Militante que vive no Brasil conta como os trotskistas atuaram sob o regime militar e como puderam sobreviver a mais sangrenta ditadura latino-americanaNo dia 24 de março deste ano completaram-se 30 anos do golpe militar na Argentina que derrubou o governo de Isabel Perón e iniciou a mais sanguinária e feroz ditadura militar de sua história.
Para ter uma idéia do grau atingido pela repressão, segundo os organismos de direitos humanos foram assassinadas 30 mil pessoas, em um país com uma população muito menor do que a brasileira. Seria algo como 170 mil mortos no Brasil. Este número, por si só, diz tudo.
No entanto, não foram apenas os assassinatos. Junto com eles, criou-se uma imensa rede de campos de concentração e de torturas, inédita na história argentina. Chegou-se ao extremo da selvageria de torturar bebês com choques elétricos, para conseguir que a mãe delatasse seu próprio marido. Houve muitos casos inclusive de mortes e torturas por vinganças pessoais ou simplesmente para roubar as vítimas.
Hoje, no Brasil, a maior parte dos militantes e ativistas revolucionários nunca passou (felizmente), por este tipo de experiências. Por esse motivo vários companheiros do PSTU me pediram que escrevesse contando o que significou a militância nessa época, como era possível manter um partido revolucionário atuando nessas condições. E como este pôde enfrentar a repressão, atuar e sobreviver.
Em primeiro lugar, há que esclarecer que o problema maior que enfrentamos foi que o golpe militar infligiu uma séria derrota ao movimento operário e popular. Com métodos de guerra civil, as forças armadas dedicaram-se, como prioridade, a reprimir e massacrar os trabalhadores organizados, conscientes de que ali poderia surgir a resistência que os derrotasse. Houve casos, como na fábrica de caminhões Mercedes Benz donde seqüestraram e assassinaram todo o corpo de delegados sindicais, independentemente das simpatias políticas de cada um deles. Para isto, contaram com o apoio ativo dos patrões, que em muitos casos delatavam a aqueles que os aborreciam. A Ford teve um papel especialmente sinistro em este sentido.
De cara, com o pretexto de derrotar a guerrilha – que a esta altura estava muito golpeada e totalmente infiltrada pelas forças de repressão – teve início uma campanha de “limpeza” e extermínio de todas as organizações revolucionárias, classistas e combativas. No entanto, a perseguição não foi restrita apenas a estas. Também alcançou ativistas não organizados, pessoas com passado de luta e qualquer um que levantasse a voz.
Eram comuns as operações militares (blitzes) em bairros operários ou de periferia, onde os militares entravam nas casas, revistavam os pertences dos moradores (por exemplo, verificavam se tinham livros “suspeitos”, controlavam agendas, etc.), os interrogavam (onde trabalhavam, onde moravam anteriormente,…) e, caso não gostassem de alguma resposta, simplesmente os levavam a centros de tortura, para interrogatórios. Também estimulavam a delação dos vizinhos, perguntando que faziam, quem costumava visitá-los, se tinham movimentos suspeitos… Em muitos casos, algum vizinho fofoqueiro dizia que alguém do bairro recebia muitos amigos e isso já era motivo suficiente para seqüestrá-lo, torturá-lo e muitas vezes assassiná-lo.
Neste clima de repressão e de derrota dos trabalhadores, a atividade revolucionária se fazia difícil e era necessária um grau de clandestinidade muito grande. A propaganda partidária era feita essencialmente através do jornal do partido, que era distribuído com medidas extremas de segurança.
Por exemplo, depois de impresso, os exemplares eram levados dentro de grandes latas de pesticidas venenosos (obviamente falsas, cobertos com farinha comum) com muitos rótulos advertindo sobre o perigo. Apostava-se que, se o veículo passasse por uma batida do exército, os militares teriam medo de revistá-las.
A entrega de cada exemplar do jornal também exigia grandes cuidados. Ele era escondido das mais diversas formas possíveis, usando o máximo de criatividade e engenhosidade de cada militante. Por exemplo, freqüentemente usávamos um maço de cigarros. Abríamos a parte de baixo, tirávamos os cigarros e colocávamos as folhas do jornal, com as bordas recortadas e cuidadosamente dobradas. Depois dessa operação, o maço era de novo fechado. Alguns companheiros que moravam em bairros mais perigosos ou simplesmente que eram mais cuidadosos, se converteram em verdadeiros “artistas” para camuflar os jornais que entregavam.
A agitação, através de panfletos, estava bastante restrita, para evitar represálias. A participação em atos de descontentamento que haviam eram cuidadosas, para não chamar excessivamente a atenção e ser golpeados. A manutenção de organismos partidários, que funcionaram com reuniões semanais, requeria esforços consideráveis, já que tinham que ser feitas em locais seguros e com um pretexto muito bem preparado, caso viesse a ocorrer alguma operação da repressão. Estas dificuldades se agravavam quando organizávamos cursos de formação política, já que tínhamos que movimentarmos com livros e apostilas.
Diante desse cenário, surge uma pergunta inevitável: valia a pena correr tantos riscos, quando a realidade política do país era tão difícil? Não seria mais sensato retirar-se a quartéis de inverno´ e esperar que a situação melhorasse?
A resposta é NÃO. Porque, em uma situação contra-revolucionária, a manutenção da própria organização é o principal desafio. Nestas etapas, a burguesia tenta aproveitar o retrocesso do movimento de massas para desaparecer com todas as fileiras das organizações revolucionárias dos trabalhadores. E manter um fio de continuidade, programático e político, é essencial para que, quando a classe operária recupere-se e volte a lutar, os revolucionários possam apresentar suas propostas organizativas e políticas. E isto só é possível se se conseguiu manter uma estrutura sólida, de militantes que resistiram à contra-revolução e que estejam dispostos a aproveitar todas as oportunidades que se apresentem para colocar-se à cabeça das lutas.
O balanço da atuação do PST, a organização argentina que integrou a corrente que depois viria a ser a LIT-QI, durante a ditadura militar é que foi capaz de resistir aos golpes e preparar-se para participar do ascenso que se deu em 1982, depois da queda da ditadura militar.
Junto com isto, é importante dizer com clareza aos muitos companheiros que deram sua vida e sua liberdade nesta luta, que nunca esqueceremos aqueles que foram os culpados. Mas atenção. Não podemos pensar apenas nos torturadores e assassinos diretos. Houve muitos outros. Por exemplo, os empresários que impulsionaram um golpe para impor um plano econômico a seu serviço e que lhes proporcionou enormes lucros. Eles, junto com o imperialismo, foram a verdadeira “alma” do golpe militar. Tampouco podemos esquecer dos meios de comunicação, com “comunicadores” que falavam das “loucas da Praça de Maio”, referindo-se às mães que reclamavam por seus filhos desaparecidos. Os juizes, que foram uma parte importante do regime repressor. Ou os políticos patronais que ocuparam muitas vezes cargos no governo militar, ou dirigentes religiosos, que participaram na tortura e abençoavam os assassinos. Todos aqueles que tinham postos de poder e toleraram, silenciaram e impulsionaram este genocídio são tão responsáveis quanto os que torturavam nos porões da ditadura. É nossa obrigação lutar para tenham o merecido castigo.