Alicia Sagra, do PSTU-Argentina

Publicado no Portal da LIT-QI

Neste 8 de março, nos encontramos mais uma vez com ataques brutais contra as mulheres, não apenas a violência machista continua e inclusive aumentou – até agora, no ano de 2023, foi registrado um aumento impressionante dos feminicídios em todo o mundo, como são mantidas as práticas discriminatórias de salário, demissões[1], as políticas reacionárias em relação ao aborto na maioria dos países, a dupla jornada e a sobrecarga doméstica.

Também neste 8 de março, desde a Ucrânia até o Peru, desde a Palestina até o Irã, as mulheres trabalhadoras, negras, indígenas, pobres, imigrantes, LGBTI, continuam protagonizando e encabeçando combates importantes, mostrando sua força e disposição para a luta.

Essa realidade apresenta à classe operária de conjunto, a necessidade de enfrentar um combate (em unidade de ação com todos os que se disponham a lutar) contra o machismo e pela libertação da mulher.

Para os revolucionários essa é uma questão de princípios. Não só porque tem a ver com a defesa de direitos democráticos elementares de mais da metade da população mundial, mas também porque o machismo divide a classe operária, e a enfraquece em sua luta contra o capitalismo.

Em meio à participação nesses processos de luta, queremos desenvolver um debate sobre estratégia, mostrando, por um lado, a falácia de teorias como a do empoderamento, que aponta saídas individuais ou por dentro do capitalismo para a superação da opressão, e por outro lado, desmascarando as correntes do feminismo burguês e reformista que defendem que a unidade estratégica para a libertação da mulher é a unidade de todas as mulheres sem distinção de classe.

Antes, queremos fazer dois apontamentos. Primeiro, quando falamos do feminismo não estamos nos referindo às mulheres que se reivindicam feministas porque são contra o machismo e a favor dos direitos das mulheres, com o qual não apenas temos acordo, como também somos parte dessa mesma luta. Estamos nos referindo às organizações que têm um programa e uma proposta estratégica para a libertação da mulher, que parte de uma determinada visão de mundo. Segundo, no campo do feminismo há muitas organizações e vertentes teóricas, que têm profundas diferenças entre elas. Há desde o feminismo radical que, inclusive, se nega a admitir a participação das mulheres trans no movimento, até as que reconhecem a existência das classes sociais, se reivindicam feministas socialistas e se definem contra o capitalismo. Aqui vamos nos referir aos pontos que têm em comum todas elas, o que as unifica enquanto teoria e estratégia feminista.

Não é só o machismo que divide a classe operária

Nas últimas décadas, as mulheres vêm conquistando cada vez mais espaços de poder e representação. Em vários lugares do mundo temos mulheres à frente dos governos, inclusive nos EUA a vice-presidente é uma mulher não branca.

Há mulheres nos ministérios, nos parlamentos, no judiciário, à frente de organismos internacionais do imperialismo…Tudo isso, sem dúvida, é um avanço e uma expressão da luta contra o machismo, entretanto, isso não significou de fato, uma mudança qualitativa na situação das mulheres trabalhadoras, em especial se forem imigrantes, negras, indígenas, LGBTI.

Na luta pela libertação da mulher, enfrentamos o machismo. E nesse enfrentamento temos acordos com diferentes organizações feministas, que desempenham um papel progressivo ao promover essas lutas, muitas das quais, inclusive, estão na direção desses processos, como foi o caso da luta pela legalização do aborto na Argentina ou das mobilizações nos EUA, contra a limitação desse direito.

No entanto, acreditamos que esse papel progressivo se perde à medida que essas batalhas são encaminhadas exclusivamente para saídas parlamentares ou as limitam aos marcos do sistema burguês capitalista. Traem o próprio movimento que dizem representar, uma vez que, para a libertação da mulher ser verdadeiramente conquistada, é necessário acabar com as relações de produção que fomentam e reproduzem todas as opressões, em outras palavras, temos que acabar com o sistema capitalista de exploração e opressão, responsável por todas as desigualdades e opressões.

