Durante a ditadura (1964-1984), a dívida externa passou de cerca de US$ 3 bilhões, em 1964, para quase US$ 100 bilhões no final do último governo militar. Como veremos, os grandes beneficiários deste endividamento foram as multinacionais, seguidas das grandes empresas de capital nacional. Os custos deste endividamento foram (e ainda são) jogados nas costas dos trabalhadores.

O Golpe e a primeira estatização da dívida externa pela ditadura
O apoio concedido pelo governo dos EUA ao golpe militar de 1964 pôde ser bem medido pela concessão ao novo regime dos empréstimos negados ao governo deposto e que serviram para “equilibrar” as “contas externas do país”, permitindo que se recuperassem as reservas cambiais. O Estado endividava-se no exterior e viabilizava as remessas de lucros das subsidiárias das multinacionais aqui instaladas e os pagamentos de juros e amortizações das dívidas por elas contraídas no exterior. Foi a primeira estatização da dívida externa do regime militar.

Além disso, a política recessiva do governo levava à melhoria da balança comercial, gerando também mais reservas. A dívida externa privada transformava-se em dívida externa pública e as multinacionais podiam exportar a mais-valia extraída dos trabalhadores brasileiros.

A reforma do sistema financeiro

Em meados dos anos 60, consolidava-se o que ficou conhecido como o euro-mercado de moedas, fruto do significativo crescimento da economia mundial após a Segunda Guerra e do grande acúmulo de dólares no mercado financeiro internacional.

A política econômica do regime militar buscou, desde o início, amparar-se no ingresso destes capitais. Para isto realizou uma série de reformas que levaram à vinculação direta da economia brasileira às necessidades expansivas do capital financeiro internacional. A nova legislação permitiu a tomada de empréstimos em moeda diretamente entre empresas no exterior e no país, e a tomada de empréstimos pelos bancos no mercado financeiro internacional e seu repasse às empresas instaladas no Brasil.

Nos primeiros anos do regime militar, a recessão econômica abriu poucas oportunidades lucrativas de investimento e limitou a atração de capital estrangeiro. Como forma de mostrar serviço ao imperialismo, os “privatistas” Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões (então ministros do Planejamento e da Fazenda) compraram as subsidiárias de energia elétrica da American Foreign Power (AMFORP) e a Companhia Telefônica Brasileira de seus respectivos donos multinacionais. Assim, por um lado, permitiram a retirada estratégica destas multinacionais de setores de baixa lucratividade e, por outro, adquiriram a preços exorbitantes empresas sucateadas por anos sem investimentos. O povo pagou a conta.

Apesar da relativa estabilização da dívida externa devido ao pouco interesse dos capitais estrangeiros por aplicar seus recursos na economia brasileira naquele momento, as reformas financeiras dos anos iniciais da ditadura prepararam o terreno para o crescimento vertiginoso dos empréstimos internacionais.

O “milagre econômico”
O ano de 1968 foi marcado, no campo político, pelas primeiras manifestações massivas contra a ditadura, especialmente do movimento estudantil. A situação política refletia a situação econômica recessiva que gerava também reclamações por parte do empresariado. Em dezembro, o governo promulgou o Ato Institucional no 5 (AI-5), fechando ainda mais o regime, cassando direitos políticos e instituindo o pior período repressivo da ditadura. Um dos maiores defensores do AI-5 foi o novo ministro da Fazenda, Delfim Neto. O fechamento do regime foi útil para viabilizar o aumento do arrocho salarial e para tornar a política econômica “inquestionável”.

No âmbito da economia mundial, o final da década de 60 marcou o início de um período recessivo nos países imperialistas, o que levou à diminuição do campo de investimentos nestes países e à conseqüente redução das taxas de juros internacionais. Do lado interno, o fim da fase recessiva e a política expansiva do governo levaram a que a economia brasileira se tornasse atrativa para novos investimentos. Iniciou-se um período de grande crescimento econômico e de aumento sem precedentes do endividamento externo, conhecido como “milagre econômico”.

O aumento das necessidades de financiamento das empresas instaladas no Brasil, fruto do acentuado crescimento econômico que se estabeleceu, foi suprido, em grande parte, com empréstimos externos. Ao invés de essas empresas endividarem-se no mercado financeiro brasileiro, buscaram seus empréstimos diretamente no exterior, utilizando-se dos canais legais abertos que ligaram as necessidades internas de financiamento ao movimento expansivo do capital financeiro internacional.

