LIT-QI

Liga Internacional dos Trabalhadores - Quarta Internacional

A campanha presidencial do senador Bernie Sanders para 2020 tem gerado muito entusiasmo entre progressistas liberais, assim como em parcela significativa de autodeclarados socialistas democráticos. Estes têm como sua direção os Socialistas Democráticos da América (DSA) e publicações como a revista Jacobin, que dedicou toda sua edição do inverno de 2019 a defender a ideia de que a campanha de Sanders é um instrumento para o avanço da luta pelo socialismo.

Orlando Torres

Em artigos como “O Exercício do Poder” de Bhaskar Sunkara, “O Estado que precisamos” de David Broder, “Manejando a presidência imperial” de Meagan Day, e “Um plano para o socialismo na América” de Peter Gowan, o DSA e a Jacobin articulam três linhas de argumentação para convencer a esquerda a apoiar completamente Bernie em 2020. Em primeiro lugar, apontam que a campanha representa a perspectiva mais promissora e realista de a esquerda dos EUA “exercer o poder” e implementar uma série de reformas social-democratas (universalização da saúde, gratuidade nas universidades, um salário mínimo de $15 por hora, um New Deal “verde”, etc), ao mesmo tempo em que “enfraquece a direita”. Em segundo lugar, defendem que vencer eleições e aprovar reformas é necessário para criar as condições políticas que permitiriam lutas mais radicais no futuro. E em terceiro lugar, argumentam que, mesmo que Bernie não ganhe, sua campanha e plataforma ainda assim avançariam a consciência socialista em uma escala de massas. Nós discordamos profundamente de cada uma dessas teses e iremos refutá-las. As primeiras duas partes desse artigo irão examinar o papel histórico do reformismo na implementação de reformas e contrarreformas sob o capitalismo, baseada no trabalho do historiador marxista Robert Brenner. A terceira parte utiliza essa análise histórica para avaliar a campanha Bernie 2020 sob uma perspectiva socialista.

Como as reformas na verdade são (e sempre foram) conquistadas
O apelo principal da campanha de Sanders é, sem dúvida, sua plataforma de reformas social-democratas de senso comum, que, se implementadas, realmente aprimorariam as condições materiais e políticas dos trabalhadores dos Estados Unidos. Mas o que a estratégia do DSA assume de forma errônea e a-histórica é que eleger políticos com plataformas “progressistas” ou social-democratas é o método primário, ou pelo menos um elemento central, da estratégia da conquista de reformas. Essa é uma premissa clássica do reformismo, que, nas palavras de Robert Brenner, falha em

“distinguir entre os legisladores imediatos das reformas e os criadores das ofensivas políticas das massas que realmente tornam possíveis legislações reformistas. Eles tipicamente, e desastrosamente, ignoram os movimentos de massas combativos que transformaram, querendo ou não, o que até então eram políticos reformistas e agentes da transformação política e social.[1]

Como Brenner demonstra em seu clássico ensaio “O Paradoxo da Socialdemocracia: o caso estadunidense”,[2] é a interação entre dois fatores fundamentais que determina as condições de possibilidade para reformas progressistas dentro do capitalismo propenso a crises: 1) uma alteração na correlação de forças entre as classes, resultante de um ascenso das mobilizações políticas das massas proletárias que desafie o capital e o Estado através de ações diretas nos locais de trabalho e nas ruas; e 2) os ciclos de expansão e crise da economia capitalista. Por um lado, movimentos proletários de massas acendem a faísca da transformação da consciência política e ameaça os lucros capitalistas necessários para arrancar reformas da classe dominante. Por outro, os ciclos de expansão e retração do capitalismo (as condições de lucratividade capitalista) determinam com quanta força a classe capitalista provavelmente resistirá à pressão do movimento por reformas. Quando a economia está em crescimento e a lucratividade está alta, pode ser do interesse dos capitalistas fazer concessões para evitar instabilidade política e perturbações na produtividade e nos lucros. Mas durante épocas de contração econômica e lucros baixos, reformas raramente são conquistadas. Além disso, sob o modo de produção capitalista, o pleno emprego e o estado de bem-estar social dependem de alto nível de investimentos e receitas dos impostos, que por sua vez dependem do crescimento econômico e da lucratividade capitalista. Assim, em épocas de crises, que são inerentes ao capitalismo e, portanto, não podem ser impedidas por um estado capitalista, governos social-democratas se tornam agentes da classe dominante ao restaurar lucros e crescimento através de medidas de austeridade anti-operárias.

