Publicado originalmente no site da LIT-QI
MIT-Chile
A resposta a essa pregunta não é simples, mas podemos começar por alguns dados eleitorais, que podem nos ajudar a entender o que aconteceu.
Os primeiros derrotados das eleições foram os partidos que governaram o país nos últimos 30 anos. As candidaturas da direita e da ex-Concertação obtiveram o quarto e quinto lugares nestas eleições. No primeiro turno das eleições presidenciais de 2017, essas duas coalizões tiveram 3,9 milhões de votos. Nas eleições atuais, a votação de Yasna Provoste e Sebastián Sichel somadas foi de 1,7 milhão. Ou seja, os dois blocos juntos perderam mais de 2 milhões de votos.
Por outro lado, irrompem com força dois “novos” blocos políticos: a Frente Social Cristã, representada na figura de José Antonio Kast, e Aprovo Dignidade (Frente Ampla, Partido Comunista e outros) representado por Boric. O terceiro mais votado, Parisi, do Partido de la Gente, fez uma campanha inédita, totalmente virtual, a partir dos Estados Unidos, por não poder entrar no país devido a um problema com a justiça pelo não pagamento de pensões alimentícias.
José Antonio Kast teve pouco mais de 1,9 milhão de votos (27,9%), 500 mil votos a menos que Piñera em 2017 e 300 mil votos a mais que o “Rechaço” no último Plebiscito. Evidentemente, muitos do “Rechaço” também votaram em Sichel, que teve quase 900 mil votos, e provavelmente em Parisi. A “direita” em 2017 (Piñera e Kast) teve 2,9 milhões de votos no primeiro turno. Nas eleições atuais, Kast e Sichel tiveram 2,8 milhões. Sem dúvida, o voto pela direita hoje é mais político que em 2017, quando muitos trabalhadores votaram em Piñera porque prometia mais empregos.
O voto em Kast expressa uma maior polarização social, uma relocalização do voto “conservador”. Kast conseguiu expressar o temor que setores da sociedade têm contra o “comunismo”, a “delinquência”, “o terrorismo mapuche” e o “ataque às tradições”. A votação de Kast também teve um caráter regional importante. O candidato ganhou na maioria das regiões do sul, com exceção de Punta Arenas. Na capital, Kast perdeu para Boric em quase todas as comunas, salvo nas 5 comunas mais ricas (Lo Barnechea, Vitacura, Las Condes, La Reina e Providencia). Em algumas das comunas mais combativas e populares, como Puente Alto ou Maipú, Kast perdeu por ampla margem (Puente Alto: 51.800 por Boric e 26.500 por Kast; Maipú: Boric 76.000, Kast 42.000).1
A vitória parcial de Kast também expressa a hegemonia de um projeto político da direita (que vem ganhando cada vez mais apoio dos grandes empresários): ir fechando completamente o espaço para reformas (econômicas e democráticas) e apostar no desgaste e desmoralização da Convenção Constituinte para vencer o referendo para ratificar a Constituinte em 2022.
Por outro lado, Boric não obteve um grande resultado eleitoral. Sua votação foi um pouco superior à votação das primárias de sua coalizão (passou de 1,7 milhões para 1,8 milhões). Aqui também temos que abrir um parêntese, já que nas primárias seguramente Boric teve votos dos eleitores tradicionais da ex-Concertação, e inclusive da direita para vencer o ex-candidato do PC, Daniel Jadue.
Um dos elementos que explica a baixa votação de Boric é que este não é um candidato que representa a maioria do enorme movimento social que explodiu em 18 de outubro de 2019. E mais, Boric colocou-se contra ele em vários momentos, por exemplo, quando votou a favor da Lei Antibarricadas e promoveu o Acordo pela Paz, que garantiu a impunidade a Piñera e aos responsáveis pela guerra ao povo. Boric também não é um candidato com enraizamento popular nem operário e não foi uma das figuras do processo revolucionário. Isto fez com que muitos ativistas, povo pobre, trabalhadores/as e jovens não fossem votar ou votaram em outras candidaturas (como a de Parisi, que teve uma expressiva votação, principalmente no norte do país e na classe operária). Parisi conseguiu capitalizar uma parte importante do descontentamento com a política tradicional e também com o modelo econômico.
A participação eleitoral foi em torno de 46,7%, uma votação que não supera com muita diferença as tradicionais eleições presidenciais. Não houve um grande entusiasmo pelas eleições atuais. A baixa participação afeta principalmente as comunas populares e rurais. Nas comunas burguesas a participação superou 50% ou 60%.
