Yara Fernandes Souza, da redação

Ver a ditadura militar sob os olhos de uma criança é como observá-la pela primeira vez, ainda que este período histórico tenha sido tema recorrente no cinema, e que muitos espectadores o tenham vivido. É o garoto Mauro (Michel Joelsas), de passagem da infância para a adolescência, que nos leva para seu universo em “O ano em que meus pais saíram de férias”, filme de Cao Hamburger em cartaz nos cinemas brasileiros.

Enquanto Mauro sonha com a vitória do Brasil na Copa do Mundo de 1970, reproduzindo tais sonhos nos seus jogadores de botão, seus pais de esquerda precisam se esconder do regime militar. Eles moram em Minas Gerais e a situação força Bia (Simone Spoladore) e Daniel Stein (Eduardo Moreira) a “saírem de férias” e deixarem o garoto com o avô em São Paulo, que, entretanto, morria naquele mesmo dia.

O bairro paulistano do Bom Retiro é habitado por judeus, italianos e descendentes. Mauro, que foi deixado com a mala na porta do prédio, não consegue avisar os pais sobre a morte do avô e acaba sendo provisoriamente hospedado, um pouco a contragosto, pelo vizinho Shlomo (Germano Haiut). O choque e o encontro entre gerações e culturas distintas é uma das características que marcam o período que se segue na vida do garoto.

Vida de goleiro
Inicialmente, o filme se chamaria “Vida de Goleiro”. Mais do que explicitar de maneira ímpar a utilização do futebol pelo regime militar como elemento pacificador da população e de propaganda da ditadura, o filme também conecta a solidão e a responsabilidade que têm tanto o goleiro de um time quanto o personagem principal.
Mauro passa dias ao lado do telefone aguardando um sinal de seus pais. Passa horas na janela do apartamento na esperança de que um fusca azul vire a esquina e se aproxime do prédio. O pai prometera voltar a tempo de assistir aos jogos da Copa com ele. Com isso, as comemorações ao final de cada partida misturam-se ao vazio da ausência. Da mesma forma, os gritos de todos os torcedores do país mesclam-se ao nó na garganta produzido pelo contexto político da repressão daqueles tempos. Assim, o filme trabalha com maestria um tema já presente em obras como “Pra Frente, Brasil” (1982), de Roberto Farias.

Para Mauro também se confundem a tristeza pela ausência dos pais e as alegrias e aventuras do futebol com os meninos da rua, as espiadelas no buraco da parede do provador feminino da loja, o olhar encantado e curioso dele sobre os objetos do avô, a expectativa de completar o álbum de figurinhas com todos os craques. A cena das crianças dançando euforicamente ao som de “Eu sou terrível”, de Roberto Carlos, sob os olhos estupefatos dos senhores mais velhos da festa judaica diverte e aponta o contraste de gerações. A amizade com Hanna (Daniela Piepszyk), garota que mora no mesmo prédio, assim como a deliciosa disputa pelos olhares (principalmente de Mauro) da moça mais bonita do bairro, também mostram a sensibilidade inocente da trama.

Olhar infantil
A narrativa ocorre através do olhar de uma criança, mas não se torna didática, não repete o óbvio. É um filme de poucas palavras e muitas imagens. Usa o conhecimento e a identificação que o espectador tem sobre o tema para falar da clandestinidade, dos protestos, das pichações anti-regime. Diz, apenas com os olhares das crianças, muito do que conta a história. Logo no início, a cena do garoto dentro do carro observando sua chegada a São Paulo, com as imagens da capital refletindo-se no vidro, trazem um pouco desse sentimento de novo, de curiosidade, do primeiro olhar perplexo diante do mundo que é preciso resgatar nos adultos.

A idéia de enxergar a ditadura militar sob o ponto de vista de uma criança no cinema não é inédita. O filme argentino “Kamchatka” (2002), de Marcelo Piñeyro, também narra as memórias de um garoto que se vê obrigado a abandonar sua rotina e ir para uma fazenda durante o exílio de seus pais na época da ditadura. O chileno “Machuca” (2004), de Andrés Wood, também segue o mesmo caminho, mostrando a visão de dois garotos, um rico e outro pobre, sobre o contexto conturbado que vivia o país entre o final do governo de Salvador Allende e o início da ditadura de Augusto Pinochet.

Mas há muito da própria história do diretor Cao Hamburger no filme. Na infância, ele viu o pai judeu e a mãe católica serem presos pela ditadura. Também era goleiro nas peladas de sua infância. O período em que esteve na direção da série de TV Castelo Rá-Tim-Bum, e do longa homônimo de 1995, deram ao diretor um enorme talento e experiência na direção de crianças. Apesar disso, esse novo filme tem a peculiaridade de não ser uma obra infantil.

Ao captar o olhar da criança sobre a ditadura militar brasileira e contrastar tão bem os acontecimentos deste período com a euforia da Copa do Mundo, Hamburger faz um grande filme nacional, cativa o público e traz à tona memórias das mais tristes às mais divertidas, de um tempo e de uma paixão que o espectador tenha ou não vivido…
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