Essa análise surge a partir dos desenvolvimentos históricos dos últimos 100 anos. Como o ensaio de Brenner descreve em detalhes, houve duas grandes ondas de reformas nos Estados Unidos – uma nos anos 30 e 40 e outra nos anos 60. Essas reformas só se tornaram possíveis por causa de uma explosão de movimentos populares e proletários independentes orientados para a ação direta e contrários ao eleitoralismo e às forças sociais do reformismo: as burocracias sindicais, as lideranças de classe média das organizações progressistas, e os políticos do Partido Democrata. Nos anos 30 houve uma onda sem precedentes greves e mobilizações operárias militantes (nosso jornal escreveu sobre elas em outras edições), que se desenvolveram por fora e contra a direção reformista e burocrática da Federação Americana do Trabalho (AFL). Após passivamente tolerar uma ofensiva antissindical brutal nos anos 20, a liderança da AFL sabotou as greves de 1933 ao pressionar os sindicatos a fazerem os trabalhadores voltarem a seus postos e a dependerem das mesas de mediação de Roosevelt, que quase sempre ficavam ao lado dos patrões. No entanto, o dinamismo do movimento vinha de trabalhadores de base cada vez mais combativos e organizados, que estavam dispostos a romper com a burocracia e formaram os Trabalhadores Automotivos Unidos (UAW) e eventualmente o Congresso das Organizações Industriais (CIO) como alternativa à AFL. Durante essa época, a força do movimento operário era tão grande que arrancou concessões significativas (por exemplo, as leis Wagner e da Seguridade Social), mesmo durante uma depressão econômica.  Mesmo assim, a burocracia sindical e políticos progressistas como Franklin D. Roosevelt fizeram tudo que podiam para conter a militância sindical e canalizá-la para o Partido Democrata, que, apesar de ter uma maioria enorme no parlamento, aprovou uma série de leis (especialmente as leis antigreve Smith-Connally de 1943 e Taft-Harley de 1947) que pavimentaram o caminho para a grande queda no movimento sindical nas décadas seguintes.

Nos anos 60, os movimentos dos Direitos Civis e do Black Power dependiam principalmente de ações diretas para enfrentar estruturas econômicas e racistas, causando uma onda de organização militante que incluiu enormes mobilizações estudantis, de mulheres e anti-imperialistas. Combinado a esse desafio real aos interesses da classe dominante, houve um salto correspondente na consciência (tanto liberal quanto radical), que, unido às prosperidade e lucratividade capitalista inéditas do período 1945-1970, permitiram uma série de reformas durante os governos Johnson e Nixon (as várias leis dos Direitos Civis, os Programas Contra A Pobreza, a Agência de Proteção Ambiental, e outras). Porém, uma vez mais as forças sociais do reformismo – nesse caso a liderança das organizações negras oficiais como a Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP) – não apenas fizeram tudo que puderam para canalizar a energia da luta do povo negro para as eleições ao organizarem uma movimentação de registro eleitoral para  Lyndon Johnson, mas aberta denunciaram o movimento Black Power combativo como “pai e mãe da violência”.[3] Conforme os movimentos diminuíram sob a repressão estatal e a economia capitalista entrou em crise no início dos anos 70, o capital lançou um ataque total contra as vitórias da classe trabalhadora com a cumplicidade ativa do Partido Democrata, que desde então não aprovou uma única reforma social significativa.