Pior ainda é quando, ao invés de chamar a unidade de classe contra as opressões, aprofundam a divisão instalada pelo machismo em momentos, por exemplo, que impedem a participação dos homens em manifestações de mulheres ou recusam seu apoio (como já ocorreu na Argentina em muitas oportunidades nos “Encontros da Mulher” onde os homens que vão apoiar suas companheiras foram expulsos das marchas e dos alojamentos, e há uma recusa permanente para que as conclusões desses Encontros, que se realizam há mais de 30 anos, sejam levadas aos sindicatos para impulsionar uma luta do conjunto dos trabalhadores pelas reivindicações das mulheres); ou ainda quando convocam uma “greve de mulheres”, ao invés de chamar uma greve do conjunto da classe operária em apoio às mulheres.

Outro exemplo dessa ação, que acaba por acentuar a divisão da classe pelo machismo, ocorreu em 8 de março de 2020 no Chile. Em meio à força da revolução, um Encontro de Mulheres, realizado dias antes do 8 de março, mudou sua consigna de “Greve de Mulheres”, pela exigência de uma “Greve Geral”. Entretanto, uma vez terminado o Encontro, a direção majoritária do mesmo, formada por organizações feministas radicais e/ou influenciadas pelo feminismo pós-moderno, voltaram a propagandear a “Greve de Mulheres” e no dia da manifestação, que foi multitudinária, setores do feminismo radical impuseram a consigna “fora os pololos[2]”, com casos de enfrentamentos físicos contra jovens que participavam da manifestação. Assim, se perdeu a possibilidade de que essa impressionante manifestação realizasse uma forte pressão sobre a burocracia sindical com a exigência da Greve Geral contra o machismo, o governo e o regime, o que sem dúvida fortaleceria não só a luta imediata das mulheres contra a violência e por direitos, como daria um impulso à revolução e consequentemente à luta estratégica pela libertação da classe e da mulher. Em todos esses casos, estas organizações desempenham fundamentalmente um papel reacionário.

Por que acontece isso? Tem a ver com a visão do mundo que essas organizações têm.

Qual é a concepção do mundo destas organizações feministas?

Antes de tudo, é importante dizer que, para o marxismo, a relação entre as classes sociais é a relação que condiciona todas as demais relações no sistema capitalista. Ou seja, enquanto o capitalismo existir, a humanidade estará dividida pelas classes sociais, duas das quais opostas e antagônicas: a classe dos proprietários capitalistas burgueses exploradores, dona dos meios de produção e de troca (as fábricas, as terras, os bancos, os grandes comércios, os grandes meios de comunicação) que domina o sistema e oprime as outras classes, e o proletariado (a classe operária, os trabalhadores, os miseráveis da cidade e do campo), a classe explorada. A única possibilidade de acabar com a opressão e a exploração é acabando com o poder dessa classe exploradora e substituir esse poder pelo poder dos trabalhadores, até chegar, em nível mundial, a uma sociedade sem exploradores nem explorados, sem opressores nem oprimidos, à sociedade comunista, ao reino da liberdade do qual falava Marx.

Para isso é necessária a mais ampla unidade de classe, para que, através da luta do conjunto da classe operária, (composta por mulheres, homens, negros e não negros, jovens, imigrantes, LGBTIs, etc.), liderando seus aliados, possa destruir o aparato do estado e construir outro, a serviço de seus próprios interesses. Porém, para que esta unidade se concretize, é necessário um combate sem tréguas contra as opressões que dividem a classe, antes, durante e depois da revolução. Para que os trabalhadores e suas organizações levantem as bandeiras dos oprimidos e sejam vanguarda na luta contra a opressão, pela igualdade e pelos direitos, entendendo essas lutas como parte da luta estratégica pela tomada do poder e pelo socialismo. Por isso, encaramos a luta contra a opressão, combinando-a com propostas anticapitalistas, como parte de um programa que tem a estratégia da revolução socialista.

Em contrapartida, qual é a concepção compartilhada pelas organizações feministas?

Que a divisão central na sociedade atual, que condiciona todas as demais, não é a de classe, mas de gênero, ou seja, que o mundo está dividido, centralmente, entre homens e mulheres, sendo que as outras opressões (de classe, raça, etc) estão subordinadas ou, no melhor dos casos, se cruzam com essa opressão central. Neste contexto, todos os homens são os opressores que dominam a sociedade e todas as mulheres, as oprimidas. Falam dos homens em geral e das mulheres em geral e, coerente com essa visão, para essas organizações, o sujeito da mudança, quem libertará as mulheres, serão as mulheres, sem distinção de classe.

