“Desvelando a Transexualidade” é uma série de artigos sobre transexualidade nos mais variados aspectos. Este é o segundo artigo.
Leia o 1º artigo: Recortes, conceitos e diferenciação entre as travestis e as mulheres transexuais
Transexualidade: doença mental?
A transexualidade, até bem pouco tempo “transexualismo”, é vista como uma doença pelo Código Internacional de Doenças (CID-10). De acordo com o CID-10, a doença codificada por F:64.0 corresponde à “Disforia de Gênero”. “Disforia” é um sentimento de insatisfação, ansiedade e inquietação. Portanto, pessoas cisgêneras também são altamente disfóricas ao não aceitarem seus corpos como são e recorrerem a métodos para alterá-los e torná-los mais próximos do ideal almejado por elas. A pergunta que nos fica é: por que pessoas cisgêneras não têm suas disforias patologizadas e não precisam de laudos para realizarem procedimentos em seus corpos enquanto que as pessoas trans são patologizadas, necessitam de laudos para realizarem qualquer tipo de intervenção em seus próprios corpos? O que diferencia a não-patologização da disforia de pessoas cisgêneras para a patologização da disforia de pessoas transgêneras/transexuais?
O processo transexualizador: a maior mentira e crueldade
Quanto às mulheres transexuais que querem realizar a CRS (cirurgia de redesignação sexual), essas precisam se enquadrar ao “protocolo transexualizador” e serem classificadas dentro desse como “transexuais verdadeiras”: uma das maiores mentiras e crueldades da Medicina e da Psiquiatria para com a nossa população.
O Brasil, atualmente, possui apenas 9 centros ambulatoriais pelo SUS que realizam o processo transexualizador, que inclui a hormonioterapia e as cirurgias, entre elas a CRS, que não é realizada em todos os ambulatórios, pois muitos apenas realizam a parte da hormonioterapia.
Para iniciar o acompanhamento é necessário procurar um serviço do SUS que fará o acompanhamento para um dos centros ambulatoriais que fazem o processo transexualizador. A/o paciente passará por uma triagem e deverá ter idade mínima de 18 anos para iniciar a hormonioterapia. Para obtê-la, a/o paciente deve fazer acompanhamento com uma equipe multidisciplinar, que deve incluir endocrinologista, psicólogo, psiquiatra e assistente social. Quanto às/aos pacientes que desejam fazer intervenções de readequação cirúrgicas, devem ter idade mínima de 21 anos e passar pela mesma equipe multidisciplinar por pelo mínimo 2 anos, obtendo laudo do endocrinologista atestando 2 anos, no mínimo, de tratamento hormonal; 2 anos de acompanhamento, no mínimo, com psicólogo para obtenção de laudo favorável atestando a Disforia de Gênero e 2 anos de acompanhamento, no mínimo, com psiquiatra para obtenção de laudo também favorável à Disforia de Gênero.
As cirurgias que podem ser realizadas em homens trans podem ser: tireoplastia (cirurgia que permite a mudança no timbre de voz); mastectomia (retirada das mamas); histerectomia (retirada do útero); ooforectomia (retirada dos óvulos); neofaloplastia (é a cirurgia de construção do novo pênis, ainda pouco comum e feita apenas em âmbito experimental e que no Brasil só é autorizada em hospitais universitários autorizados).
As cirurgias que podem ser realizadas em mulheres transexuais podem ser: tireoplastia (cirurgia que permite a mudança no timbre de voz); inclusão da prótese de silicone e plástica mamária (procedimento estético para correção de intervenções anteriores); feminização facial (rinoplastia: cirurgia plástica no nariz; cirurgia nos lábios; cirurgia nos maxilares; frontoplastia: cirurgia de suavização da testa com diminuição das proeminências ósseas; cirurgia dos osso malares (maçãs do rosto); mentoplastia: cirurgia no queixo; raspagem do Pomo de Adão; neovulvocolpoplastia (cirurgia de construção da nova vagina).
O SUS disponibiliza, desde 2008, por meio da Portaria 457, às mulheres transexuais, o acesso à terapia hormonal, cirurgia para redução do Pomo de Adão, adequação das cordas vocais para feminilização da voz, neovulvocolpoplastia. A partir de 2013, por meio da Portaria 2.803, passou a disponibilizar também a cirurgia de implante de silicone nas mamas. Para os homens transexuais, por meio da Portaria 2.803, de 2013, passou a incluir os procedimentos para os homens trans: tratamento hormonal, mastectomia, ooforectomia e histerectomia.
