PSTU-SP

Fabiola Valdambrini e Marisa Mendes, da Secretaria  Regional de Mulheres do PSTU  São Paulo- Centro

No último final de semana o país ficou estarrecido com o caso de uma menina de 10 anos grávida vítima de estupro. A violência foi descoberta no dia 8 de agosto em São Mateus, no Espírito Santo quando, em razão de dores abdominais, a menina foi levada ao hospital e exames constataram a gravidez.

A criança, que reside com a avó, contou que era estuprada pelo tio desde os 6 anos de idade. Um boletim de ocorrência foi registado e a polícia expediu mandado de prisão preventiva contra o agressor, que estava foragido e só foi preso nessa terça-feira (18).

O caso veio à tona após a Ministra da Mulher, Damares Alves, ter divulgado o estupro em suas redes sociais, afirmando que sua equipe estava sendo acionada para entrar em contato com as autoridades do local para “acompanhar o processo criminal até o fim”. Sabemos que por se tratar de estupro de vulnerável, tudo deveria ter corrido em sigilo absoluto e ficado no âmbito da saúde, uma vez que casos semelhantes não são submetidos à justiça, tampouco divulgados na mídia, o que não aconteceu nesse caso.

Muito embora no Brasil a interrupção da gravidez em casos de estupro seja assegurada por lei, não dependendo de medida judicial e permitindo que o procedimento seja realizado por meio do serviço público de saúde, há que ser respeitada a proteção integral das crianças e adolescentes como consta no Estatuto da Criança e Adolescentes, contudo essa garantia legal não foi cumprida. Mesmo com a gestação avançada e os riscos para a vida da menina, os órgãos competentes condicionaram o aborto à determinação judicial.

Violações sistemáticas, exposição criminosa e sensacionalismo

Não bastasse a Secretaria de Saúde não ter oferecido atendimento adequado à vítima, uma vez que o procedimento para interrupção da gravidez deveria ter sido realizado com a simples concordância do responsável, já que é um direito da vítima e não há necessidade sequer de boletim de ocorrência, de acordo com a imprensa, a menina chorava muito e entrava em desespero somente em ser perguntada sobre o desejo de dar continuidade à gravidez. Para piorar ainda mais a situação, a mesma ainda foi encaminhada para um abrigo enquanto o caso ficou sob análise do Tribunal de Justiça do Espírito Santo, prolongando e provocando ainda mais sofrimento à vítima, já que a decisão autorizando a realização do aborto só foi proferida na sexta-feira, dia 14.

Além disso, após a sentença judicial a criança chegou a ser internada no hospital de Vitória, mas a equipe do Programa de Atendimento às Vítimas de Violência Sexual (PAVIVI) se recusou a realizar o procedimento, alegando que não possui protocolo instituído para tais casos. Diante da negativa, a menina teve que ser transferida de estado para realização do aborto.

Contudo, na data em que a interrupção da gravidez seria realizada, a ativista de extrema-direita e ex-funcionária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Sara Giromini, investigada no inquérito que apura fake news e atos antidemocráticos, e que chegou a ser presa, veio a público através das redes sociais e divulgou indiscriminadamente a identidade da vítima e o nome do hospital onde estava internada, bem como do médico que realizaria o procedimento.

Até o momento não se sabe como Sara Winter, como é conhecida, obteve os dados da menina e os detalhes de onde seria atendida, mas o fato é que ao divulgar publicamente, não apenas violou a Constituição Federal, que em seu artigo 227 prevê que crianças e adolescentes são prioridade absoluta e devem ser protegidos pela família, pela sociedade e pelo Estado, mas também o Estatuto da Criança e do Adolescente. Afrontou ainda, a Declaração Universal dos Direitos da Criança da ONU, da qual o Brasil é signatário, que reitera com mais força que nenhuma criança pode ter seu nome mencionado sem autorização dos pais. Do ponto de vista de Direitos Humanos também houve violação, haja vista que estes são consagrados internacionalmente pela essência da Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo primado básico é a integridade.