Para encurtar, as burocracias sindicais e as lideranças de classe média das organizações progressistas dos oprimidos historicamente atuaram para conter e obstaculizar o desenvolvimento movimentos combativos de ação direta, ao mesmo tempo que trabalhavam para domesticá-los e canalizar sua energia para a política eleitoral burguesa. Ao mesmo tempo, políticos reformistas se beneficiaram eleitoralmente de saltos na consciência gerados por movimentos radicais e ocasionalmente, sob a correlação certa entra a pressão dos de baixo e a lucratividade capitalista, atuaram como os “legisladores imediatos” das reformas que se tornaram possíveis através da luta classista e combativa – ou seja através dos métodos que o reformismo sabota, direta ou indiretamente. De fato, políticos reformistas que ganham o crédito político por reformas arrancadas pelos de baixo usam essas vitórias legislativas para criar a dependência política e eleitoral que enfraquece os movimentos e abre caminho para contrarreformas.

O papel do reformismo nas contrarreformas
A questão histórica remanescente é qual o papel que as forças sociais do reformismo cumpriram durante períodos de pouco ativismo ou de desaceleração econômica. Novamente, os registros históricos são iluminadores. Nos Estados Unidos, desde o fim do boom do pós-guerra no início dos anos 70, a assim chamada Esquerda do Partido Democrata, a liderança burocrática estabelecida dos sindicatos, as lideranças de classe médias das organizações “progressistas” (por exemplo, a MoveOn, a Credo, o Indivisible, etc.) foram completamente incapazes de liderar qualquer resistência efetiva (dentro ou fora das instituições de Estado) contra a onda de ataques capitalistas contra os níveis historicamente altos de concentração de riqueza junto com precariedade, salários reais em queda e baixa sindicalização.

Como regra, quando governos reformistas estão no poder durante períodos de desaceleração econômica ou baixa militância, não apenas eles não implementam seu próprio programa como inclusive aprovam ataques contra a classe trabalhadora para restaurar a lucratividade capitalista. Isso ficou evidente quando governos trabalhistas e social-democratas em países como Inglaterra, França, Espanha, e mesmo Suécia implementaram cortes e políticas de austeridade nos anos 70, 80 e 90. Mas há exemplos mais recentes, como o governo do Syriza na Grécia, que chega ao poder com uma plataforma radicalmente anti-austeridade em 2015 e imediatamente começa a aplicar um pacote humilhante de medidas de austeridade exigidas pela União Europeia. Talvez mais dramaticamente, o recente colapso da assim chamada “Onda Rosa” de governos na América Latina completou um ciclo completo da política reformista: uma onda de movimentos sociais combativos e antineoliberais gerou uma mudança na correlação de forças entre as classes nos anos 90 e no início dos anos 2000; políticos e líderes reformistas conseguiram canalizar a crescente consciência radical e a energia do movimento para dentro das instituições da democracia burguesa, tendo vitórias eleitorais; durante um período de crescimento econômico (2002-2014), com os preços internacionais de commodities como petróleo, ouro e carvão extraordinariamente altos, governos reformistas surfaram na onda de crescimento e aplicaram uma série de reformas moderadas enquanto mantinham a lucratividade capitalista; quando os preços das commodities previsivelmente entraram em colapso e o boom se tornou uma crise, esses mesmos governos reformistas – de Dilma Rousseff no Brasil a Daniel Ortega na Nicarágua e Nicolás Maduro na Venezuela – removeram reformas que já haviam sido conquistadas e implementaram o mesmo tipo de medidas anti-povo (como ataques às aposentadorias e aos serviços públicos, ataques à negociação coletiva, repressão a mobilizações populares) que foram eleitos para reverter.

Por que é que esses líderes reformistas, que supostamente têm um compromisso de avançar os interesses da classe trabalhadora, se tornam agentes da burguesia durante períodos de desaceleração econômica e/ou baixa atividade militante? Uma parte da resposta foi resumida por Brenner, que explica que “as forças sociais que dominam a política reformista, principalmente o oficialato sindical e os políticos de partidos social-democratas…. não são eles mesmos parte da classe trabalhadora”, apesar de dependerem, para seu sustento, de organizações mantidas pela classe trabalhadora.