O primeiro passo para entender os resultados eleitorais é compreender que as eleições não são um espelho da realidade. São a realidade distorcida. O peso do poder econômico, dos meios de comunicação (que estão nas mãos das famílias mais poderosas do país) e as regras do sistema eleitoral geram uma baixa participação da população e muitas distorções na representação da “vontade popular”. O sistema democrático burguês é feito sob medida para os poderosos.
O próximo Congresso Nacional
A prova dessa “falsa” representação popular é o Congresso. Como é possível entender que as mesmas forças políticas que governaram o país nos últimos 30 anos são a maioria no Novo Congresso? Aqui fica ainda mais evidente a distorção do “sistema democrático”, que privilegia os candidatos de partidos políticos tradicionais, não dá espaço para os independentes e onde se expressa um enorme peso dos candidatos com alto financiamento e presença midiática. A crise da Lista do Povo, com os escândalos de Diego Ancalao e Pelao Vade, também contribuiu para a falta de uma alternativa que expressasse de forma mais direta o movimento de massas.
A composição do próximo Congresso (Senado e Câmara) é nefasta para o povo e para a classe trabalhadora. Não podemos ter nenhuma confiança nesse Congresso. A única possibilidade de conquistar mudanças ou reformas está na pressão e mobilização das e dos trabalhadores nas ruas, como já ficou demonstrado com as retiradas das AFPs e a conquista do Processo Constituinte. O grande resultado das eleições para o Congresso é a entrada de Fabiola Campillai, ativista em situação de incapacidade pela repressão estatal, que teve a impressionante cifra de 402 mil votos, ganhando a primeira maioria na capital e superando resultados de listas completas de partidos políticos.
Como interpretar os resultados? Revolução e contrarrevolução no Chile
Desde o 18 de outubro de 2019, argumentamos que no Chile abriu-se um processo revolucionário. Isso porque as massas trabalhadoras e a juventude tomaram as ruas de todo o país questionando tudo: as instituições, a desigualdade, a falta de direitos, o abuso empresarial, a destruição da natureza, ou seja, o conjunto do modelo econômico, social e político. Esse movimento ficou imortalizado na consigna “Não são 30 pesos, são 30 anos”. Esse enorme movimento também foi acompanhado pela violência de massas, principalmente a autodefesa contra as Forças Policiais. As massas respaldaram a violência contra o aparato estatal repressor. Todos os acontecimentos do país começaram a girar em torno da ação de massas nas ruas. Por isso dizemos que se abriu uma revolução no Chile.
Entretanto, em uma revolução não existe só o campo revolucionário. Nenhuma revolução é um processo ininterrupto de ações de massas que vão arrancando conquistas e conquistas. Isso porque os inimigos do povo também se reorganizam, fazem propaganda, reproduzem mentiras, reprimem, negociam com os partidos políticos, etc.
Desde o 15 de novembro de 2019 (a negociação que deu origem ao Processo Constituinte) as principais forças políticas do país (da direita à esquerda, incluídos a FA e o PC) concordaram em tentar canalizar o processo revolucionário atual pela via dos acordos, das negociações, das mudanças graduais, sem por em risco o conjunto da institucionalidade e o modelo econômico. Por isso, mantiveram o governo de Piñera e estabeleceram limites muito estreitos à atual Convenção Constitucional (não poder mudar os Tratados de Livre Comércio, ter que aprovar as normas constitucionais por ⅔ dos constituintes, etc.)
O que se expressou nas eleições do último domingo, foi um primeiro fracasso dos que apostaram nessa via da negociação. Por um lado, o candidato que defende fechar o processo revolucionário através da força foi o mais votado. Conseguiu canalizar todo o temor do setor mais conservador e privilegiado da sociedade, derrotando o setor mais “centrista” da direita. Por outro, o candidato dos acordos e negociações (que reproduz a mesma lógica dos últimos 30 anos), Boric, foi castigado, já que não conseguiu mobilizar o voto popular, da imensa juventude, do povo pobre e da classe operária. O pacto de 15 de novembro entra em sua primeira crise importante e o futuro está aberto.
Até agora não surgiu nenhuma força popular e operária que pudesse apresentar um projeto alternativo que levasse a fundo o questionamento ao capitalismo neoliberal chileno. Existe uma enorme crise de direção no movimento que se iniciou em 18 de outubro. A rápida e profunda crise da Lista do Povo também contribuiu para a falta de uma alternativa eleitoral que a classe trabalhadora pudesse identificar como sua. Por esses elementos é que a burguesia consegue reorganizar-se, a partir de seu setor mais reacionário, e as forças que defendem o pacto de 15 de novembro não conseguem satisfazer as necessidades populares e agora estão sendo castigadas, embora ainda seja possível que Boric ganhe no segundo turno.
