No dia 1º de julho completaram-se 15 anos do lançamento do Plano Real. Implementado sob o então governo Itamar Franco, com o comando do Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, o plano de estabilização econômica é hoje, praticamente, uma unanimidade entre a direita e a esquerda institucionalizada que ocupa o atual governo.

O plano é visto como a mais bem sucedida medida que já se teve notícia para derrotar a inflação. O PT, que na época denunciou o plano, não tem maiores problemas em reconhecer hoje as conquistas do Real. A imprensa, por sua vez, comemora com entusiasmo o debute do plano, dedicando longas páginas e reportagens à nova moeda que, supostamente, teria feito o Brasil vencer uma inflação crônica de três décadas e se integrar, definitivamente, à era da globalização.

A construção da imagem do Real
O Plano Real, após um ano de preparação, entrou em pleno vigor em julho de 1994. Sob supervisão de FHC, ele foi concebido por economistas da PUC-RJ, o centro ideológico do pensamento neoliberal no Brasil. Logo vendido pela imprensa como uma intrincada obra da mais avançada arquitetura monetária, pouco se explicou sobre os mecanismos que o embasavam.

Para a população, tratava-se tão somente da mudança do então Cruzeiro Real para o Real. Para isso, usava-se uma mediação, a tal URV (Unidade Real de Valor), fixada em CR$ 2.750,00 em julho daquele ano, que valeria, por sua vez, 1 real.

A mudança da moeda teve de imediato um efeito psicológico tremendo. Uma compra na padaria da esquina, que custaria alguns milhares de Cruzeiros Reais, poderia ser feita agora com apenas algumas moedas. Com a ajuda da mídia, criou-se a percepção que o poder aquisitivo aumentava, na medida em que a inflação, uma constante em toda uma geração, tinha uma drástica redução.

Inflação
Se nos anos 1970 a inflação era em parte compensada com o vertiginoso crescimento econômico pelo qual o Brasil passava, na década seguinte ela se aprofundava, mas num cenário de estagnação. A explosão da dívida pública, o fim do financiamento externo provocado pela crise internacional no período e a consequente crise fiscal detonaram uma hiperinflação, processo que afligiu toda a América Latina.

Durante os anos 1980, os esforços do governo se resumiam a, através das exportações, conseguir divisas (dólares) para pagar a dívida externa. A inflação reflete a detoriação da economia e uma moeda que já não serve mais como reserva de valor. Isso porque o valor de determinada moeda é baseado na confiança, tanto na economia quanto no Estado. A desagregação de ambos começa a corroer a ilusão coletiva depositada na moeda, processo que causa sua desvalorização.

Quem não viveu essa época, possivelmente já ouviu falar das histórias sobre a hiperinflação. Guardar dinheiro, o mínimo de tempo que fosse, significava perder dinheiro. Alguém que não quisesse ter prejuízo passava então a qualquer outro ativo, ou seja, tratava logo de comprar alguma coisa que não se desvalorizasse. Podia ser imóvel, um carro ou ouro. O importante era não ficar com dinheiro na mão.

O neoliberalismo aporta no Brasil
Em 1989, Collor é eleito presidente na primeira eleição presidencial direta após a ditadura. O período marca o início da era neoliberal. Para combater a inflação, o governo abre as fronteiras comerciais para que a concorrência estrangeira discipline o empresariado nacional.

A concorrência deveria forçar a indústria nacional a ser mais produtiva, racional e moderna. Já o Estado, considerado perdulário, sofre um brutal choque fiscal. No auge de sua desastrosa política antiinflacionária, Collor decreta o confisco da poupança. Foi o principal fato que desencadeou mais tarde o movimento de impeachment de Collor.

De fundo, o que ocorria era a inserção do país na economia globalizada. Um eufemismo para a submissão do país ao chamado neoliberalismo. Se antes o sistema de dominação do Brasil e demais países periféricos baseava-se principalmente na armadilha da dívida externa, agora a configuração da economia mundial e a necessidade de os países imperialistas escoarem seus produtos e capitais forçava a abertura indiscriminada das fronteiras comerciais.

Para viabilizar o lucro do capital internacional e dos investimentos estrangeiros, porém, era necessário acabar com a inflação e conferir maior confiança à moeda, ou seja, estabilizar a economia. A garantia do Real foi o financiamento externo para formar uma reserva em dólares que viabilizassem o lucro dos investimentos. Desta forma, a âncora que garantia a confiança da moeda eram os investimentos, muito deles especulativos.