A “dívida externa brasileira” saltou de US$ 3,2 bilhões, em 1967, para US$ 12,6 bilhões em 1973. Foi um grande favor que a ditadura militar prestou ao capital financeiro internacional, em busca desesperada por campos de aplicação lucrativos para seus recursos. Este endividamento foi muito maior do que o necessário para que se cobrissem os déficits comercial, de serviços e remessas de juros e lucros, levando ao acúmulo excessivo de reservas cambiais e provando ser em grande parte desnecessário.

De acordo com Davidoff, “(…) a economia brasileira, ao elevar seus níveis de endividamento externo, nada mais fez do que acompanhar um movimento geral que envolveu diferentes economias ‘em desenvolvimento’ num momento em que o euromercado buscava novos clientes fora dos EUA e Europa. Por outras palavras, a economia brasileira foi ‘capturada’, juntamente com várias outras economias, num movimento geral do capital financeiro internacional em busca de oportunidades de valorização” (Davidoff. Dívida externa e política econômica).

Mas quem estava se endividando? As grandes empresas monopolistas, especialmente as multinacionais, que tinham acesso privilegiado às fontes dos empréstimos internacionais. Era uma dívida externa privada, que financiou mais uma onda de crescimento da presença das multinacionais no Brasil.

O II PND e a segunda estatização da dívida
A economia mundial entrou em um período recessivo após o choque do petróleo (quando ocorreu um grande aumento dos preços deste produto), no final de 1973. A economia brasileira também começou a apresentar sinais de desaceleração econômica. O que evitou uma forte recessão foi justamente a escolha de política econômica do governo Geisel, que apostou em um plano de desenvolvimento (o II Plano Nacional de Desenvolvimento – II PND) voltado para a substituição de importações, vinculada às indústrias de bens de capital e de bens intermediários. Os principais agentes destes investimentos foram as empresas estatais, visto que as empresas privadas estavam em um período de retração, após anos de grande crescimento da capacidade produtiva.

A política econômica do governo Geisel aprofundou ainda mais o endividamento externo. Isto tornou-se possível devido ao processo conhecido como “reciclagem dos petrodólares”, de acordo com o qual os dólares acumulados pelos países exportadores de petróleo em função de seus superávits comerciais, eram aplicados no mercado bancário europeu. Com a recessão nos países imperialistas, novamente os bancos internacionais se viram de posse de grandes quantidades de dinheiro que necessitavam aplicar lucrativamente.

Uma característica do endividamento externo tomado neste período é que a composição dos tomadores internos dele deixou de ser majoritariamente privada, passando as empresas estatais a responder por cerca de 75% da dívida externa em 1980. Foi a segunda estatização da dívida externa do período militar.

Isso ocorreu como conseqüência da queda de atividade do setor privado, que não demandou tanto crédito externo como o governo previa. O nível de atividade foi sustentado fundamentalmente pelos grandes projetos de investimento patrocinados pelo Estado, através principalmente de suas empresas. Além disso, o governo, para manter elevadas as entradas de recursos em moeda estrangeira, forçou as empresas estatais a tomarem empréstimos no exterior, ao manter os preços e tarifas cobrados por elas corrigidos abaixo da inflação e ao dificultar o acesso ao crédito interno, para não falar da pressão direta sobre seus dirigentes. As empresas multinacionais puderam remeter seus rendimentos e pagar suas dívidas tranqüilamente, amparadas na manutenção das reservas em patamares elevados, devido aos empréstimos das estatais.

Estas tomadas de recursos financeiros no exterior foram muito acima da necessidade de financiamento dos déficits comerciais e em serviços. Mesmo com uma parcela já considerável desses recursos tendo sido requerida para financiar o pagamento de juros de empréstimos anteriores, ocorreu um crescimento considerável das reservas internacionais. Assim, novamente, a política governamental leva ao sobre-endividamento da economia brasileira, ajudando a gerar campo para a aplicação lucrativa de seus investimentos estrangeiros. A dívida externa chegava ao patamar de US$ 43,5 bilhões no final de 1978.

Aumento dos juros e o aprofundamento da estatização da dívida
A natureza deste financiamento externo era, no entanto, altamente instável e temerária, baseada em taxas de juros flutuantes. Isto significa que as taxas de juros dos contratos mudavam de acordo com as variações das taxas de juros do mercado financeiro internacional.