            “…acima de tudo, eles estão fora do chão da fábrica […] [e] tem sua base material, seu sustento, na própria organização sindical ou partidária […]. Na medida em que a organização é viável, eles podem ter uma forma viável de sustento e uma carreira razoável […]. Já que a resistência militante ao capital pode provocar reações por parte do capital e o Estado que ameacem as condições financeiras ou a própria existência da organização[…], os sindicatos e partidos reformistas […] [buscam] aparar os ataques do capital através de conciliações com ele.[4]

A segunda parte da resposta tem a ver com estratégia. Como já mencionado, durante épocas de desaceleração econômica, os capitalistas não concedem facilmente reformas que diminuam ainda mais seus lucros, e tendem a reter investimentos (ou seja, uma “greve de capital”) e criar um caos econômico para impor seus interesses de classe. Assim, como regra, os governos reformistas se veem perante duas opções: 1) implementar medidas de austeridade anti-povo para restaurar a lucratividade do capital e o crescimento econômico, ou 2) de fato desafiar as relações de propriedade capitalistas. O problema é que adotar a segunda de forma bem-sucedida – desafiar e derrotar os proprietários dos meios de produção – requer um nível de auto-organização, consciência e militância da classe trabalhadora que não pode ser construído por via eleitoral. É necessária uma acumulação gradual de lutas de ação direta que minem a legitimidade do Estado capitalista e assim ameacem a viabilidade tanto de campanhas eleitorais de curto prazo quanto de governos reformistas que dependem de instituições do Estado. Assim, mesmo se líderes capitalistas que administram Estados capitalistas tivessem a vontade política de lutar pelo socialismo em momentos de crise (algo muito improvável pelas razões apresentadas por Brenner), a classe trabalhadora provavelmente estaria despreparada para esse nível de luta. Como veremos, as estratégias necessárias para “tomar o controle do Estado capitalista” através das eleições burguesas estão geralmente em contradição com as necessárias para construir o ativismo e a consciência socialista de massas.

Há duas lições chave que trabalhadores e socialistas precisam aprender com essas experiências históricas. Primeiro, o reformismo e a política eleitoral na verdade não ganham reformas que beneficiem a classe trabalhadora. Ao invés disso, movimentos combativos de ação direta, que se organizem independentemente e frequentemente diretamente contra as forças políticas do reformismo, podem arrancar concessões por parte da classe dominante ao gerar perturbações e mudanças na consciência que alterem o panorama político. Essas concessões frequentemente (mas nem sempre) são legisladas por políticos reformistas, mas só podem ser conquistadas pela luta independente. Segundo, conquistar reformas e eleger políticos reformistas para mandatos não cria, por si só, as condições para uma mudança mais profunda do capitalismo. Na medida em que a energia de movimentos radicais é canalizada para a política eleitoral burguesa e para longe da ação direta militante que foi o que conquistou as reformas, e na medida em que os trabalhadores são pressionados pelos governos reformistas a conter suas lutas a limite aceitável pelo capital, as condições da possibilidade de uma mudança radical vão se deteriorar ao invés de se aprimorar. De fato, em épocas de crise, governos reformistas tendem fortemente a eles mesmos atacarem os trabalhadores para retomar o crescimento e a lucratividade.

Que papel uma campanha (ou presidência) de Bernie 2020 pode cumprir na luta pelo socialismo?
Dado o papel histórico do reformismo, uma das questões centrais da esquerda nos Estados Unidos é que relação ter com a campanha de Bernie 2020. Embora para socialistas haja vantagens evidentes em uma campanha de grande visibilidade que possa falar a milhões de trabalhadores, também há enormes custos políticos a ser pagos por ser candidato por um partido veementemente capitalista, limitar nosso programa a reformas social-democratas, e abraçar uma estratégia com foco nas eleições.