Os projetos apresentados
Kast e Boric representam projetos distintos. Não são a mesma coisa, embora no fundo ambos defendam o sistema capitalista. Kast defende aprofundar tudo o que existe hoje. Segundo ele e seus apoiadores, tudo está bem e os milhões que foram às ruas estão equivocados ou são delinquentes. Não sabemos reconhecer as maravilhas do Chile “desenvolvido” e “moderno” que existe hoje. O senhor Kast não tem ideia do que os trabalhadores vivem, porque faz parte da elite deste país e não tem nenhum dos problemas que nós trabalhadores sofremos: os salários miseráveis, as longas jornadas de trabalho, o amontoamento habitacional e um longo etc.
Kast quer aprofundar o capitalismo neoliberal chileno. Manter o sistema de AFPs e o roubo das aposentadorias das e dos trabalhadores. Quer manter a precarização do trabalho do atual Código Trabalhista, elaborado pelo seu mestre José Piñera e implementado pela ditadura. Propõe aprofundar o “extrativismo”, ou seja, a produção de produtos primários e pouco industrializados para exportação. Já conhecemos todas as consequências desse modelo: enorme destruição ambiental, seca em regiões inteiras, contaminação das comunidades, emprego precário, impossibilidade de desenvolvimento científico e tecnológico e um longo etc. E tudo isso para que os empresários nacionais e estrangeiros continuem se enriquecendo, saqueando os produtos do nosso trabalho, nossa terra e mar. Em relação à principal riqueza do país, o cobre, Kast vai ainda mais longe e propõe privatizar o pouco que ainda está nas mãos do Estado, a empresa estatal Codelco. Sua proposta de privatização da Codelco vai no sentido contrário do que o país precisa. Enquanto a maioria do povo exige mais direitos na Nova Constituição, Kast quer acabar de entregar a riqueza que permitiria financiar moradia, saúde e educação.
Além disso, suas propostas relacionadas às mulheres e à população LGBTI são um enorme retrocesso em relação aos poucos direitos em que se avançou. Propõe acabar com o direito ao aborto nas três circunstâncias (as aprovadas em 2017, ndt,), obrigando as mulheres a terem filhos inclusive nas piores condições. Quer fazer retroceder os direitos da população LGBTI e aprofundar a discriminação contra a diversidade sexual.
E, por último, quer acabar com toda possibilidade de mudanças que se abriram com a Convenção Constitucional. Sua resposta às demandas populares é: piorar a vida do povo e se alguém reclamar, colocar a polícia e os militares para reprimir. Como bom herdeiro de Pinochet, quer perseguir os ativistas sociais e prendê-los, aprofundando a perseguição estatal que já existe hoje contra os mapuches, a juventude e a classe trabalhadora que se organiza.
Por isso chamamos a classe trabalhadora e a juventude a não votar em Kast e, além disso, combater essa candidatura. É fundamental que enfrentemos as propostas reacionárias de Kast e o grande empresariado com mobilizações e também com o voto contra Kast no segundo turno.
Embora Kast tenha um projeto autoritário e nefasto para a maioria da população, não opinamos que Kast represente hoje um movimento fascista. O conceito de “fascismo” está muito banalizado entre o ativismo e em geral é utilizado como sinônimo de autoritarismo. Entretanto, autoritarismo e fascismo são coisas distintas. O fascismo foi um movimento muito reacionário, financiado pelo grande capital que se apoiava em setores mobilizados e militarizados do lúmpen e da pequena burguesia empobrecida, que utilizavam métodos de guerra civil para acabar com as organizações populares e operárias. Isso gerou o esmagamento do movimento popular e operário na Itália de Mussolini e na Alemanha nazista. Partidos ou movimentos próximos a Kast podem ter embriões de fascismo, mas esses elementos ainda estão para serem desenvolvidos. Hoje inclusive Kast tenta fazer um movimento para o centro, moderando parte de seu discurso para disputar o voto de setores “democráticos” da sociedade. Isto não significa que Kast não seja muito perigoso e que seu governo não será mais repressor que o governo de Piñera. Entretanto, devemos entender quem é o inimigo para poder enfrentá-lo.
E aqui entra outra discussão: como enfrentamos Kast? É suficiente votar em Boric e ficarmos tranquilos?
No segundo turno, propomos votar em Boric para que Kast não chegue à presidência. Entretanto, não devemos ter nenhuma confiança no projeto de Boric e Aprovo Dignidade, porque sua estratégia conduz à derrota do enorme movimento iniciado em outubro de 2019.