O problema começou a se expressar com o crescimento das taxas de juros em 1979, e estourou em 1980, quando, unilateralmente, o governo dos EUA decide subir as taxas de juros pagas por seus títulos, o que leva a um crescimento das taxas do mercado financeiro internacional. Isto atingiu diretamente os custos da dívida externa brasileira, cujos contratos em sua maioria previam taxas de juros flutuantes. Os pagamentos de juros passaram de US$ 2,7 bilhões, em 1978, para US$ 4,2 bilhões, em 1979, e US$ 6,3 bilhões em 1980.

A partir de então, grande parte dos empréstimos serviu apenas para pagar os serviços das dívidas passadas e o resíduo era claramente insuficiente para fazer frente às necessidades representadas pelos déficits comerciais e em serviços.

Houve, ao contrário dos anos anteriores, uma importante perda de reservas internacionais. O ciclo de crescimento com endividamento, iniciado no final dos anos 60, chegava assim a seu fim e iniciava-se outra fase, muito mais adversa.

O processo de estatização da dívida externa via empréstimos das estatais seguiu, de forma cada vez mais irracional. “Os projetos de investimento passaram a ser ‘inventados’ para se adequarem a créditos contratados de governo a governo, vinculados à aquisição de equipamentos nos países credores. Estes, uma vez internados, apodreciam ou enferrujavam nos pátios das empresas, como ocorreu com a Açominas, a Eletrobrás e a Nuclebrás” (Tavares e Assis. O grande salto para o caos). A dívida externa seguiu crescendo, alcançando o patamar de US$ 70 bilhões em 1982.

O governo promoveu ainda outra política de estatização da dívida privada. Através da Resolução 432, de 1977, do Conselho Monetário Nacional, o governo passou a “proteger” os devedores privados contra o risco cambial. Com esta resolução, os devedores ao exterior poderiam transferir sua dívida em dólares ao Banco Central, nas mesmas condições contratadas com o mercado financeiro internacional, desde que depositassem os cruzeiros correspondentes ao valor da dívida. A dívida privada passaria diretamente a ser pública. Assim, a dívida externa das empresas privadas (muitas destas dívidas eram entre matriz e filial do mesmo grupo econômico) foi transferida ao governo no momento em que as condições estavam desfavoráveis a seu pagamento ao exterior.

Entra em cena o FMI e os trabalhadores pagam pela crise
A situação agrava-se ainda mais em 1982, quando o México decreta moratória de sua dívida externa, por absoluta incapacidade de pagamento. A partir daí, fecham-se totalmente os canais de empréstimos bancários privados aos países dependentes. As reservas internacionais caíram continuamente, colocando em risco a capacidade de pagamento dos compromissos internacionais.

Ao invés de decretar a moratória da dívida externa, o governo de Figueiredo, sob o comando do ministro da Fazenda Delfim Neto, ajoelhou-se perante o FMI e submeteu o país a uma política recessiva brutal para formar um superávit comercial. Foram promovidos o arrocho salarial e a redução dos gastos públicos. A classe trabalhadora novamente foi chamada a arcar com as perdas da crise para que os banqueiros pudessem receber seus ganhos em dia. Pela primeira vez, a economia brasileira decresceu, com o PIB caindo 3,1% em 1981 e 2,8% em 1983. Ao final do último governo militar, a dívida externa já ultrapassava a casa dos US$ 90 bilhões e era basicamente uma dívida pública.

Estava inaugurado um período em que a sigla FMI passou a estar associada diretamente à economia brasileira e, conseqüentemente, à vida das pessoas. Este processo vai marcar a crise final da ditadura militar, que passou a sofrer questionamentos cada vez mais massivos e a encontrar uma classe trabalhadora cansada de pagar a conta. Como veremos nos próximos artigos, os governos do regime democrático-burguês seguirão tentando impor todos os custos aos trabalhadores, que apresentarão uma dura resistência.

Resultados da internacionalização da economia
No artigo anterior, vimos como, a partir dos anos 50, a economia brasileira vai sendo capturada pelo movimento expansivo dos investimentos produtivos das multinacionais. O presente artigo demonstrou como, durante o período militar, nossa economia foi novamente capturada, desta vez pelo movimento expansivo do capital financeiro internacional, articulado às multinacionais aqui instaladas. A economia brasileira tornou-se uma das mais internacionalizadas do mundo e, conseqüentemente, refém dos movimentos dos capitais internacionais.

Post author João Valentim, do Rio de Janeiro (RJ), e Cristiano Monteiro, de São Paulo (SP)
Publication Date