É inegável que a campanha de Bernie em 2016 teve um enorme impacto na política dos EUA. Sua máquina de levantamento de fundos e imensa exposição midiática ajudou a popularizar uma série de reformas social-democratas de senso comum, como a saúde universal, ensino superior gratuito, aumento do salário mínimo, universalização das creches, taxação progressiva, e reformas ambientais. Nesse processo, a campanha gerou expectativas sobre quais políticas são de fato politicamente viáveis e construiu uma nova base eleitoral que rejeita explicitamente a ortodoxia neoliberal e abertamente desafia o establishment de direita do Partido Democrata. Além disso, a autoidentificação de Sanders como um “socialista democrático” levou a uma explosão do número de membros do DSA, que tornou as campanhas presidenciais de Sanders em 2016 e 2020 sua prioridade máxima. Assim, a liderança do DSA e sua publicação central, o Jacobin, têm colocado a campanha Bernie 2020 como uma oportunidade histórica indispensável de conquistar reformas importantes, criar as bases para lutas mais avançadas, e (mesmo se a eleição for perdida) aumentar a consciência socialista.

Muitos trabalhadores e ativistas que buscam uma alternativa à política tradicional são, compreensivelmente, atraídos por essa visão. Infelizmente, ela é baseada em uma compreensão equivocada do capitalismo, do Estado, e da dinâmica da luta de classes, que a torna não só inadequada como, em última análise, contraproducente na luta pelo socialismo. Primeiro, Bernie Sanders não é e nunca foi controlado pelo ou leal ao DSA, ou a qualquer organização socialista ou de esquerda. Ao contrário, Bernie monta chapa com os Democratas no Senado, assinou um juramento de fidelidade, afirmando que “concorrerá como um Democrata… e presidirá como um Democrata”, e, como demonstrou em 2016, apoiará Democratas das corporações em eleições gerais. Portanto, no provável caso de Sanders não conseguir ser eleito com as regras escancaradamente antidemocráticas das eleições primárias internas, pode-se esperar que ele apoie qualquer candidato que os Democratas lancem, assim dando de mão beijada sua base eleitoral antineoliberal, arduamente construída, aos representantes da burguesia. Isso sabota num nível fundamental a tarefa central dos socialistas de construir uma base para um futuro partido proletário, pois reforça, na prática, os princípios de colaboração de classes e “mal menor” que sustentam a capacidade de cooptação e desmobilização da democracia burguesia.

Apoiadores de Sanders, naturalmente, tem a esperança de que ele derrote a ala direita do Partido Democrata e seja eleito presidente. Nesse cenário improvável, mas não impossível, as contradições da estratégia reformista seriam expostas claramente, começando com uma pressão enorme e inédita tanto por parte dos Democratas quanto da mídia burguesa para que Sanders recue ainda mais em seu já limitado programa e fique com algo que o Congresso “esteja disposto a aprovar”. De fato, a pressão para evitar o enfrentamento com eleitores “moderados” e a mídia corporativa de formas que possam colocar em risco a maioria no Congresso em 2022, junto à pressão para fazer concessões políticas que demonstrem que o governo pode ultrapassar as barreiras do Congresso e aprovar alguma coisa (qualquer coisa!) nos seus primeiros dois anos seriam, muito provavelmente, poderosas o suficiente para domesticar a presidência de Sanders e torná-la algo inteiramente inofensivo para o status quo. Se e quando isso acontecesse, os trabalhadores e as comunidades oprimidas se mobilizariam contra o governo – seja porque estão sendo jogado aos leões em concessões ao establishment, seja porque suas necessidades nunca estiveram representadas no programa limitado de Sanders – e imediatamente seriam pressionados fortemente a ficar na linha (nesse caso pelas forças reformistas que apoiam Sanders) com o argumento de que criticar um “presidente socialista” divide a esquerda e ajuda a direita a retomar o poder.