Alguns (mas) transexuais têm diversos problemas de saúde como diabetes, pressão alta, problemas cardíacos ou são alérgicas às anestesias e, por isso, não podem realizar tais procedimentos. Há ainda as que lidam bem com o fato de serem de tal gênero, independentemente dos caracteres biológico-sexuais discordantes. O que estamos dizendo é que não é a genitália que fará de uma mulher trans menos mulher ou que fará um homem trans menos homem.
Embora lutem por assistência às especificidades de suas saúdes, pessoas transexuais lutam há anos para que não sejam classificadas como doentes mentais. O mesmo acontecia com os homossexuais que, até 1990, eram considerados doentes pela Organização Mundial da Saúde. As consequências deste tipo de classificação foram as mais nefastas: lobotomias, internações, castrações químicas, desemprego, tratamentos impossíveis e dolorosos para readequação da orientação sexual, “curas gays” e até prisões em manicômios psiquiátricos.
Efeitos dos hormônios nas travestis e mulheres transexuais: Termo de Esclarecimento e Responsabilidade
Ao iniciar o acompanhamento/tratamento em um centro ambulatorial e/ou hospitalar as travestis e as/os transexuais devem assinar um termo de esclarecimento e responsabilidade, assumindo para si estar consciente dos riscos à saúde que podem advir do uso dos hormônios. O termo de esclarecimento e responsabilidade que as travestis e as transexuais têm de assinar contém as seguintes informações listadas abaixo:
Mudanças permanentes que não desaparecerão se parar o uso dos hormônios: desenvolvimento das mamas (desenvolvimento máximo em até 2 anos), diminuição dos testículos; diminuição da produção de testosterona (hormônio masculino) pelo testículo; diminuição do volume de esperma ou mesmo parada da ejaculação; diminuição da fertilidade (que pode voltar ou não ao normal após interrupção), no entanto se mantiver relações sexuais com alguém que possa ficar grávida, pode haver fecundação (gravidez), fazendo-se assim necessário o uso de métodos anticoncepcionais; dificuldade de ereção, para penetração e diminuição da próstata.
Mudanças reversíveis que acontecem somente enquanto estiver usando hormônios, mas que desaparecem quando se para de tomá-los: aparecimento de celulite; redistribuição da gordura corporal com possibilidade de depósito de gordura nas coxas e quadris; ligeira redução dos pelos; afinamento da pele; diminuição das acnes (espinhas); diminuição da queda de cabelo; diminuição do suor e mudança no cheiro do corpo; diminuição da gordura no abdômen; diminuição do desejo sexual (libido); orgasmos menos intensos; agravamento de enxaquecas; aparecimento de náuseas e vômitos; aumento da pressão arterial; alteração na função do fígado e aparecimento ou agravamento de depressão.
Não ocorrerão (nem com a retirada dos testículos): desaparecimento dos pelos; afinamento da voz e diminuição do pomo de Adão.
Riscos e complicações à saúde com a terapia hormonal (o uso de hormônios aumenta a chance de ocorrer ou pode piorar estes problemas de saúde, quando aparecem): câncer de mama; trombose venosa profunda; embolia pulmonar; enfarto; derrame cerebral; osteoporose e fraturas ósseas; piora das taxas de colesterol; aumento nas taxas de triglicérides e câncer de fígado.
A/o transexual “de verdade”
É de extrema importância salientar que para conseguir todos esses procedimentos cirúrgicos e a retificação do prenome civil e do gênero nos documentos, a pessoa trans deve ser classificada pelo psicólogo e psiquiatra como um/uma “transexual de verdade”.
Leva-se em conta para isso o tempo de terapia hormonal; os testes de vida real (a/o candidata/o viver a pelo menos 2 anos, 24 horas por dia, como sendo do sexo oposto, vestindo-se, portando-se socialmente com o esperado por tal gênero); os testes de personalidade para atestarem a “transexualidade verdadeira”; exames hormonais de rotina; forte e persistente identificação com o gênero oposto por pelo mínimo 2 anos ou sentimento de inadequação no papel de gênero deste sexo; forte sofrimento psíquico por haver nascido daquele determinado sexo; repulsa aos órgãos sexuais, nojo inclusive de fazer a higiene pessoal íntima deles ao ter de tocá-los; desejos ou tentativas de mutilação e autocastração; personalidade altamente suicida, podendo inclusive já haver tentado tirar a própria vida alguma vez; falta de desejo sexual; não se masturbar por sentir asco de seus órgãos genitais; não ter vida sexual ativa, podendo, muitas vezes, até ser virgem, em suma, ter uma vida sexual assexuada; ser heterossexual.
