Em meados dos anos 1990, José Saramago, um velho comunista, escreveu Ensaio sobre a cegueira, um dos seus últimos trabalhos antes de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura (1998). Quando escreveu esse romance, o ficcionista português se destacava como um dos críticos mais duros do vale-tudo dos sombrios tempos de hegemonia neoliberal. Implicitamente invocado, o período de supremacia do neoliberalismo pode ser vislumbrado no Ensaio, embora sujeito às perspectivas metafóricas de uma obra literária.
Convém notar que a década passada se caracterizou pela reação em toda linha. No terreno econômico, as privatizações e a abertura das economias dependentes ao capital internacional ganharam foros de cidadania. No plano militar, a ofensiva do imperialismo norte-americano revestiu-se de grande relevo e quase sem resistência. Por fim, projetando-se sobre diversos domínios, a ideologia do pensamento único neoliberal agiu como suporte para justificar a retirada de direitos sociais. Esse cenário dantesco engendrou toda uma ideologia centrada no individualismo e uma moral correspondente: a moral do vale-tudo.
Na produção literária do mestre lusitano, a cegueira é a metáfora penetrante de um tempo. Não de um tempo abstrato. Toda obra de arte é produto de uma época e se alcança épocas distintas o faz sem renunciar inteiramente ao seu ponto de partida. Assim como não podemos prescindir do contexto das conquistas, ao analisar Os lusíadas, de Camões, não devemos dispensar a adequada contextualização no que diz respeito ao texto de José Saramago. Em suas páginas vocifera o seu percurso gerativo e esse encerra um elo, essencialmente, com a derradeira década do século passado.
Antônio Cândido ensina que a obra de arte é grande na medida em que se distancia do seu ponto de partida. Decerto, Saramago cumpre esse ritual com reconhecida capacidade. Isso, contudo, não suprime a possibilidade de uma análise dos aspectos sociais que se cruzam com os elementos da criação literária.
A cegueira dos anos 1990 pode ser pressentida na mancha branca que priva as personagens de ver e entender. As dificuldades de sobrevivência põem as pessoas dentro de limites bem restritos. Em tais circunstâncias, é como se a humanidade estivesse sendo colocada à prova. Os valores de cada um são postos à verificação.
Naqueles tristes anos, o individualismo e o vale-tudo fizeram sucumbir os valores de solidariedade construídos principalmente pelos de baixo ao longo de décadas de luta. Orientando-se por mitos como os do “fim da história” e “fim do socialismo”, o capitalismo conseguiu cegar ideologicamente toda uma geração e o desmonte de grandes conquistas da classe trabalhadora espalhou-se como uma epidemia.
No romance de José Saramago, a cegueira se espalha epidemicamente. Nessa toada, um “olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê”. Começa com um homem dentro de um carro e a sua contaminação por uma luz branca, quer dizer, uma “escuridão branca”. Logo, a “cegueira branca” se dissemina, tornando-se praga, produzindo tortura e sofrimento.
Sem reservas verbalistas, os poderes constituídos deduzem que a quarentena é a saída para fazer frente à inusitada epidemia. Paga-se um preço pela acentuada simplificação, pois logo o súbito acesso epidêmico se revela em toda a sua abrangência. Uma personagem recorda que o medo cega. Pior do que isso, no entanto, é uma situação em que se observa a existência de “Cegos que, vendo, não vêem”. Deixam-se tomar pelo caos, pela confusão de pensamento e sujeitam-se a um misto de comodismo e egoísmo. A incapacidade de ver é simétrica à inabilidade de entender o que está se passando.
No livro de Saramago, os cães devorando o cadáver de um homem traduzem uma imagem barbárie. Esta imagem, apesar da sua brutalidade, não se encontra em rota de colisão com o triunfo da bárbara ordem neoliberal estabelecida na década de 1990. Metaforicamente, a sugere.
Em 1998, o escritor lusitano escreveria O conto da ilha desconhecida, em que, figurativamente, aventava a possibilidade de que as utopias não morreram. Um homem acreditava que havia ainda uma ilha a ser descoberta e, portanto, a história ainda não dera a sua última palavra. Em poucas palavras, não findara.
Acontece que quando o autor começa a escrever o Ensaio parecia que o capital triunfara definitivamente. Tinha-se a impressão de não haver mais espaço para utopias como solidariedade, coletividade e socialismo. Toda uma geração parecia terminantemente cega e a humanidade caminhava para o patíbulo.
Em Ensaio sobre a cegueira, lê-se: “O mundo está todo aqui dentro”. Nas entrelinhas da sua narrativa, há uma reflexão crítica apenas insinuada, mas perceptível: “O outro também dizia que quem parte e reparte e não fica com a melhor parte, ou é tolo, ou no partir não tem arte”. Há melhor tradução do cinismo neoliberal? Da moral do vale-tudo?
Na narrativa, a mulher que enxerga termina desempenhando, guardando as devidas proporções, o papel cumprido por aqueles que resistiram ser arrastados pelo obscurecimento promovido pelo neoliberalismo. Algo que tem a ver com “a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. No romance, a esposa do médico (que atendeu o primeiro caso da inusitada moléstia) cumpre essa responsabilidade.
No ano em que Fernando Meirelles adaptou o livro para tela do cinema e em que o capitalismo mergulha em um novo e crucial ciclo de crise, nada como ver o mundo com os olhos bem abertos. Para tanto, é preciso considerar as condições históricas da criação artística.
As coisas, inclusive no campo da arte, não são inventadas do nada e não se realizam no vazio. O livro em tela, a meu ver, permite, em última análise, chamar a atenção não apenas para uma forma misteriosa de cegueira, caso explícito do texto, mas para toda e cada uma das formas em que ela se reveste, inclusive a político-idelógica.
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