Mas mesmo que um futuro presidente Sanders milagrosamente transformasse o Partido Democrata em uma organização social-democrata militante e enfrentasse um ataque frontal por parte da mídia, seu governo ainda enfrentaria a realidade de que, sob o capitalismo, todas as reformas pró-trabalhadores são financiadas com a receita de impostos e que a capacidade do Estado de coletar impostos depende de crescimento econômico – ou seja, da lucratividade capitalista. Isso quer dizer que ou uma contração cíclica da economia, ou uma retenção politicamente deliberada dos investimentos por parte dos capitalistas geraria recessão econômica, minando a legitimidade política do governo e forçando um abandono das reformas e um retorno a políticas anti-proletárias para retomar a lucratividade e o crescimento. Essa é a história estabelecida do reformismo e não há razão para achar que será diferente em um projeto reformista que carrega os fardos adicionais de ser parte de uma instituição capitalista, em uma época em que os movimentos independentes da classe trabalhadora não são nem de perto tão poderosos quanto foram nos anos 30 e 60.

Para além do poder estrutural do capital, qualquer desafio profundo à classe dominante por parte de um futuro governo Sanders também seria enfrentado pelo que Charlie Post chama de “governo permanente não-eleito – o serviço civil / agências executivas, o Judiciário e, em última análise, as Forças Armadas.” Como Post várias vezes apontou,

essas instituições, popularmente conhecidas como ‘deep state’, historicamente foram o centro da resistência a tentativas da esquerda socialista de ‘utilizar’ posições eleitas no Estado capitalista para implementar reformas significativas, quanto mais romper com a lógica do capital… Apenas uma ruptura decisiva na estrutura institucional do Estado – o desmantelamento do velho Estado e a construção de um contrapoder proletário – podem fazer com que a classe trabalhadora conquiste reformas significativas e comece a construção do socialismo.[5]

Vencer esses obstáculos exigiria maciços movimentos independentes da classe trabalhadora para orientados taticamente para ações diretas e com disposição para, se necessário, descumprir a lei e lutar contra o Partido Democrata, a burocracia sindical, e a liderança de classe média das ONGs progressistas. Os defensores mais sofisticados da estratégia do DSA reconhecem tanto as barreiras estruturais que confrontam um possível governo Sanders quanto a centralidade das lutas das massas para superá-las. Por isso apelam a uma assim chamada estratégia “interna-externa” que tenta produtivamente combina construir as lutas das massas com chegar ao governo por meio de eleições e assim administrar o Estado capitalista. Apontam repetidamente para o suporte retórico de Sanders a causas trabalhistas e sociais e convocam um “movimento de massas de pessoas ordinárias que exerça sua própria pressão sobre políticos, que rivalize com a pressão exercida pelos capitalistas [através] de greves políticas que derrubem os lucros ou paralisem as funções normais da sociedade.”[6] Isso, é claro, não é novo – a maioria dos projetos reformistas foram sedutores para as mobilizações populares, frequentemente com uma retórica bem mais radical (por exemplo o Syriza ou Chávez), como um complemento necessário à atividade parlamentar. E como os reformistas de ontem, socialistas apoiadores de Bernie 2020 não enfrentam nem resolvem as tensões e contradições inerentes entre o eleitoralismo e a luta de massas.

O conflito mais óbvio entre os dois objetivos é sobre prioridades. Se, como a história mostra, é o poder perturbador dos movimentos militantes das massas e não o dos políticos reformistas eleitos que cria as condições para conquista de reformas, então a lógica diz que construir esses movimentos é a tarefa central dos socialistas (tanto reformistas quanto revolucionários) de hoje. Porém, quando socialistas são enredados pelo jogo da democracia capitalista, que requer um investimento extraordinário de tempo e energia em campanhas que começam meses ou anos antes da votação acontecer, é difícil imaginar como vão haver recursos para construir uma base militante em locais de trabalho e vizinhanças. Cada hora que um socialista gasta angariando votos para Bernie 2020 é uma hora que não é gasta construindo movimentos independentes orientados para a ação direta nas ruas e nos locais de trabalho. A atual direção do DSA pode argumentar que o elemento “externo” de sua estratégia é tão importante quanto sua cruzada para ganhar eleições mas, considerado o escopo de suas atividades práticas desde 2016, qualquer um que esteja prestando atenção sabe que muito mais tempo e energia estão sendo investidos em garantir recrutas para candidatos progressistas (dos quais muitos sequer são membros do DSA e só compartilham de uma parte de seu programa) do que em reformar o movimento sindical ou organizar a classe trabalhadora imigrante.