Não satisfeita, a apoiadora de Bolsonaro incitou grupos de fundamentalistas religiosos, políticos ligados a partidos conservadores e apoiadores do governo federal, que compareceram ao hospital na tentativa de impedir o procedimento. Ocorreu aglomeração e tentativa de invasão ao hospital, também agressão aos profissionais. Proferiram palavras contra uma criança de 10 anos que foi vítima de estupro, chamando-a de assassina, assim como contra o médico responsável pela equipe que a atenderia, culpabilizando a vítima ao invés de cobrarem a prisão e punição do estuprador.

Não foi um caso isolado

Embora essa situação venha sendo tratada como um caso isolado, a realidade é bem diferente. De acordo com dados oficiais, o Brasil registra em média seis internações diárias para aborto de meninas entre 10 e 14 anos vítimas de estupro. Desde 2008, foram registrados quase 32 mil abortos envolvendo garotas dessa faixa etária, sendo que somente em 2020 foram ao menos 642 internações. Se forem consideradas as 20 mil internações nas quais constam dados de raça ou cor de pele, 13,2 mil envolviam meninas pardas (66%) e 5,6 mil, de brancas (28%). Esses dados incluem abortos realizados por razões médicas, espontâneos e de outros tipos.

Não é para menos – conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019 – por hora 4 meninas de até 13 anos são estupradas no país, mais da metade das vítimas de estupro são meninas de até 13 anos, e a maioria absoluta dos estupradores são conhecidos das vítimas.

Se por um lado esses números inaceitáveis evidenciam a naturalização do machismo e uma cultura do estupro, por outro, demonstram também a necessidade de políticas públicas e investimento consequente para preservar meninas e mulheres. Nenhuma menina pode ser a próxima vítima!

Lamentavelmente, o empenho da Ministra Damares em divulgar o caso nas redes sociais e pressionar a criança para seguir até o fim com a gravidez, não é visto quando se trata de investir mais recursos para o atendimento das vítimas de violência. Pelo contrário, o Estado não tem essa mesma dedicação no sentido de investir mais recursos para o atendimento das vítimas de violência, expandindo os serviços para as mulheres e crianças que são cotidianamente violentadas. O que temos visto são cortes sucessivos de verbas para o combate à violência por parte do governo Bolsonaro, ao mesmo tempo que seu discurso machista perpetua a violência.

Em 2019 o governo não investiu nenhum centavo para os serviços de assistência às vítimas, e este ano, menos de 10 % do valor destinado à pasta foi utilizado, mesmo com os números crescentes de violência.

Já os setores de ultradireita que apoiam o projeto genocida de Bolsonaro e se manifestam contra uma menina de 10 anos, fecham os olhos e se calam para a falta de investimento desse governo em políticas de combate à violência contra as mulheres e meninas.

Aborto é questão de saúde pública

Esse caso lança luz também sobre outra questão, no Brasil milhares de mulheres são obrigadas a recorrer ao aborto clandestino todos os anos, e acabam morrendo ou ficam com sequelas graves, além de traumas, síndromes e sequelas psicológicas que podem ser desenvolvidos. Entre 2008 e 2017 cerca de 2,8 milhões de mulheres foram internadas com complicações por conta da prática clandestina de aborto, sendo a quarta causa de morte materna em nosso país.

Essa é a realidade de muitas mulheres e adolescentes da classe trabalhadora, das desempregadas, das negras, das que vivem na periferia, mas não das burguesas e da alta classe média que podem recorrer à clínicas caríssimas ou viajar para países onde o procedimento é legalizado, ou seja, para as mulheres ricas que tem dinheiro para pagar, o aborto é legal.

A maioria das mulheres que recorrem ao aborto tem religião, são casadas e tem outros filhos, ou seja, o inverso do estereótipo da chamada mulher promíscua ou de comportamento irresponsável que setores contrários à legalização do aborto falsamente propagam.

Não podemos permitir a hipocrisia e que preceitos morais e religiosos como vimos neste caso estejam acima da vida e da saúde das mulheres trabalhadoras. As leis e políticas públicas devem servir a toda população, por isso é que defendemos a descriminalização e legalização do aborto, e que seja tratado como questão de saúde pública.

No entanto o que estamos assistindo é que mesmo em casos em que o aborto é legal, como gravidez resultante de estupro, risco à vida da mulher e de fetos anencéfalos (que não desenvolveram o cérebro), as mulheres continuam sendo oprimidas, criminalizadas e tendo seus direitos violados. Muitas vezes ficam submetidas à repetição da situação do abuso pelo qual passaram, são maltratadas por profissionais de saúde, são cobradas a cumprir exigências ilegais, como ter o boletim de ocorrência ou determinação judicial para realizarem o procedimento.