Em crianças, a perturbação é manifestada por quatro (ou mais) dos seguintes quesitos: 1. Declarar repetidamente o desejo de ser, ou insistência de que é, do sexo oposto (em meninos, preferência pelo uso de roupas do gênero oposto ou simulação de trajes femininos; em meninas, insistência em usar apenas roupas estereotipadamente masculinas); 2. Preferências intensas e persistentes por papéis do sexo oposto em brincadeiras de faz de conta, ou fantasias persistentes acerca de ser do sexo oposto; 3. Intenso desejo de participar em jogos e passatempos estereotípicos do sexo oposto; 4. Forte preferência por companheiros do sexo oposto.
O pior do protocolo transexualizador são seus conceitos arcaicos e preconceituosos de estereótipos de gênero, afirmando que mulheres transexuais devem ser femininas; delicadas; emotivas; submissas; preferindo serviços domésticos ou na área de Humanas; e, homens transexuais como másculos; brutos; racionais; dominadores; preferência por serviços braçais, de lógica e/ou mecânica ou nas áreas de Biológicas ou Exatas.
Muitos desses critérios não são verbalizados, mas fazem partem da análise dos profissionais psicólogo e psiquiatra para atestarem favoravelmente ou não a transexualidade da/o paciente; critérios, inclusive, presentes nos testes psicológicos antiquados, preconceituosos, reforçadores de estereótipos de gênero, e, muitas vezes ridículos, dos conceitos de masculinidade/feminilidade, do que é ser um “homem de verdade”, e, consequentemente, um “homem trans de verdade” e do que é ser uma “mulher de verdade”, e, consequentemente, uma “mulher trans de verdade”.
Além desses critérios, pessoas trans que não apresentam repulsa extrema aos órgãos genitais; que não têm problemas em realizar sua higiene pessoal dos órgãos sexuais; que não possuem ou já não tentaram mutilar-se e/ou castrar-se; que não tentaram ou pensam em suicídio; que possuem desejo sexual; que se masturbam; que tem vida sexual ativa; e que não possuem orientação sexual heterossexual são classificadas/os como não sendo “transexuais de verdade” e, portanto, alijados do processo transexualizador do SUS e impedidos de realizarem os procedimentos hormonais e/ou cirúrgicos, tudo isso baseado em estereótipos ultrapassados e ridículos.
Em suma, há uma negação das individualidades e particularidades das vivências de pessoas trans e uma universalização do que seria a “transexualidade verdadeira”, gerando “as/os transexuais verdadeiras/os”.
Toda essa obrigatoriedade de ter de ser classificado/a como um/a “transexual verdadeiro/a” obriga os/as transexuais a omitirem e/ou mentirem sobre essas questões para se enquadrarem no estereótipo criado pelos psicólogos e psiquiatras, assim não perdem a vaga e podem continuar no processo para obtenção dos laudos para retificação do nome e entrada na fila para realização dos respectivos procedimentos cirúrgicos. O processo transexualizador é cruel e desumaniza as vivências transexuais ao obrigá-las a se enquadrarem em um molde arcaico, retrógrado e engessado.
O processo transexualizador do SUS disponibiliza a modalidade ambulatorial e a modalidade hospitalar em seus centros de atendimento ambulatoriais de travestis e transexuais. A modalidade ambulatorial consiste nas ações de âmbito ambulatorial, quais sejam acompanhamento clínico; acompanhamento pré e pós-operatório e hormonioterapia. A modalidade hospitalar consiste nas ações de âmbito hospitalar, quais sejam realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós-operatório. Após a CRS a/o transexual ainda deve passar, obrigatoriamente, por acompanhamento com psicólogo e psiquiatra por mais 1 ano pelo SUS.
O SUS conta com cinco serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial e hospitalar. O SUS também conta com quatro serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial. Existem na rede de saúde pública serviços ambulatoriais, criados por iniciativa estadual, destinados ao atendimento de travestis e transexuais no Processo Transexualizador: Ao final do texto há uma lista com o nome de todos esses serviços, local e contato.