A valorização do Real frente ao dólar, por sua vez, abria as portas para a enxurrada de importados, ao mesmo tempo em que prejudicava as exportações. Foi adotado o regime do câmbio fixo. Sem ter como conseguir divisas com a balança comercial, porém, o país tornava-se cada vez mais dependente do capital especulativo. O governo aumentava os juros para atrair esses capitais via títulos da dívida, e punha em marcha o programa de privatizações, desfazendo-se das estatais para atrair dólares e equilibrar as contas externas.

Na prática, o câmbio fixo foi uma semidolarização da economia. Esse processo mostra o grau de dependência do país frente aos EUA, uma vez que a moeda é, no capitalismo, um dos principais elementos de identidade de uma nação. Na Argentina, essa política foi mais radical e chegou a ser colocado na Constituição a paridade cambial de um peso para um dólar. O resultado, todos conhecemos.

Governo FHC, “pai” do Real
A estabilização dos preços possibilitou à mídia, subordinada ao grande capital financeiro, realizar uma massiva campanha em favor do Plano Real e de Fernando Henrique Cardoso, o “pai” do Real. Foi desta forma que FHC venceu as eleições de 1994 e se reelegeu quatro anos depois, apesar dos efeitos nefastos sobre a economia nacional, com a destruição de setores inteiros, o aumento do desemprego, o desmantelamento do Estado e as privatizações.

Como consequência, a dívida pública explodiu. Em 1994, representava 32,5% do PIB. Em 1998, já tinha pulado para 37,8%. Em 2002, representava 57% do valor de tudo o que o país produzia em um ano. Nem mesmo as privatizações e os juros exorbitantes foram suficientes para abastecer o país com divisas, fazendo o governo recorrer a sucessivos acordos com o FMI. Os empréstimos do fundo vinham com a contrapartida da exigência de um rigoroso ajuste fiscal e metas de superávit primário.

Efeitos
A abertura comercial, redução das tarifas de importação e o câmbio valorizado provocaram uma enxurrada de importados, afetando a indústria e causando desemprego. Em 1994, a taxa de desemprego nas regiões metropolitanas era de 5,4%. Em 1998, ano da reeleição de FHC, já era de 8,2%. Em 2004, foi a 13%. Eram os tempos do início da reestruturação produtiva e a flexibilização dos direitos.

O aumento da dívida, por sua vez, teve características distintas de outras épocas. Dessa vez ela não mais financiava a substituição de importações ou o aumento das exportações. Ela, ao contrário, tornou o país cada vez mais vulnerável à economia internacional.

Exemplo disso foi a crise do câmbio, em janeiro de 1999. Uma fuga massiva de dólares que jogou por água abaixo o regime de câmbio fixo, principal instrumento de sustentação do Real. Adotou-se o câmbio flutuante: o valor da moeda depende, agora, da quantidade de dólares no mercado. A partir daí, a fim de manter a economia estabilizada, o governo FHC estabeleceu um tripé que vigora até hoje. As metas de inflação, de superávit primário (economia para pagar juros da dívida), adotadas em 1999, e a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada em 2000.

Governo Lula e o plano Real
Os defensores do Plano Real argumentam que ter vencido a inflação foi uma conquista histórica do país. Para embasar tal ideia, afirmam que as novas gerações não sabem o que é viver submetido a uma hiperinflação. No entanto, o Plano Real não pode ser entendido como uma política monetária isolada. É parte de um conjunto de políticas que marcou a onda neoliberal a partir dos anos 1990.

Se os jovens de hoje não conhecem a inflação, conhecem muito bem o desemprego e a flexibilização das relações trabalhistas, frutos dessa política. Conhecem de perto a precarização dos serviços públicos, como saúde e educação. Os servidores públicos, por sua vez, têm seus salários arrochados e sofreram enormes perdas nesse período. Além disso, a enorme propaganda sobre o fim da inflação é utilizada pelo governo e os empresários para não concederem reajustes, ainda que continue a existir inflação, embora não tão alta quanto antes. Isso corrói mais ainda os salários a médio prazo. Essa é a verdadeira herança do Plano Real.

O governo Lula mantém a mesma política econômica de FHC. Uma nova situação internacional de crescimento nos últimos anos possibilitou a entrada de dólares e a manutenção de reservas, sem que tenha sido preciso fazer avançar as privatizações. Os juros altos, as metas de inflação e de superávit primário, porém, permaneceram.

Quando Lula elogia o Real, portanto, não fala sobre a moeda em si. Refere-se à totalidade da política econômica de FHC, com a qual está comprometido.