança de clínicas caríssimas que o dinheiro pode proporcionar. Como disse Dráuzio Varella “não há princípios morais ou filosóficos que justifiquem o sofrimento e morte de tantas meninas e mães de famílias de baixa renda no Brasil”. Portanto, trata-se de uma questão de saúde pública e de defender a vida das mulheres.

Por outro lado, a maternidade deveria ser considerada um direito e não uma obrigação ou um castigo. Ter filhos ou não, e quando tê-los, é uma decisão que deveria caber unicamente à mulher. Se decide ter o filho, tem de ter acesso às condições básicas para ser mãe. Se decide abortar, tem de ter acesso a um hospital público, com toda a assistência necessária. No capitalismo, contudo, esse direito básico, de decidir sobre ser mãe e quando ser mãe é sistematicamente negado às mulheres trabalhadoras. Em muitos casos, é isso que as obriga a recorrer ao aborto, mesmo contra suas próprias convicções ideológicas e religiosas, assim como a ilegalidade do aborto muitas vezes obriga a maternidade para aquelas mulheres que não desejam ser mães.

Nossa defesa é que nenhuma mulher deve ser perseguida, punida ou arriscar sua vida por fazer um aborto. Contra a hipocrisia do Estado burguês capitalista que nega o direito ao aborto, embora seja incapaz de garantir às trabalhadoras a possibilidade de exercer a maternidade de forma digna. Por nossas vidas e nosso direito de decidir!

É preciso dar um basta nas mortes por aborto clandestino. Para isso é preciso botar pra Fora Bolsonaro-Mourão e sua política antiaborto reacionária e criminosa! Nosso corpo, nossa escolha! Educação sexual para decidir, contracepção para não abortar, aborto legal, seguro e gratuito para não morrer!