Mais importante ainda é o fato de que ganhar eleições sob o capitalismo envolve uma lógica fundamentalmente diferente da utilizada para construir movimentos de massas. Como Robert Brenner explicou, ganhar eleições requer duas coisas básicas: ser atraente para 50% mais 1 e fazer com que os apoiadores realizarem o ato relativamente passivo de ir às urnas votar. Portanto, para ganhar, candidatos de esquerda precisam até certo ponto aceitar e se adaptar à consciência atual do eleitorado. É um jogo de canalizar energia da esquerda nas primárias e então lentamente se mover para o centro enquanto se distancia de ideias consideradas radicais demais para ganhar mais votos de moderados. Nós já estamos vendo essa dinâmica em jogo com Bernie Sanders. Em 23 de fevereiro, Sanders chamou a Venezuela a aceitar a assim chamada “ajuda humanitária”, orquestrada por Trump e governos de direita da América Latina para apoiar materialmente a tentativa de golpe da direita venezuelana, mas tem mantido um silêncio palpável sobre as violentas sanções econômicas impostas pelos EUA à economia da Venezuela como parte de uma campanha aberta para forçar uma mudança no regime. Mais recentemente, numa Câmara de Vereadores em Iowa, Sanders respondeu a uma pergunta sobre suas posições quanto à imigração dizendo que “o que precisamos é de uma reforma completa da imigração. Se você abrir as fronteiras, meu Deus, há muita pobreza nesse mundo, e você vai ter gente de todo o mundo. E não acho que seja algo que possamos fazer nesse momento. Não dá. Então não é minha posição.” Se Bernie vencer as primárias, pode-se esperar que tanto seu programa quanto sua imagem se movam ainda mais à direita conforme ele se foca nos estados indecisos; e também pode-se esperar que seu núcleo duro de apoiadores na esquerda, incluindo o DSA, vá aceitar isso sem críticas, pois entendem que é necessário para vencer.

Por sua vez, greves e outras ações militantes de massas exigem não só grandes quantidades de pessoas participando, mas um comprometimento muito mais profundo. Para vencer em uma batalha contra patrões, trabalhadores precisam, nas palavras de Brenner,

            “desenvolver a mais poderosa solidariedade; precisam aceitar riscos, fazer sacrifícios, estar preparados para cometer ações ilegais e usar a força, e no fim, precisam desenvolver as idéias que expliquem e justifiquem essas ações para si mesmos e para os outros. Tudo isso é necessário para vencer, porque o que está envolvido é um teste direto de forças com os empregadores e/ou com o Estado.”

Naturalmente, ações militantes frequentemente alienam eleitores moderados e de classe média, que estão super-representados no eleitorado. Quanto mais militante e independente um movimento se torna, maior é a tensão entre a construção do poder estrutural da classe trabalhadora e a vitória nas eleições para administrar o Estado capitalista. Mais ainda, como descrito acima, os movimentos militantes com frequência precisam confrontar as forças sociais do reformismo: a burocracia sindical e a direção de classe média das organizações progressistas. Se a direção dos sindicatos e ONGs progressistas abraçar Berne 2020, como algumas fizeram em 2016 e muitas mais provavelmente farão agora, um ascenso na militância de base forçaria outra escolha central: será que a campanha e seus apoiadores na esquerda jogariam seu peso político e material incondicionalmente na tarefa de reformar o movimento operário? Ou se equivocariam e cumpririam um papel conciliador para evitar alienar apoiadores poderosos na burocracia sindical? Se a história for um indicativo, eles capitulariam às pressões de um “pragmatismo” fútil e derrotista.