Segundo o site do Ministério da Saúde, com dados de 2012, o SUS pagava R$1.113,57 pela cirurgia de neovulvocolpoplastia e os 5 centros ambulatoriais costumam fazer 12 dessas cirurgias ao ano, uma por mês. A cirurgia particular custa por volta de 50 mil reais, atualmente. Cada centro ambulatorial gastaria por volta de R$13.500,00 por ano, bem menos que o valor pago por uma única cirurgia particular.
Um breve relato…
Farei 3 breves relatos sobre como é o tratamento no ambulatório em que faço todo o processo. 1. Em março, obtive todos os laudos para entrar na fila para a CRS. Em maio, retornei e ao falar com a assistente social sobre o meu lugar na fila, ela me disse que eu não estava nela; havia o laudo do psiquiatra, mas não o da psicóloga. Procurei a secretaria administrativa e no meu prontuário faltava o laudo da psicóloga. Falando com ela, ela me disse que havia esquecido de imprimir e anexar. Já havia se passado dois meses, mas, como não era algo extremamente importante na vida dela, ela apenas se esqueceu. Após isso, adentrei à fila, que no Ambulatório de Travestis e Transexuais (TT) de São Paulo, capital, está entre 7 a 10 anos, chegando, em alguns casos, a até 12 anos. Não tenho informação sobre os outros centros ambulatoriais, mas as realidades devem ser parecidas. 2. Apesar de ser um Centro de Referência em travestilidade e transexualidade, muitos funcionários ainda acabam chamando as/os pacientes pelo nome de registro civil (não-retificado) nos documentos. Falta de treinamento/capacitação? Desatenção? Falta de respeito para com as/os pacientes? Transfobia? 3. Tive de mudar alguns dados do meu cadastro, dentre eles a minha escolaridade, já que estou na pós-graduação: Mestrado. Porém, obtive uma surpresa ao saber que no sistema de banco de dados não há tais opções: pós-graduação, Mestrado, Doutorado. Para o sistema, travestis e transexuais no máximo obtêm graduação e nem cogitam que possamos chegar a um nível superior como uma pós-graduação. Lapso do sistema? Preconceito para com a população T? Transfobia?
A transfobia mata!
Rede de serviços
O SUS conta com cinco serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial e hospitalar:
– Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás/ Goiânia (GO); Telefone: (62) 3269-8200.
– Universidade Estadual do Rio de Janeiro – Hospital Universitário Pedro Ernesto/ Rio de Janeiro (RJ); Telefone: (21) 2868-8000.
– Hospital de Clínicas de Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/ Porto Alegre (RS); Telefone: (51) 3308-6000.
– Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina FMUSP/Fundação Faculdade de Medicina MECMPAS – São Paulo (SP); Telefone: (11) 3061-7000.
– Hospital das Clínicas/Universidade Federal de Pernambuco – Recife (PE); Telefone: (81) 2126-3633.
O SUS também conta com quatro serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador que realizam atendimento ambulatorial:
– Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) – Rio de Janeiro/RJ; Telefone: (21) 2332-7159.
– Ambulatório do Hospital das Clínicas de Uberlândia – Uberlândia/MG; Telefone: (34) 3218-2111.
– Centro de Referência e Treinamento (CRT) DST/AIDS – São Paulo/SP; Telefone: (11) 5087-9911.
– Centro de Pesquisa e Atendimento para Travestis e Transexuais (CPATT) do Centro Regional de Especialidades (CRE) / Metropolitano – Curitiba/PR; Telefone: (41) 3304-7567.
Existem na rede de saúde pública serviços ambulatoriais, criados por iniciativa estadual, destinados ao atendimento de travestis e transexuais no Processo Transexualizador:
– Ambulatório AMTIGOS do Hospital das Clínicas de São Paulo – São Paulo (SP); Agendamento de triagem somente pelo e-mail: [email protected].
– Ambulatório para travestis e transexuais do Hospital Clementino Fraga – João Pessoa (PB); Telefones: (83) 3218-5415 e (83) 3218-5416.
– Ambulatório Transexualizador da Unidade de Referência Especializada em Doenças Infecto-Parasitárias e Especiais (UREDIPE) – Belém (PA); Telefone: (91) 3244-5364.
– Ambulatório de Saúde Integral Trans do Hospital Universitário da Federal de Sergipe Campus Lagarto – Lagarto (SE); Telefone: (79) 3632-2082.
Leia o 1º artigo: Recortes, conceitos e diferenciação entre as travestis e as mulheres transexuais
Frida Pascio Monteiro é ativista trans, mestranda em Educação Sexual e militante do PSTU de Fernandópolis (SP)