Boric tem um programa de reformas com vários pontos progressistas que vem do movimento social e popular: o fim das AFPs, o aumento das aposentadorias, a redução da jornada de trabalho, o direito ao aborto, etc. Entretanto, o maior problema de Boric é a estratégia de seu bloco. Boric, a Frente Ampla e o Partido Comunista afirmam que é possível conquistar reformas para a classe trabalhadora, negociando com o grande empresariado e respeitando a institucionalidade atual, que está totalmente a serviço dos donos do país (Congresso, Justiça, etc). Querem nos fazer acreditar que é possível transformar o Chile, resolver o conflito mapuche, os problemas de emprego e ambientais através de reformas negociadas com o grande empresariado. Kast critica Boric e o PC por serem comunistas. Nada mais distante da realidade. Boric e o Partido Comunista são reformistas e suas propostas estão totalmente dentro dos marcos do capitalismo: cobrar mais impostos dos ricos para financiar direitos sociais.
Essa estratégia já fracassou com a ex-Concertação e vai fracassar novamente. Como Boric pretende aprovar suas reformas no Congresso atual? Como a Frente Ampla propõe escrever uma Constituição que mude profundamente o país se terá que negociar com a direita e com a ex Concertação para chegar aos ⅔ dos votos? Como se propõe mudar o modelo extrativista respeitando os Tratados de Livre Comércio que não permitem nenhum grau de soberania nacional?
O giro à direita de Boric é cada vez mais evidente. Nos últimos dias, Boric fez discursos típicos de candidatos da direita, dizendo que terá mão pesada contra o narcotráfico e questionando a libertação dos presos políticos. Além disso, incorporou em seus comandos figuras de peso da ex Concertação. Tudo isso para agradar o grande empresariado e mostrar que pode garantir a “governabilidade”.
Então, por que chamamos a votar em Boric?
Porque acreditamos que a vitória de Kast significaria uma vitória do grande empresariado e nos colocaria num cenário pior para as futuras lutas da classe trabalhadora e do povo. Uma vitória de Boric poderia gerar um maior movimento social que pressione o governo para que cumpra suas promessas e para arrancar mais conquistas para a classe trabalhadora, apesar da estratégia do PC e da FA.
É necessário construir um novo projeto para a classe trabalhadora e os povos
Nas eleições atuais, não há um candidato que represente os interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora. Os povos do Chile, a juventude e a classe operária devem construir um projeto de mudança radical do sistema capitalista neoliberal, que proponha uma estratégia para derrotar o grande empresariado e colocar as riquezas do país a serviço da enorme maioria da população e da recuperação da natureza. O Chile pode ser um exemplo para todo o mundo na libertação do sistema capitalista.
Os povos que vivem no Chile e em Wallmapu devem elaborar um programa que passe pela recuperação das principais riquezas do país, para que tudo isso seja administrado pela classe trabalhadora e pelos povos organizados. Isto passa por nacionalizar todas as grandes empresas estratégicas do país, que hoje são as que garantem os lucros a um punhado de grandes empresários. É necessário nacionalizar a grande mineração do cobre, lítio, as grandes empresas florestais, as AFPs e os bancos. Tudo isso deve ser colocado a serviço da classe trabalhadora e do povo para que se possa planificar a economia de acordo com as necessidades dos povos e da recuperação da natureza. É necessário acabar com o saque extrativista de nosso país, frear a exploração irracional dos bens minerais, das florestas, dos mares. Devemos frear os grandes projetos extrativistas e diversificar a economia em harmonia com a natureza, da qual somos parte.
É por isso que com nossa companheira María Rivera e diversas organizações sindicais e sociais apresentaremos um projeto para que a Nova Constituição nacionalize o cobre, o lítio e a água, como um primeiro passo na recuperação de todas as riquezas do país. Sabemos que a maioria dos partidos políticos na Constituinte não defende esse projeto, já que estão a serviço das grandes transnacionais. Por isso, acreditamos que seja necessário gerar um grande movimento operário e popular para que os constituintes e o Estado respeitem a vontade do povo.
Para enfrentar Kast (ou inclusive Boric) é necessário que a classe trabalhadora retome o caminho da organização e mobilização. É necessário reconstruir as assembleias territoriais, recuperar os sindicatos para as mãos das e dos trabalhadores, fortalecer as organizações de mulheres, diversidade sexual e juventude. Ir votar em 19 de dezembro é parte dessa luta, mas não é a parte mais central.
Nós do MIT (Movimento Internacional dos Trabalhadores) estamos a serviço de organizar a classe trabalhadora e a juventude para lutar contra Kast e contra todos os governos capitalistas. Essas lutas devem ter um objetivo final: a construção de uma sociedade livre da exploração, desigualdade e opressão. Convidamos todas e todos os lutadores sociais a conhecer o MIT e contribuir nesta construção.
Tradução: Lilian Enck