É precisamente o tipo de profundas solidariedade, criatividade e autogoverno coletivo necessário para vencer greves e ações do gênero que constrói uma consciência socialista genuína. Desafiar os patrões e o Estado dá aos trabalhadores a experiência concreta de seu poder e capacidade de ação. Dá significado à idéia de que, como trabalhadores, nós temos a chave de nossa própria libertação e precisamos depender uns dos outros e de nosso poder organizador para transformar o mundo. Como Florence Oppen defendeu em uma edição anterior dessa revista, a autodeterminação democrática dos trabalhadores está no centro da consciência socialista. Portanto, sua ascensão requer uma ruptura

com as ilusões e a dependência das instituições do governo burguês, que incluem todos os espaços da democracia representativa (legislativos municipais, estaduais e o Congresso federal) assim como os partidos estabelecidos. A independência de classe não é algo que possa ser simplesmente proclamado e impresso num panfleto. Ela significa a criação de uma experiência concreta de luta e direção da nossa classe pela nossa classe, com democracia, independência e responsabilidade.”

Apesar de seu papel em popularizar elementos do programa socialista (educação e saúde gratuitas, entre outras), a campanha Bernie 2020 não servirá como um veículo efetivo para construir a consciência socialista porque abraça de forma acrítica o sistema eleitoral capitalista, seu poder de cooptação, e a ilusão de que o socialismo pode ser alcançado sem luta revolucionária.

Como socialistas comprometidos, não podemos apoiar a campanha Bernie 2020, não por causa de alguma promessa dogmática de pureza ou maximalismo, mas porque ela faz parte de uma estratégia que certamente irá cooptar e por fim minar as lutas da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que reconstrói a base social e a legitimidade do Partido Democrata e da democracia capitalista. Ao invés disso, apresentamos uma estratégia socialista alternativa – uma em que o centro de gravidade é incontestavelmente a construção das lutas democraticamente auto-organizadas da classe trabalhadora e a gradual unificação e encaminhamento delas para a ação direta. Isso não significa, é claro, que socialistas não devam participar em eleições. Significa que nós participamos de campanhas eleitorais independentes de oposição, não com o objetivo central de ganhar mandatos (embora isso seja uma possibilidade em determinados contextos), mas sim de construir, fortalecer e conectar movimentos em torno a um programa transicional que esclareça a necessidade de romper com o Estado e mover-se para além dos limites do que é possível sob o capitalismo. Essa estratégia não só tem muito mais chance de conseguir reformas, como de conquistá-las de uma maneira que construa a independência e o poder organizativo da nossa classe, ao invés de montar o palco para a desmobilização e a contrarreforma.

Bernie Sanders é um líder eficiente e carismático que construiu uma impressionante base eleitoral na classe trabalhadora, de pessoas que querem construir uma sociedade diferente, estão fartas do status quo, e estão em busca de uma alternativa real. Se ele realmente se comprometesse com essa plataforma, ou sequer com o socialismo, ele romperia com o Partido Democrata, convocaria uma convenção de organizações proletárias, socialistas e de justiça social, e poria sua candidatura sob o controle democrático dos trabalhadores. Não temos nenhuma ilusão de que isso vá acontecer – afinal, Bernie foi o primeiro a assinar um compromisso de “apoiar o candidato escolhido pelos Democratas, seja quem for – ponto final.” Mas se Sanders passasse a agir a sério e colocasse seu estrelato a serviço das lutas da classe trabalhadora, consideraríamos apoiá-lo.

Notas:

[1] https://www.versobooks.com/blogs/2508-the-paradox-of-social-democracy-the-american-case-part-one

[2] https://solidarity-us.org/atc/43/p4958/

[3] Hall, S. (2007), The NAACP, Black Power, and the African American Freedom Struggle, 1966–1969. Historian, 69: 49–82.

[4] https://solidarity-us.org/atc/43/p4958/

[5] https://jacobinmag.com/2018/02/socialist-organization-strategy-electoral-politics

[6]https://jacobinmag.com/2019/03/bernie-sanders-movements-not-me-us?fbclid=IwAR0Xk2wKUeEVw_ZAYw66V-v8sr6vqI3p7MLURIObEhVsJqmLXGnI5psBN_4

Traduzido por Miki Sayoko