Como dissemos, há diferenças entre as organizações feministas, mas quase todas concordam com este aspecto geral. Por isso, tomam o conceito de “sororidade”, ou seja, da irmandade das mulheres. Conceito com o qual divergimos totalmente, pois, a “irmandade das mulheres” só é possível subordinando os interesses de classes das mulheres trabalhadoras às mulheres burguesas, o que, em última instância, significa manter o sistema de dominação e opressão de classes, que é necessário destruir para libertar a mulher trabalhadora. Não pode haver irmandade entre Merkel e as trabalhadoras alemãs. Não pode haver irmandade entre Cristina Kirchner ou Dilma Roussef e as trabalhadoras argentinas e brasileiras. Também não pode haver “irmandade” entre as parlamentares dos partidos burgueses e as dos partidos operários, porque as primeiras representam os interesses dos exploradores e as segundas o interesse das classes exploradas. “Sororidade” é uma abordagem reacionária, que tende a fazer com que as trabalhadoras, as mulheres pobres confiem que as mulheres representantes de partidos burgueses, que ocupam determinados postos de poder, possam resolver seus problemas e libertá-las.

Outra consequência dessa visão de mundo é a “teoria do patriarcado”. Essa teoria surgiu do chamado “feminismo radical”, mas hoje em dia é levantada pela maioria das organizações feministas. Por isso as expressões “sociedade patriarcal”, “estado patriarcal”, “justiça patriarcal”, etc foram generalizadas. Inclusive, o termo “patriarcado” é usado por grande quantidade de ativistas como sinônimo de opressão machista.

A sociedade patriarcal surgiu pouco antes da sociedade de classes se consolidar, onde a família era a unidade econômica e todo o poder estava concentrado no chefe de família, o patriarca, as mulheres haviam perdido seu peso na sociedade, passando a ser propriedade dos homens. Esses traços patriarcais se mantiveram ao longo de diferentes sociedades. E, com diferentes graus, isso se manteve até o surgimento da grande indústria. Marx afirma que esse surgimento marca o início do fim do patriarcado, porque o poder que o pai tinha, passa a ser exercido pelo capitalista. Atualmente, falar da existência do patriarcado não tem nenhum fundamento.

Embora nas diferentes organizações haja diferentes interpretações do que seja o “patriarcado”, todas elas partem da concepção de uma sociedade onde a divisão fundamental está dada entre mulheres e homens, onde os homens opressores detêm todo o poder. Ou seja, partem da concepção de mundo que, como temos dito, unifica os diferentes feminismos. A maioria das que se reivindicam “feministas socialistas” ou “feministas marxistas”, aceitam a existência das classes sociais, afirmando que há dois sistemas que coexistem: o capitalista e o patriarcal, sendo que o mais abrangente é o patriarcal.

Em consequência, definições como “sociedade patriarcal”, “estado patriarcal” ou “justiça patriarcal” não são corretas porque escondem que a sociedade que existe, o estado que existe, a justiça que existe, e as que temos que enfrentar, são a sociedade capitalista, o estado capitalista, a justiça capitalista.

Como essa concepção do mundo se expressa na política?

As organizações feministas são policlassistas. Algumas são diretamente burguesas e defendem um programa liberal, como as mulheres organizadas no Partido Democrata dos EUA. A maior parte das que intervêm nos movimentos, estão integradas por diferentes setores da pequena burguesia, profissionais liberais, jornalistas, intelectuais, também algumas trabalhadoras e algum setor burguês, como é o caso do “Nem uma a Menos da Argentina”.

Esses setores, embora tenham poucas, ou nenhuma, mulher burguesa em seu interior, têm um programa burguês, de reformas, sem sair do sistema capitalista. Levam todas as reivindicações centralmente ao parlamento, despertando a confiança de que, por dentro das instituições burguesas, a mulher possa se libertar e impedem, como se viu na Argentina na luta pela legalização do aborto, toda possibilidade de transbordamento extra parlamentar.