Enquanto nos serviços públicos, predomina a desinformação e a intolerância, combinadas com a falta de investimento e sucateamento dos serviços, pois, conforme levantamento da organização Artigo 19 em parceria com a revista Azmina, e Gênero e Número, aponta que no Brasil apenas 55% dos hospitais que atendem mulheres vítimas de violência para realização do aborto legal estão em funcionamento durante o período da pandemia. Vale destacar que essa restrição de acesso ao atendimento vem se arrastando desde antes da pandemia, em 2019, dos 176 hospitais que constavam na lista de aptos a realizar o atendimento, apenas 76 estavam funcionando.

Punição

Junto com a punição do agressor, tio da menina que foi preso nesta terça-feira, é flagrante e urgente que as circunstâncias que envolvem esse caso sejam severamente investigadas, e todos os responsáveis pelas sistemáticas violações de direitos da garota também sejam responsabilizados.

Diante de todos estes fatos, queremos saber por que dois hospitais se recusaram a realizar um procedimento que é garantido por lei, sendo que um deles, mesmo depois da determinação judicial obrigou a menina a ter que viajar a outro estado para realizar o aborto. Queremos saber por qual motivo a justiça foi acionada, apesar do aborto em caso de estupro não necessitar de decisão judicial; também saber como as informações da criança foram vazadas dos órgãos públicos.

Exigimos também a prisão de Sara Winter, que propositalmente divulgou os dados, incitou pessoas e violou as garantias básicas para preservação da vida de uma criança de 10 anos.

É pela vida das mulheres

Vivemos em plena pandemia de Covid-19 que já matou mais de 110 mil pessoas, na sua maioria trabalhadores e trabalhadoras que moram na periferia. Situação que é agravada pela profunda crise econômica, que é aproveitada pelos governos para despejar a crise do capitalismo em cima da classe trabalhadora no país e no mundo.

A combinação da pandemia com a crise econômica tem aprofundado as mazelas do capitalismo no país e no mundo, sendo que os setores oprimidos da classe trabalhadora são os mais penalizados. Aumentaram os casos de violência doméstica e feminicídios; as mulheres são as mais afetadas com as demissões e aumento da miséria; as empregadas domésticas, em sua maioria mulheres negras, são obrigadas a seguir trabalhando para manter o conforto da burguesia racista e parasita; dentro de casa também aumenta a jornada de trabalho com o cuidado com as crianças e os serviços de limpeza; a população LGBT também enfrenta a violência e a opressão dentro de casa.

Mas o capitalismo que é impiedoso com a classe trabalhadora, com as vítimas de violência e o povo pobre da periferia, é benevolente com os lucros da burguesia que nos explora e que ficou mais rica durante a pandemia. Isso é o que tem feito o governo Bolsonaro, unindo ataques aos nossos direitos a um discurso de ódio a mulheres, negros e negras, imigrantes, LGBTs.

O sistema capitalista combina de uma forma muito nefasta a exploração e a opressão, tornando a vida da classe trabalhadora e dos setores oprimidos cada vez mais miserável e insuportável, por isso precisamos de uma sociedade socialista que acabe com a opressão e a exploração, que acabe com a desigualdade social para que tenhamos uma vida digna e plena.

É pela vida das mulheres que reafirmamos que a descriminalização e legalização do aborto é uma luta de toda a classe trabalhadora. Mulheres e homens que sofrem com a exploração e a opressão devem estar em união para acabar de vez com essa sociedade que discrimina, explora e ataca nossos direitos.

  • Todo apoio e solidariedade a essa menina e a todas as vítimas da violência contra a mulher e crianças!
  • Punição ao agressor e a todos agressores!
  • Punição para quem vazou as informações sigilosas!
  • Prisão para Sarah Winter por divulgar a identidade na menina e incitar a violência contra a vítima!
  • Educação sexual laica para decidir, anticoncepcionais para não abortar!
  • Aborto legal, seguro e gratuito para não morrer!
  • Descriminalização e Legalização do aborto!
  • Fora Bolsonaro, Mourão e Damares!
  • Por uma sociedade socialista sem exploração e opressão!