Ou seja, essas organizações fazem parte do reformismo e como tal, suas propostas organizativas são de aliança de classe. Proposta que rejeitamos totalmente já que, como afirma a Declaração da LIT-QI, fazemos unidade de ação com quem estejam dispostos a lutar contra a opressão, atacamos juntos, mas marchamos separados. Como marxistas, enfrentamos a luta com total independência de classe.

A importância deste debate

Não há dúvida de que a opressão machista divide a classe operária. E vimos que, em muitas oportunidades, as propostas levantadas pela maior parte das organizações feministas aprofundam esta divisão. Mas isso não quer dizer que machismo e feminismo sejam iguais. Fazemos unidade de ação com o feminismo para enfrentar o machismo, mas nunca o contrário. E isso porque o machismo é uma das principais ideologias que a burguesia usa para aumentar a exploração, para aumentar seus lucros e para dividir aqueles que podem derrotá-la: o proletariado.

Mas consideramos muito importante o debate e a delimitação programática e ideológica com estas organizações do feminismo, burguesas e reformistas. Porque, em momentos em que crescem os elementos de barbárie que se expressam nos feminicídios e todo tipo de violência contra as mulheres, e quando também crescem as lutas e mobilizações para enfrentar esses ataques, suas propostas têm eco em amplos setores de ativistas e suas propostas equivocadas, longe de libertar as mulheres, levarão o movimento a um beco sem saída, pois, ainda que possam obter conquistas, estas serão sempre provisórias, parciais e distorcidas.

Têm eco porque partem do “senso comum”: “os homens são os que oprimem, são os violentos, portanto, a luta é contra os homens”. Por isso, as propostas que acentuam a divisão da classe são tomadas massivamente como “fora os homens das marchas do 8M”.  É verdade que os homens são os opressores e que temos que lutar contra a opressão machista em todos os lados, na sociedade, na família, nas fábricas, nos sindicatos, nas escolas, nos partidos… Mas o que as propostas da grande maioria das organizações feministas não deixam ver, é que nem todas as lutas têm o mesmo objetivo. A luta contra a opressão na sociedade faz parte da luta para acabar com esta sociedade de opressão e de exploração. A luta contra o dono da fábrica faz parte do mesmo, é para liquidá-lo como opressor e explorador e só pode ocorrer com o conjunto da classe operária.

Mas a luta que devemos travar dentro da classe operária e dos diferentes locais de trabalho, tem um objetivo diferente, aí temos que enfrentar o machismo que existe para ganhar os trabalhadores para uma luta em comum contra a opressão, para fazê-los ver que o machismo nos enfraquece a todos no enfrentamento à patronal e na luta por uma nova sociedade.

Da mesma forma, é necessário, como dizem as Teses da Terceira Internacional[3], que façamos todos os esforços para separar as trabalhadoras da influência das mulheres burguesas (e de propostas burguesas), que criam ilusões no capitalismo e as afastam da revolução. E as propostas que partem da teoria feminista que defende que a unidade estratégica para a libertação da mulher é a unidade de todas as mulheres sem distinção de classe, se convertem em um obstáculo para fazer avançar a luta das mulheres trabalhadoras no caminho de sua libertação, no caminho da revolução socialista.

Como afirmamos no título: Enquanto o capitalismo existir, não haverá libertação da mulher. Porque, tal como dizem as Teses mencionadas: “A igualdade não formal, mas real da mulher, só é possível sob um regime onde a mulher da classe operária será a dona de seus instrumentos de produção e distribuição, participando de sua administração e tendo a obrigação do trabalho nas mesmas condições que todos os membros da sociedade trabalhadora; em outros termos, esta igualdade só é realizável depois da destruição do sistema capitalista e sua substituição pelas formas econômicas comunistas.”

[1]  Nas demissões em massa da chamada indústria Tech, 56% são mulheres

[2] Pololos é como são chamados os namorados no Chile

[3]  Teses sobre a propaganda entre as mulheres, redigidas por Clara Zetkin em discussão com Lênin, e aprovadas no III Congresso da Internacional Comunista em 1921

Tradução: Lílian Enck